Há duas semanas, um resultado eleitoral contra-corrente chamava a atençom na Europa: na República da Irlanda, e pola vez primeira em quase cem anos de história política, um partido de esquerdas tem a oportunidade de liderar um governo. No passado, todos os executivos estiveram em maos da direita, na dupla versom de Fine Gael ou Fianna Fail. Num continente que vira cara a extrema direita nas citas eleitorais, esta vitória debe ser analisada.
Na cita eleitoral mais recente, celebrada em maio, o Sinn Féin tivera um resultado mau ou medíocre: perdera representaçom no poder local e no parlamento europeu. O presidente irlandês na altura, Taoiseach Leo Varadkar, pretendia aproveitar esta fraqueza aparente do republicanismo para reforçar a sua hegemonia. Porém, a campanha eleitoral, protagonizada fundamentalmente por Mary Lou MacDonald e Eoin Ó Broin conseguiu um eco importante, dirigindo-se fundamentalmente à classe trabalhadora da Ilha, com um discurso social-democrata em favor dos serviços sociais: construçom de vivenda pública, controlo da evassom fiscal, defesa da sanidade pública e gratuita, e reduçom da idade da reforma aos 65. O discurso coalhou numha populaçom vê o Sinn Féin um partido institucional, de esquerda moderada, longe da dinámica de confronto frontal com o imperialismo británico nas décadas de 80 e 90. Por outra parte, os efeitos de dez anos de curtes sociais fam-se notar, e em sectores como o sanitário, os efeitos das políticas da Troika som palpáveis: recentemente, a Associaçom de Consultores Médicos exigia o governo da República a declarar umha emergência sanitária nacional. Os curtes, segundo denunciou o partido republicano, atingírom também à rede de transportes públicos.
Certos analistas identificárom o discurso do Sinn Féin (popularizado no manifesto “Dar umha oportunidade aos trabalhadores e às famílias”) com o que o trabalhista inglês lançou na sua campanha em 2017: as linhas força deste discurso passavam por construir um serviço nacional de saúde, ampliar os direitos da classe trabalhadora, e desdobrar um ambicioso programa de construçom de vivenda social.
Pressom mediática
A integraçom do Sinn Féin na estrutura institucional da Ilha nom está a ser doada, e de facto os meios maioritários fam todo o possível para dificultá-la. Umha das acusaçons mais sérias partiu de vencelhar a Executiva Nacional do partido com prominentes figuras do IRA em Belfast, com o intuito de aguilhoar a indignaçom das vítimas da guerrilha. Dá-se o paradoxo de que estas acusaçons foram formuladas num ano atravessado polas polémicas da guerra: o governo da República decidiu comemorar como vítimas do conflito os chamados “Black and Tans”, um corpo de elite británico que cometera violaçons dos direitos humanos na guerra da independência. Por seu turno, o partido republicano decidiu continuar o baseamento do seu discurso nos direitos sociais, ainda que vindicou o passado com umha claridade que no Reino de Espanha seria motivo de censura ou juízo. Um dos seus directores de campanha afirmou que “nunca agochamos qual é a nossa tradiçom política. Nunca mantivemos em segredo que a luita do IRA de 1969 a 1997 foi legítima, e a nossas raizes no movimento som fonte de orgulho para os nossos activistas.”
Além disso, e como denunciou o Sinn Féin, meios como RTÉ e Virgin Media recusárom permitir a participaçom de Mary Lou McDonald no debate televisivo de líderes, com o argumento, que logo se revelou falsário, que apenas aqueles que aspiraram à presidência podiam concorrer.
Bipartidismo em debalar
A consequência mais relevante da vitória eleitoral republicana é o debalar do bipartidismo direitista irlandês. Segundo analisou o nacionalismo de esquerdas, a colonizaçom e posterior partiçom da Ilha em 1922 tem frustrado o desenvolvimento da vida política irlandesa, impedindo o desenvolvemento dumha cessura esquerda-direita na contenda institucional. As grandes divisórias dos partidos maioritários partem assim das suas posiçons respectivas sobre a questom nacional. A revoluçom irlandesa de 1916-1922 foi seguida dumha contra-revoluçom liderada polas classes médias do movimento nacional, favoráveis ao tratado com a Grande Bretanha. É esta facçom a que está nas origens do partido Fine Gael, e caracterizou-se por deslocar a mulher às margens da sociedade, aliás de aplicar umha política económica muito afastada da defesa da igualdade e dos direitos da classe trabalhadora. Fianna Fáil, que teoricamente se situa mais à esquerda que o seu rival, tivo a sua estreia no executivo em 1932, e contribuiu para o assentamento da Igreja católica como um poder fáctico. na Ilha.
