Segundo a divulgaçom científica promovida pola mídia, os comportamentos humanos podem ser estudados estatisticamente. As conclusons de tais estudos, sistematizadas, oferecerem-nos possibilidades de escolha racional: “você é o autor da sua vida”, diz um conhecido livro de auto-ajuda. Paul Dolan, investigador da Universidade de Londres, manifestou a ‘The Guardian’ que é mui necessário levar em conta “os novos indicadores de sucesso, nom os velhos.” No mundo que andamos, “o subgrupo populacional mais saudável e feliz é o das mulheres que nunca casárom e nunca tivérom filhos”. Na obra “Desenha a tua felicidade”, quantifica os prazeres e sofrimentos de pessoas casadas, divorciadas, separadas e viúdas. Suscreve assim as teses políticas de Rebeca Traiser, umha feminista e liberal norteamericana que diz que “a revoluçom social que aí vem é a das mulheres singles”. Ao que parece, umha importante maioria da populaçom occidental suscreve, com as suas escolhas, esta posiçom na vida: na Europa, o 33% das pessoas (nom apenas as mulheres) vivem sozinhas. Na Galiza, umha parte da gente nova argumenta que a falta de emprego estável e políticas sociais dificultam a paternidade; umha outra, mais sincera e descarnada, diz que nom quer filhos para “nom perder opçons e liberdade nesta vida.” E se a solteiria nom foi o caminho decidido, sempre cabe certa rectificaçom: no Reino de Espanha, por exemplo, e segundo dados oficiais, 7 de cada 10 matrimónios rematam em divórcio. A condena ao desentendimento, por vezes traumático, semelha umha maldiçom por nom ter seguido o ditado maioritário dos tempos: soidade, cálculo, auto-suficiência.
Há uns dias, um jornal de grande tiragem falava também da superaçom de vínculos, neste caso territoriais: Beatriz Blanco e Borja López, dous doutores galegos em Química orgánica, com exitosas carreiras laborais no nomadismo: “De Austrália a Berlim, passando por Inglaterra”, titula o periódico. Sorrintes, com óculos de sol e roupa desenfadada, baixo o sol austral, dim no cabeçalho ao leitor galego: “Emigrar é umha atitude”. No blogue neoliberal “Job and Talent”, seguindo de novo os princípios da psicologia positiva, anima-se-nos a romper as ancoragens, nom só territoriais, senom também as dos horários fixos e as rotinas contratuais: “é possível algumha vez teres-te sentido desbordado polo trabalho, e ficares sem tempo nem para tomar umhas cervejas com os teus amigos, ou para fazer desporto. Condiçons de trabalho versáteis (…) som precisas para evitar o estrês laboral e para aumentar o rendimento dos trabalhadores.” Tele-trabalho, intermitência das jornadas laborais, calendários móbeis, eis a oferta.
Se as relaçons humanas, como se tem dito, som a arte de manter a distáncia justa, cada vez escolhemos mais relaçons interruptas, e decidimo-nos a pôr mais metros entre nós e os nossos congéneres, rodear-nos de fossos de segurança e evitar que nos firam. Que nos decepcionem as namoradas, que nos abafem os territórios, que nos supervisem os vizinhos ou que nos atem os trabalhos. Como explicou o psiquiatra Guillermo Rendueles, a figura moral do capitalismo seródio é o “egoísta inteligente”, um hábil calculador do trato, que há tempo se desprendeu de noçons como sacrifício e generosidade. Desde que a existência isolada é impossível, o trato com a internet substitui os vínculos: “(a rede) fornece um sentido vital, umha identidade e umha pseudocomunidade virtual sem ter que submeter-se às exigências da inteligência social nem assumir o duro trabalho de criar e manter o eu ou cultivar a amizade no mundo real.” Quando estes indivíduos exaltados tenhem que conviver forçosamente em certas situaçons, nom demoram em mancar-se: desavinças e acossas, ofensas recíprocas, sentido de dignidade espezinhado, injúrias imperdoáveis. Nom nos aturamos. A disciplina do trato humano atrofiou-se tanto como a massa muscular dos ‘hikikomori’ japoneses, esses adolescentes que vivem no seu quarto permanentemente ligados à rede e sentados numha cadeira, sem contacto físico com os seus semelhantes.
Claro que existem justificaçons para esta forma de estar no mundo. Os liberais, da extrema esquerda à extrema direita, afirmam com muita razom que o ‘eu’ independente e sem vencelhos salvou de muitas tiranias: a do homem sobre a mulher no casal, a da comunidade local contra o dissidente ou heterodoxo, a da fábrica fordista, mecánica e híper-regulada, sobre o proletário submetido à cadeia de montagem. “A cidade fai o homem livre”, afirmava um dito medieval, e o capitalismo sem território nem sociedade é a forma hiperbólica da cidade, da reuniom azarosa dos anónimos. Por outra parte, os defensores dos vencelhos ancestrais caem sempre na trampa de recriar o passado com grande idealismo, esquecendo que na nossa memória nacional ainda estám mui perto as tiranias da comunidade. Na defesa do pequeno grupo frente ao isolamento dos ególatras, Chesterton soubo ver mui bem que a chave estava precisamente onde nunca se assinala: “alguns sábios da nossa decadência lançárom um sério ataque contra a família. Impugnárom-na e eu acho que erroneamente; e os seus defensores defendêrom-na, e eu acho que erroneamente. A defesa comum da família é que, nas tensons e incertezas da vida, é pacífica, tranquila e unánime. Mas há outra defesa da família possível, e ao meu ver evidente; esta defesa é que a família nom é pacífica, nem tranquila, nem unánime.” As grandes sociedades, anónimas e impessoais, continua o inglês, “servem para promocionar a estreiteza. Som maquinárias para guardar o homem sensato e solitário de todo o que há de amargo e gratificante nos compromissos humanos.”
