(Imagem: metro.co.uk) A entrada da Galiza na longa lista das sociedades hedonistas pareceria ter derrubado muitos tabus, e entre eles a confissom das próprias fraquezas. Segundo muitos propagandistas do mundo que vivemos, os padecimentos mentais nom som mais umha vergonha e falam-se com grande liberdade. Porém, há um novo elemento de bloqueio que oculta os malestares: o imperativo da felicidade. Numha sociedade dirigida pola propaganda comercial, e onde está nos dita que devemos permanentemente sorrir, gozar e viver exultantes, quem se atreve a falar da dor? Por baixo da fachada, porém, o sofrimento existe e quiçá se esteja a extender.
Segundo o Pew Research Centre americano, para o 70% das moças e moços dos USA, que é como dizer, o 70% do grande laboratório do capitalismo avançado, doenças mentais como a ansiedade e a depressom som as primeiras preocupaçons. No Reino de Espanha (nom temos dados desglossados da Galiza) até um 15% da juventude confessa ter padecido ansiedade. A cifra ascende na idade adulta, e as mulheres quase duplicam aos homens.
Mas de que estamos a falar? Há um consenso geral na definiçom de ansiedade e, independentemente da escola psicológica que abordarmos, considera-se um padecimento mental de gradaçons muito variáveis, desde um malestar leve, a umha patologia incapacitante. Qualifica-se de ansiedade um estado de espírito marcado pola funda agitaçom interior, a desorde mental ou a prevalência de pensamentos obsessivos e circulares , muitas vezes com derivaçons cara o sofrimento físico. Origina-se no pensamento antecipado em problemas por vir, reais ou imaginários. Tem lugar em pessoas ou sociedades que concebem a sua contorna como umha fonte contínua de hostilidade e descontrolo.
Diferencia-se do medo, pois este foca-se num objecto concreto, definível, e soi esvaecer quando o perigo desaparece; e também se diferencia da preocupaçom, pois supom umha sobre-reacçom aos problemas; sobre-reacçom nom resolutiva, pois mais que dar respostas, mergulha o sofredor numha espiral de indecisom e impotência. Para a chamada psicologia positiva, que tenciona transformar em retos todos os calvários, a ansiedade é um estado mental que deriva dum desafio para o que ainda nom estamos preparados. Em termos de crítica social, poderíamos dizer que umha boa parte da populaçom nom está preparada para se enfrentar a um modelo social atravessado de incerteza, concorrência, soidade e agressom.
Passado e presente
A comparaçom entre o passado e o presente da saúde mental paira em todas as conversas e polémicas mas, ao cabo, enfrenta-nos a umha questom irresolúvel. Nom sabemos se antes se padecia mais ou menos, e nom o sabemos por vários factores: nom há registos escritos (nem fiáveis) das doenças mentais do passado; nom existiam disciplinas médicas que lhe pugessem nomes aos padecimentos; nom existia indústria farmacêutica que lançasse um mercado de químicos para acougar o cérebro. Além de todo isto, o sofrimento é algo irredutível à quantificaçom e ao dado. Si sabemos, em troca, quais eram as respectivas mentalidades para afrontar a vida: estoica (cristá) a passada, hedonista (e muitas vezes niilista) a actual. No pre-capitalismo, a ênfase na dor, na mortalidade, na fragilidade e na estupidez humana inçavam a cultura de amonestaçons, advertências e tabus. O sofrimento era familiar e mais que admisível, obrigado. Na sociedade do mercado total, como o psiquiatra Viktor Frankl observou, os níveis de bem estar físico e tecnologia médica alcançárom níveis que roçam a utopia; em troca, enfraquecêrom-se as noçons de sentido e missom vital, e isso coloca o ser humano numha esfera do sofrimento inédita. “Quando umha pessoa nom pode topar um sentido profundo, um significado da vida, distrai-se com o prazer”, escreveu o austríaco. A lista inacabável de comportamentos compulsivos e adiçons remitem a este baleiro.
Incapacitaçom
Os foros de internet estám inçados de testemunhas, que corroboram as próprias vivências do nosso contorno: “falta-me o ar, tenho sudoraçons, e arremoinham-se-me pensamentos”; “penso que morro e nom dou reagido, nem para diante nem para trás”; “cada pouco estou a pensar quando vai vir o próximo ataque”; “continuo a preocupar-me por se me dá algo, já que esse sintoma de nervos, como se me apretassem a cabeça, nom desaparece”. E por se o padecimento extremo nom fosse castigo abondo, a estas manifestaçons somam-se consequências que deterioram a sociedade no seu conjunto: dificuldade para as relaçons humanas por desconfiança e hermetismo, brotes de ira com os semelhantes, fatalismo e incapacidade de desenvolver planos de médio prazo, comportamentos compulsivos e impulsivos…o desequilíbrio individual, se se espalha, pode virar em certo desequilíbrio social.
