Um fantasma parece percorrer o nosso mundo, mas já nom é o do socialismo. Nas suas antípodas ideológicas, umha onda neo-conservadora ganha escanos, governos e referendos para as opçons políticas da ultra-direita, que da América à Europa chegam ao poder -por primeira vez desde a II Guerra Mundial- graças ao apoio popular. Ainda que na Galiza o crescimento de VOX nom é em termos absolutos tam preocupante como no conjunto do reino espanhol, a aproximaçom dos seus apoios eleitorais aos obtidos nas últimas eleiçons polo nacionalismo deve chamar-nos -antes que à frustraçom ou ao pánico- à reflexom. O pensamento de urgência (o que procura sair do ‘shock’ encontrando vias de sentido para umha situaçom incomprensível) nom deve ter medo a errar, escandalizar ou mesmo ofender, e algumhas das ideias que quero compartir hoje pode que fagam as três cousas. A principal delas é que o espanholismo ultra está a ganhar apoios entre pessoas que poderiam e deveriam ser politizadas polo nacionalismo galego.

Umha das explicaçons recorrentes dos sucessos eleitorais do Brexit, de Trump, de Bolsonaro, de Salvini ou de VOX é a que vinca no seu uso abussivo da moderna manipulaçom de massas através das redes sociais. É certo: sob a assessoria comum de Steve Bannon, todas essas campanhas soubérom aproveitar com sucesso os novos recursos da mercadotécnia hiper-segmentada, do controlo ideológico e da difussom viral de propaganda que oferecem Facebook, Twitter ou WhatsApp. O assunto é tam importante como preocupante, mas resisto-me a pensar que essa seja a principal causa das vitórias da ultra-direita: fazê-lo suporia afirmar que só um dos bandos pode e sabe utilizar esses meios, e que a sociedade atual é tam manipulável que a democracia parlamentar perdeu já todo o seu sentido. Procuremos, pois, razons mais profundas entre as tendências ideológicas e os sentimentos da cidadania, ainda que isso suponha reconhecer que as nossas derrotas nom som provocadas por injustas maos escuras, mas por adversários que conseguem ligar melhor com algumhas das pulsons sociais do nosso tempo.

Parece claro que as posiçons políticas nom só expressam interesses, mas também canalizam emoçons individuais e colectivas: o medo, a insatisfaçom, a indignaçom, a raiva ou a audácia som o combustível de muitos movimentos políticos (ainda que estes, como nos demonstrou o primeiro terço do século XX, podam estar alimentados pola mesma energia social e levar os seus tripulantes em direçons opostas). Na situaçom atual, talvez umha das claves do sucesso de VOX radique na sua capacidade para politizar em opçons espanholistas algumhas tendências psico-sociais importantes do nosso tempo; a saber: o rechaço ao sistema político e a insegurança gerada pola instabilidade dos referentes identitários.

A repugnáncia crescente que provocam as organizaçons, instituiçons e profissionais da política nom é nova, e politizou-se por primeira vez (daquela, em parámetros de esquerda) no 15M, com os seus “nom nos representam” e “demasiado chouriço para tam pouco pam”. Dela soubo aproveitar-se Podemos, cujos melhores resultados vinhérom depois de apresentar às eleiçons “cidadaos de a pé”, sem currículum institucional, organizados em algo que nom era mais um partido, e distintos da “caste” de políticos profissionais. A diferença daqueles, é claro que nem Donald Trump nem Santiago Abascal som anti-sistema, mas o importante é que sabem vender-se como tal. Ainda que económica, profissional e vitalmente pertencem ao núcleo duro do poder, culturalmente som percebidos como ‘outsiders’, graças ao uso que fam da incorreçom política. E é que, da mesma forma que a um aristocrata se lhe reconhece polos seus modais na mesa, a linguagem medida, cuidada e aséptica delata os políticos de toda a vida (que respondem as perguntas com discursos tam vazios como labirínticos, que temem mais o erro que a mentira e que -em definitiva- nom falam ante os micros igual que num bar). Frente a eles, cada vez mais gente parece premiar os discursos sem complexos (mesmo os exabruptos), porque na era da imagem e o retoque fotográfico, mais do que a veracidade, premia-se a autenticidade.