As derivaçons desta ruptura do mapa eleitoral ainda estám por ver. Também o Partido Trabalhista e os Social Democratas, em si mesmos dificilmente distinguíveis, afrontam um panorama adverso, pois o seu discurso é, a grandes traços, equiparável ao do Sinn Féin em matéria de política social. Outros aspectos ainda estám por dirimir: a vitória republicana também fai abalar o pequeno espaço das formaçons trotskistas no Dáil (Solidarity e People Before Profit), que contam com representaçom parlamentar; e os vários deputados e deputadas independentes (a concorrência às eleiçons com esta fórmula é muito típica da política irlandesa, e tem a ver com redes clientelares) terám que negociar de maneira muito distinta com um novo governo, se este for republicano.
Unidade irlandesa
Até que ponto umha vitória eleitoral achega a Irlanda ao objectivo dumha república socialista de 32 condados? Umha das promessas do Sinn Féin é a aprovaçom dumha folha de rota e a celebraçom dum referendo. É seguro, quanto menos, que o debate da unidade vai fazer-se muito mais presente e intenso em toda a Ilha; o Acordo de Paz de 1998 contempla a celebraçom dum referendo, mas a sua autorizaçom corresponde ao Estado británico, e este só o permitirá se existir umha mobilizaçom social ampla nesta direcçom. Sectores do Sinn Féin confiam que o sector mais à esquerda do Partido Trabalhista Británico pressionem nesta direcçom, ainda que também lembram a sua implicaçom, no passado, na política de guerra contra prisioneiros políticos, no apoio à ocupaçom militar do Ulster, e mesmo na repressom das marchas polos direitos civis.
Tensons republicanas continuam
Ruairí Creaney, um dos organizadores da campanha do Sinn Féin, lembra que seja qual for a formaçom dum novo governo, as políticas de esquerda tenhem o seu lugar natural “nas comunidades, centros de trabalho e nas ruas, mais do que nos parlamentos.” Aliás, Creaney reconhece que os altos mandos da administraçom do Estado estám de maneira inerente “a serviço da direita”, igual que o capitalismo autóctone. A pregunta, doravante, é se os republicanos maioritários cumprirám as suas promessas num contexto adverso.
No Ulster, a tensom nom decai. A pressom da institucionalizaçom é importante e, ainda que no sul da Ilha nom tem tal intensidade, no norte percebe-se de maneira manifesta. Para o republicanismo dissidente ou histórico, o Sinn Féin adiou sine die o objectivo da independência e lançou-se a umha política de colaboraçom com os ocupantes.
Nas passadas semanas, e à margem da contenda eleitoral, o Sinn Féin aprofundava na sua política de enfrentamento frontal com o republicanismo contrário a qualquer pacto com o Estado británico. Em boa relaçom institucional com a PSNI (polícia norirlandesa), dirigentes nacionalistas davam crédito à tese policial de que o Novo IRA estaria a ameaçar com ataques contra o republicanismo oficial. Saoradh, um dos partidos que representa o indepentismo insurgente, reagiu com muita dureza às acusaçons. Num comunicado, Saoradh afirma que “as ameaças fantasmas permitem os líderes de Sinn Féin utilizar cinicamente o sacrifício de membros previamente assinados polas Forças da Coroa e os seus representantes.” No texto, Saoradh resume o seu ponto de vista sobre a integraçom republicana nas estruturas do Reino Unido: “Sinn Féin fai-lhe um fraco favor aos republicanos genuinos quando recruta para as forças da coroa; quando administra o governo británico; quando anuncia que apoia os tribunais militares do Estado livre e os tribunais especiais sem jurado; quando ceia com a realeza británica; quando implementa políticas de austeridade e pobreza; quando defende os traficantes de drogas…e outras desviaçons semelhantes da sua posiçom revolucionária, noutrora orgulhosa.”
*Fontes: “Sinn Féin’s Day Is Coming”, in jacobinmagazine.com, por Ruairí Creaney.
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