As ruas galegas amanhecêrom desertas, e no interior de cada fogar, as pessoas argalham como melhor podem a vida nas estranhas condiçons que decreta o estado de alarma. As preocupaçons elementais, de organizaçom da vida e da subsistência, som as que ocupam a primeira linha: como manter os ingressos familiares, como atender as crianças sem escola, como organizar as compras, como conviver com relativa harmonia, muitas vezes, em espaços pequenos e tensos. A seguir, vem outra preocupaçom nom menos importante: que está a acontecer? Pois conhecer o que nos sucede alivia a pressom de vivermos um panorama tam incerto.

Os nossos leitores enviam-nos, em forma de sugestons, perguntas, propostas de publicaçom, umha petiçom: ajudar a ordenar em ideias sintéticas os elementos chave desta crise, primeiro passo para saber-se mover neste terreno lamacento. Há umha conviçom generalizada (da que por sinal este web falava há umhas semanas, antes da chegada do vírus) do pioramento dos tempos; e prende nas classes populares, e na militáncia dos movimentos sociais, a certeza de que os poderosos farám todo o possível, com o pretexto da crise, por impor condiçons mais injustas de vida aos povos.

Medo e omnipotência do poder

As galegas e os galegos que nom vivêrom o genocídio de 1936, e que som ainda demasiado jovens para ter memória da dura posguerra, nom padecêrom demasiadas situaçons de excepçom. Si que nas últimas décadas se tenhem registado situaçons extraordinárias, como o acordar da consciência durante a crise do Prestige, a comoçom provocada polo 11 de março de 2004, ou a ocupaçom massiva das praças no 15M de 2011. A sensaçom de que algo mui profundo estava a mudar atravessou todas aquelas datas. Agora irrompe um elemento novo: absolutamente todas as pessoas, sem nenhuma excepçom, estamos mergulhadas numha situaçom de crise. Pois se nas convulsons sociais e políticas as pessoas podem escolher a inibiçom, dum ou de outro modo, na alerta sanitária todos viramos possíveis agentes ou pacientes do vírus, e também agentes ou pacientes do medo.

A parte da nossa psique mais vulnerável à sugestom e aos actos reflexos emerge nestas circunstáncias, um caldo de cultivo para o autoritarismo, pessoal ou político. Nestes dias vimos como comportamentos indecentes prendiam em certos indivíduos: quem se dedicárom ao acaparamento de comida, quem procurárom acobilho nas ditas “zonas seguras”, sem se importar que extendiam ou quem se considerárom com direito de exprimir até o esgotamento as trabalhadoras de serviços essenciais, como as caixeiras dos supermercados ou as profissionais de sanidade.

Praia do Morraço. Imagem: troleadagalega

Sem alcançar níveis de penúria moral, todos somos testemunhos dumha vaga de mau humor, de umha certa ruindade de carácter que se vai extendendo. Num sítio é o vizinho que profire berros a meia noite, angustiado polo encerro; noutro, o comprador que maldiçoa o muito que a gente ateiga as lojas de alimentaçom; e noutro, umha meninha que chora ao ver os estantes do súper vazios. Somos umha sociedade de consumo muito afeita à mobilidade barata e acessível, às relaçons humanas fugazes e rapidamente suspendidas, predispostos à rápida irritaçom, e afeitos à satisfaçom imediata das necessidades. Todo este novo experimento social do Estado de alarma (desenhado com boa ou má intençom) vai provar até que ponto a nossa base de carácter tem dificuldades para encarar a adversidade. Também pode ser umha ocasiom para fazê-la mais flexível e capaz de alcançar maiores quotas de racionalidade e autocontrolo.

Luita de classes e recentralizaçom

No dia de onte, em entrevista com o Galiza Livre, o sindicalista da CUT Brais González advertia: “empresários estám a viralizar a estafa.” Numerosas empresas, sobretodo de serviços, lançam EREs e ERTE, seguindo a consigna da patronal, baseada em aproveitar condiçons de exploraçom mais ventajosas ao alento da crise. Parte dos planos de remodelaçom de plantilha som, pura e simplesmente, “ilegais”, advertia González, e chamava às assalariadas, à “nom colaboraçom e a informaçom.” A CUT tem disponibilizado em redes sociais umha guia de actuaçom para trabalhadores afectados por regulaçons de emprego express. A central nacionalista também está a espera de saber quais som as decisons estatais em relaçom às trabalhadoras autónomas, “nas que recai parte do peso da economia galega.” O encerramento de muitos negócios particulares por sentido da responsabilidade, mesmo antes de ser decretada a alarma, deixa dúzias de milhares de famílias galegas na incertidume.