Dito de outra forma, ainda que a utopia do mercado e das tecnologias do isolamento nos leve a pensar o contrário, precisamos da cooperaçom e o convívio. Necessitaremo-lo, possivelmente mais cedo do que tarde, quando este modelo produtivo insostível extenda as suas disfunçons e exclua mais e mais pessoas da vida digna; e precisamo-lo hoje mesmo, se queremos que dinámicas de luita colectiva ponham freo à usurpaçom da soberania e à impunidade do poder. Claro que a cooperaçom e o convívio som quase sempre, ásperos, injustos, porque é a própria vida a que é áspera e injusta. Ainda no caso de sermos quem de edificar umha sociedade razoável, sem doses de sofrimento excedente e absurdo, a nenhuma pessoa minimamente desperta se lhe escapa que somos animais conflitivos, caprichosos, por vezes violentos, e tanto dotados para a virtude, como para as formas mais espantosas de mal. Foi precisamente um ilustrado optimista (e nom um pessimista reaccionário) quem o deixou mui bem escrito: “com um lenho torto como aquele do que foi feito o ser humano, nada pode forjar-se que for totalmente recto.”
Militáncia e convívio
Soidade, narcisismo, egolatria, som problemas que petam na porta de todos nós, enfrentá-los é acuciante. Também e mui especialmente nos espaços politizados, que padecem como nenhum outro a moda do indivíduo exacerbado. O problema é conhecido e, ainda que nom se verbalize, dá lugar a distintas respostas.
Na esquerda maioritária em occidente, apostou-se por assumir com a boca pequena este novo perfil psicológico como base de todo projecto realizável. Nom é surprendente, desde que as produçons teóricas destes movimentos já nom venhem, como na tradiçom revolucionária, de grandes batalhas livradas com a vida, senom de exercícios intelectuais do funcionariado, normalmente universitário, que gosta de promocionar-se com palavras provocadoras e rarezas. A palavra ‘militante’ foi arrombada, com toda a sua associaçom a longo prazo, dignidade, esforço bélico e dimensom histórica. No seu lugar, situou-se o termo ‘activista’, um invento da sociologia académica norteamericana que sulinha os surtos espontáneos e as ‘individualidades’, forma rimbombante de chamar as pessoas; na sua versom extrema, a gente conscienciada ‘lança dinámicas’ e ‘afirma singularidades’, que é a forma elegante de dizer que nom partilha sentidos transcendentes nem atura junta muito tempo. Há umha resposta tentadora a esta deriva, que é afirmar a lealdade seitária (no seu sentido originário), e fazer da organizaçom um substitutivo de todas aquelas instituiçons sociais sólidas que forom perecendo. Mas isto nom nos leva mui longe: as seitas sempre adoptam um tom de rencor, de denúncia da incompreensom universal, e acabam por rodear-se dum aura de antipatia generalizada, que as fai mais bem inúteis e acaba congelando-as. Além de inútil, o repregamento é empobrecedor e priva-nos da vida. Chesterton, de novo, assistiu com muita lucidez a este processo: “quanto mais ampla e elaborada é a nossa civilizaçom, mais deixa o clube de ser um lugar onde o homem pode ter umha discussom ruidosa, e vira num lugar (…) cujo objectivo é que o homem estiver cómodo; fazer que um homem estiver cómodo, e fazê-lo cómodo, é o contrário de fazê-lo sociável. A sociabilidade, como todas as cousas boas, está cheia de desconfortos, perigos e renúncias.”
Pablo Neruda transmitiu num poema este equilíbrio complicado entre tensom e entendimento, pessoas e colectivo, interesses próprios e gerais. Intitula-se “Ao meu partido”, e nele agradece à organizaçom comunista ter-lhe dado “a fraternidade com os que nom conheço”, “a força de todos os que vivem”, aprender-lhe “a dormir na cama dura dos irmaos“, e a ver umha cousa tam difícil como “a unidade e a diferença dos homens.”
O nosso independentismo bem puido (e por vezes fijo-o) escorar cara a amargura impotente dumha seita, e a sua procura de harmonias impossíveis. Porém, e apesar do seu pequeno tamanho, foi um espaço de encontro de muitíssimas diferenças por volta dum amor e dum ideal: umha mestura de geraçons, de ofícios, de formaçons académicas, de origens geográficas, de habilidades e caracteres, de fílias ideológicas e fóbias pessoais. Nom foi, nem é, um espaço de conforto, porque a vida nom é um espaço de conforto, nem a acçom colectiva o consenso a distáncia construído na internet. Foi, e é, umha escola de vida. Como tal, pode ajudar-nos a ser melhores e, como tal, pode demonstrar que a arte do entendimento é capaz de provocar mudanças mais profundas que milhares de existências isoladas a desfrutarem a liberdade no vazio.