O outro vector explorado -a crise de identidade- é consequência directa desta modernidade líquida que tam bem descreveu Zygmunt Baumann, na que a dissoluçom de todas as ligaçons fortes (a um território, a umha comunidade, a umha família, a um trabalho) que nos mantinham fisicamente atados e psicologicamente estáveis, deu lugar a umha sociedade de indivíduos tam livres e tam inseguros como umha casca de noz em meio do Oceano. As identidades limitam um mundo de possibilidades (estéticas, ideológicas, religiosas, linguísticas, comportamentais… ) virtualmente infinito, definindo-as de forma parecida a como um traço do lápis desenha figuras sobre o branco ilimitado do papel; a sua difuminaçom provoca em nós instabilidade, insegurança e angústia. Frente as certezas rígidas do velho mundo sólido, no que a gente sabia quem era (esse mundo no que um “e tu de quem ves sendo?” dava informaçom sobre o passado, presente e futuro dumha pessoa), a modernidade líquida deixa-nos à deriva, alimentando a necessidade ansiosa de reconstruirmos ou reinventarmos referentes identitários que deam rumo às nossas vidas. Essa ansiedade é umha das vias de penetraçom da proposta da ultra-direita, que oferece novamente referências claras e sólidas com as que ligar: frente à crise do projeto nacional espanhol, patriotismo “rojigualda”; frente à crise da família e os roles de género, reivindicaçom da masculinidade tradicional e negaçom do machismo.

Agora bem: o galeguismo deveria ser bem cuidadoso à hora de distinguir o seu rechaço beligerante do neo-franquismo como soluçom, da atençom e o respeito que merecem as profundas crises sociológicas que se estám a manifestar como problema. Porque o projeto nacional galego bem poderia converter-se na resposta democrática e libertadora a essas mesmas demandas de des-institucionalizaçom, identidade e tradiçom.

No que tem a ver com as formas de fazer e expressar a política, o nacionalismo galego nom teria mais que desandar o andado, que voltar às origens. Durante as últimas décadas, um movimento essencialmente popular, com umha força militante composta maioritariamente por sectores obreiros e labregos que falavam (de facto, literalmente) o idioma da gente, centrou os seus esforços em moderar e profissionalizar a sua imagem, achando que os trajes de chaqueta e o registro culto o tornavam mais respeitável. Aconteceu que, quando por fim o conseguiu, os critérios sociais do que merece confiança comecárom a mudar, e a gente agora suspeita de todo aquilo que cheire a impostura e correçom política. Se se me permite a brincadeira, é um processo semelhante ao que vivirom as croquetas congeladas: de valorar-se a sua perfeiçom industrial, passou-se a um rechaço da comida prefabricada que prefere as irregularidades e imperfeiçons “caseiras”… até o ponto de que hoje -como também fai o marketing político- a indústria fabrica croquetas com procurada apariência artesã. O nacionalismo nom teria que inventar-se nada: simplesmente favorecer o acesso à portavozia das muitas e muitos galegos orgulhosos, honestos e directos que militam nas suas filas. Outra cousa é que as dinámicas de controlos e equilíbrios partidários podam permitir a espontaneidade que exigiriam portavozias assim.

Por outra banda, o rechaço social ao sistema político e às suas instituiçons é canalizado polo neo-franquismo através de umha proposta re-centralizadora e ultra-liberal, que denuncia os parlamentos autonómicos ou as conselherias de perfil social como “chiringuitos” políticos que cumpre eliminar. O sesgo ideológico desta escolha é evidente desde o momento em que entre estes “chiringuitos” nom se nomeia nunca o mais famoso polo seu dispêndio e a sua falta de legitimidade democrática: a Casa Real. E, porém, a desconfiança cara a utilidade das instituiçons do Estado e dos seus profissionais pode (e deveria) ter umha interpretaçom postiva para quem entendemos que o nosso país nom foi colonizado pola chegada de tropas ou colonos espanhois, mas pola ocupaçom por parte das instituiçons e do quadro jurídico-político do Reino dos espaços fundamentais da vida económica, social, política e cutural do nosso povo. Em definitivo, nom deveríamos ter reparo em reconhecer que sobram “chiringuitos” dos que vivem muitos mangantes, mas que a alternativa nom tem de ir pola via de centralizar o Estado, mas de democratizá-lo: por pôr apenas alguns exemplos, para o nacionalismo galego sobram as Delegaçons do Governo, as Deputaçons Provinciais e muitas cámaras municipais, e botam-se em falta assembleias vizinhais (com as competências que hoje tenhem os concelhos) em bairros e paróquias rurais.