Neoliberalismo e ansiedade
Os estudos maioritários cuidam-se muito de pôr em relaçom os índices de ansiedade com o modelo social e económico que sofremos, e também de vinculá-lo com a laxitude moral e a falta de sentido que reina no mundo occidental. O que nom podem contornar é a dimensom do problema: pois se o Reino de Espanha aparece nos rankings como o quarto de Europa nos índices de depressom, com o 5% de populaçom atingida, a dimensom da ansiedade é no Estado ainda maior. Segundo o Inquérito Nacional (Espanhol) de Saúde, que elaboram o Ministério de Sanidade e o INE, um 7,36% da populaçom padece ansiedade. Entre as mulheres, a cifra quase alcança o 10%. Se fixermos caso do Barómetro Juvenil de Vida e Saúde que publica a Fundaçom de Ajuda à Drogadiçom, comprovaremos que em 2017, os casos de ansiedade-crises de pánico e outras fobias sociais alcançavam o 11% da juventude do Reino.
Na mídia empresarial, Luis Manuel Lozano, professor de Psicologia da Universidade de Granada, atreveu-se a apontar causas sociais do fenómeno: “o perfeccionismo e exigência que pedimos aos moços de hoje associam-se com maiores níveis de ansiedade”. Mesmo um dos jornais do neoliberalismo hispano reconhece que “o aumento dos trastornos depressivos e de ansiedade é o sintoma dum ecossistema laboral e social que gera disfunçons do estado de ánimo (…) O inquérito de saúde que publica o Ministério de Sanidade constata que nos últimos doze anos triplicou-se o uso de hiposedantes e os hospitais atendem cada vez mais casos de crises de ansiedade.” Os ataques a idades mais temperás, aponta o redactor, “tenhem a ver com a sensaçom geral de incertidume ante o futuro e com as exigências dumha cultura muito competitiva e um horizonte profissional em que há mais demandantes do que ofertas de emprego. Cumpre engadir a isto a crescente desregulaçom das relaçons laborais.” Por dizê-lo dumha maneira mais clara, já que o jornalista nom se atreve: o avanço do capitalismo, o curte de direitos, e a prevalência do todos contra todos sobre a cooperaçom e o bem comum, causam cada vez mais vítimas. Também na saúde mental.
Maus usos das redes sociais: o monstro virtual
Sofredores e estudiosos da ansiedade coincidem: tal estado anímico parte sempre de considerar o mundo que nos rodea como alheio, frio, incontrolável, hostil, e mesmo letal. Quanto mais sozinhos estamos, mais vulneráveis nos sentimos; e quanto mais estímulos impossíveis de processar recebemos do exterior, mais se agudiza a nossa impotência. As redes sociais, especialmente de se utilizarem sem critério, agudizam ambas as tendências. Estám desenhadas para isolar-nos e substituir o trato real por um intercámbio calculado de informaçom e interesses. E a um tempo, expom-nos a tal cantidade de informaçom e estímulos (muitos deles catastróficos e apocalípticos) que fomenta a sensaçom de pedermos pé neste mundo. O professor Lozano opina, sobre este particular, que a maior dependência das redes, mais se agravam as tendências ansiosas. Estas podem virar patológicas se nos deixamos devorar pola dinámica dos “likes”. Afectam especialmente os adolescentes, mas também condicionam o agir dos famosos reais ou aspirantes, dos intelectuais, e até do cidadao médio que procura calor na rede: “antes também se exigia um modelo de beleza e um estátus social, mas nom tínhamos umha ferramenta no bolso para no-lo recordar a todas horas”, diz o professor de Granada. No Reino Unido confirmam esta afirmaçom: há três anos, a Royal Society of Public Health, com a colaboraçom da Universidade de Cambridge, concluía que mais de duas horas ao dia nas redes sociais agravava o risco de trastornos ansioso-depressivos nas pessoas mais novas.
Adaptaçom e rebeliom
A psicologia positiva converteu-se no livro de campanha do capitalismo decadente. É a ferramenta de adaptaçom mais exitosa às condiçons de vida de hoje. Assim, os sofredores parecem nom ter mais remédio que recorrer a um estoicismo egoísta para eliminar palpitaçons, pensamentos confusos e indecisons. Num novo darwinismo, o neoliberalismo festeja “os problemas como oportunidades”, “a tensom como estímulo”; a entrega do soldado invulnerável ao trabalho: som os karoshi japoneses, executivos que roçam a imolaçom na empresa, ou os brokers anglosaxons que se gavam do “pull an all-nighter” até o esgotamento total (trabalhar toda a noite a fio em jornadas maratoniananas para cumprir os objectivos contáveis).
Querendo desprezar a lógica neoliberal do sacrifício, a maioria da esquerda enganou-se e desprezou também o estoicismo. Mas sem este dificilmente poderemos sair com enteireza destes tempos impiedosos. Claro que para ser realista, e humanista, deve encaminhar-se a fins nobres, que som sempre fins colectivos. Eis o sentido que apregoava Viktor Frankl, confiante de que a sua força varresse a ansiedade, a neurose, e todos os fantasmas que nos cercam.