Por seu turno, o Estado espanhol reagiu onte, por boca do chefe de governo, como adoita fazer em outras encruzilhadas históricas. A lentidom na toma de medidas foi evidente, a pouco que fixermos umha comparativa com os outros dous grandes países atingidos, a China e a Itália. A negativa a fechar Madrid, ponhendo em risco a blindagem sanitária de outras naçons como a nossa, mereceu umha crítica massiva. Com a pandemia em fase muito avançada, o discurso televisado de onte serviu para dar carta branca à suspensom das autonomias e para a instalaçom dumha ditadura de facto durante quinze dias, com todos os poderes concentrados numha só pessoa, para serem delegados em polícias e militares. Para a Galiza isto também supom um feito histórico, e o nosso país recebe umha injecçom de nacionalismo espanhol extra. Como analisou Causa Galiza nas suas redes sociais, “umha premissa com fortíssima carga ideológica é socializada massivamente nestes momentos ao fio do combate da epidemia: a que indica que as autonomias som mero atrezzo e que o realmente efetivo para resolver problemas é a concentraçom absoluta do poder de decisom política.” Organizaçom independentista também pom em destaque que a impossibilidade de regular as fronteiras galegas possibilita episódios de contágio como os que se vivírom nas Rias Baixas.

Um outro dos aspectos que chamou a atençom do discurso televisado de onte foi, além da inflamaçom emocional do patriotismo espanhol, a falta de concreçom sobre as ajudas sociais à classe trabalhadora danificada pola crise; segundo fontes da imprensa comercial, a total falta de assunçom de medidas de protecçom social por parte dos ministros do PSOE provocou malestar em Unidas Podemos. Sobre umha hipotética linha de ajudas post-crise, Causa Galiza também pujo o acento no carácter de classe do Reino de Espanha, afirmando “a natureza de classe do Estado espanhol ficará mais umha vez absolutamente evidenciada e tratará de por o cenário pós crise em linha com o processo geral de pauperizaçom e precarizaçom laboral e social.”

Controvérsias crescem

Além da sensaçom de medo, aumenta o interesse por saber as origens deste vírus, e a razom da sua transmisom acelerada. Cientistas, filósofos e pensadores ponhem o seu grauzinho de areia, sem por isso a polémica estar ausente. Para as vozes mais fomentadas pola mídia, a origem do vírus está em animais selvagens que acabárom no mercado alimentar da China; contra a tentaçom de atribuir todo a um plano escuro, o intelectual Santiago Alba Rico recordou num exitoso artigo que vivemos umha situaçom muito repetida na história: “cada vez que o povo tivo que afrontar umha ameaça colectiva, procurou um corpo concreto ao que atribuir a responsabilidade, e no que localizar um remédio. É o bode expiatório, o que os gregos chamam pharmakos (…) umha vítima escolhida ao acaso na que se depositava toda a complexidade da crise, e cujo sacrifício ou expulsom da cidade libertava os homens de todos os perigos.” Em coordenadas antagónicas situam-se plataformas de análise como a venezuelana Misión Verdad, que nom desbotam a origem estadounidense do vírus, origem que seria silenciada. No contexto da guerra comercial entre os dous grandes blocos mundiais, os USA nom esariam interessados em assumir a sua verdadeira responsabilidade.

Se este ponto de vista já e de por si apavorante e distópico, ainda foi mais longe o filósofo Giorgio Agamben, um grande teórico do estado de excepçom. Para o pensador, o coronavirus nom é mais do que um outro tipo de gripe, cujos efeitos som agravados de maneira fictícia pola mídia e a casta política. Com esta ferramenta de medo massivo, os Estados preparam a extensom de governos quase ditatoriais em conjunturas extraordinárias. No Estado espanhol, colectivos anarquistas como Tokata secundam esta tese.

Nascerá algo novo?

Em várias cidades galegas artelham-se redes de cooperaçom. Em Lugo, a Rede de Apoio Mútuo desenha planos de ajuda às pessoas mais vulneráveis; em Compostela, o mundo associativo prepara iniciativas semelhantes. No espaço estudantil, a organizaçom ANEGA anunciou a criaçom dumha estrutura também horizontal para afrontar as dificuldades. O individualismo poderia ser erodido nesta crise, se o trabalho popular consegue logros práticos.

No ámbito dos desenhos políticos, o neoliberalismo occidental parece perder legitimidade, com a sua cacarejada apologia da desplanificaçom e a sua confiança na espontaneidade do mercado. Pola contra, o capitalismo de Estado chinês parece ganhar pontos, mesmo em sectores que anteriormente o criticavam. Assim o aponta o blogue el territorio del lince: “a China deu tempo ao mundo, e o mundo desaproveitou-a, a esperar que o coronavirus esboroasse a grande ameaça, já real, para a hegemonia occidental. Mas a China trouxo à tona que onde há gasto social pode manejar-se bem umha crise. É o triunfo dum país com um capitalismo sui generis posto que mantém um modelo de planificaçom económica que demonstrou ser muito superior ao “livre mercado” (…) vemos como está a começar já o debate sobre o retorno do Estado.”