A reivindicaçom da identidade -e da comunidade de pertença que ela supom- vem sendo, se calhar, outro dos eixos descuidados polo galeguismo, em consoáncia com as orientaçons mais cidadanistas e menos patrióticas do pensamento progressista. Mas no contexto das sociedades líquidas, globais e hiper-conectadas de que falavamos acima, as crises de identidade manifestam-se de formas bem materiais (e o consumo crescente de psico-fármacos da boa conta disto), empurrando os indiuvíduos a umha procura activa de substitutos que sejam capazes de achegar algo de sentido ao nosso dia-a-dia. Disso vivem as diferentes tribos, seitas, filosofias “new age” e modas virais do nosso tempo, e som conscientes as empresas de marketing que, mais do que produtos, o que nos vendem som “formas de ser” (nom por acaso, a campanha mais potente de exaltaçom da galeguidade dos últimos anos nom foi lançada por ningum movimento ou instituiçom, mas por um supermercado). Os símbolos compartidos, os referentes históricos ou os relatos épicos que alicerçam o patriotismo constituem um elemento identitário tam poderoso que até os movimentos internacionalistas fôrom capazes de renunciar a eles (e por isso anarquistas e comunistas se emocionam também ante hinos, bandeiras e mártires). Frente a exumaçom da Espanha “rojigualda” e o Cid Campeador, o nacionalismo galego nom deveria ter reparos nem dificuldades em oferecer respostas claras, próximas e dignas a quem procura umha identidade da que orgulhar-se.

Por último, som da opiniom de que há um transfundo de saúde e sentido comum em certa reaçom conservadora a um mundo que cámbia em progressom geométrica, e que essa reacçom pode ser politizada de umha perspetiva humanista e galega. Tem-se dito, com acerto, que frente o significado comumente admitido, os verdadeiros conservadores somos nós: frente umha direita que quer arrassar com todo, somos nós quem queremos conservar os direitos, o território, a língua, as relaçons humanas, os cultivos sustentáveis, a propriedade em mao comum, os compromissos, os rios, a memória e todo aquilo que constitui a infraestrutura de umha Galiza bem mais habitável do que a prometida polo apologetas do progresso infinito. O discurso futurista tem-nos apresentado umha tradiçom escura e opressiva da que pouco há que se salve (apenas o que seja susceptível de ser tratado folclórica ou turisticamente), e um rural que talvez pague a pena resgatar geograficamente (fazendo chegar a ele o 5G e as infraestruturas e serviços da vida urbana), como umha extensom pintoresca da cidade, mas nom culturalmente. E, porém, é tam possível como necessário um relato libertador da cultura e a vida tradicional galegas, que além dos seus componentes de sofrimento e opressom (que existem, como em toda a parte), reivindique a sua realidade de autonomia, comunidade, sentido ou sustentabilidade. Umha vida de ligaçons fortes coas pessoas e com o território (que conlevava conflitos, sim, mas também compromissos), que –a diferença da vida moderna- era diferente em cada país, e através da qual o nosso povo configurou a sua identidade nacional. Em liguagem “millenial”: se a cultura é o sistema operativo da vida -hoje global e em atualizaçom permanente- é lógico que um número crescente de pessoas se sinta obsoleta cada vez mais rápido, ou ache em falta funcionalidades que em cada novo lançamento vam sendo retiradas, demandando um “downgrade” a versons anteriores. Ante esta realidade, o galeguismo devesse fazer valer os melhores aspectos da cultura tradicional galega, nom só como um património a salvar, mas também como umha inspiraçom para a reconstruçom, nas nossas próprias claves, de umha Galiza um pouco mais sólida e mais humana.

Quando o fantasma que percorria o mundo era o da esquerda revolucionária, o nacionalismo galego soubo acertar situando a defesa da Galiza ao abeiro da principal tendencia política e social da época. Hoje som outros os ventos que sopram, e fam-no contra um dos alicerces fundamentais do mundo no que levamos vivendo as últimas décadas: a cultura política da social-democracia, que seguiu mais ou menos fielmente a prática totalidade do arco parlamentar. Nom podemos permitir que o principal barco a navegar com esse vento seja o da ultra-direita, cujo rumo nos leva cara a desapariçom do nosso país e a liquidaçom dos direitos conquistados. Mas talvez podamos situar a popa do nosso projeto nacional cara esses ventos que reclamam irreverência política, reformas institucionais e conservar algo do mundo tal e como era quando nascimos. E, parafraseando um pensador do que gosto, apresentar o nacionalismo galego como esse projeto revolucionário no económico, reformista no político e conservador no antropológico e no ambiental. Porque, com o mesmo vento, é possível navegar em diferentes direçons.