(Imagem: laizquierdadiario) Um 9 de janeiro de 1927 nascia em Rio Negro, na Argentina, o jornalista e militante Rodolfo Walsh, que combinou como poucos a dedicaçom à escrita e à organizaçom revolucionária. Caiu baleado em Bos Aires em março de 1977, trás resistir a tiros a sua execuçom, por um esquadrom da morte do chamado eufemisticamente ‘Processo de Reorganizaçom Nacional’, na realidade umha ditadura cruenta. No dia antes, deitara nas caixas dos correios o conhecido texto ‘Carta aberta dum escritor á Junta Militar’. O texto é umha peça magistral de jornalismo de investigaçom e denúncia militante que merece a homenagem de meios alternativos como o nosso.
Walsh tinha sangue irlandês, e nasceu numha família abastada, conservadora e católica, na província de Rio Negro. Dotado para as letras desde idade temperá, iniciou os estudos de Filosofia em Bos Aires, mas acabou por deixá-los e dedicou-se a vários trabalhos eventuais. A maior parte da sua primeira actividade centrou-se no mundo jornalístico e editorial: fijo incursons na literatura e na ediçom na década de 40. A sua primeira orientaçom política levou-no a um nacionalismo sem conteúdo esquerdista, do que mais tarde ele renegará.
O seu compromisso aberto contra a opressom ficou de manifesto com a publicaçom de ‘Operaçom Massacre’, onde redigiu a crónica, com objectividade e paixom, da vulneraçom de direitos humanos que acompanhou a ditadura de Aramburu em 1957. Sem sabê-lo, Walsh estava a inaugurar um género novo, a novela de nom ficçom, que no norte ia fazer célebre o romancista estadounidense Truman Capote. O jornalista entrava assim decisivamente na convulsa história dum país que ensaiava os primeiros modelos de Estado Providência com o peronismo, e que começava a sofrer pressons do capital financeiro do norte, desejoso de condicionar o modelo político e económico.
A viragem para a esquerda de todo o Continente achega Walsh a teses revolucionárias. Afincado temporariamente em Cuba, especializa-se em serviços de desencriptaçom, e diz-se que ajuda a antecipar o ataque norteamericano em Bahía Cochinos. García Márquez, que partilhou com ele inciativas mediáticas como ‘Prensa Latina’, dixera dele que ‘foi o homem que se antecipou à CIA’.
Guerrilha e pensamento
Com a Argentina mergulhada no turvilhom da luita de classes nos primeiros 70, Walsh achega-se às Forças Armadas Peronistas, logo Montoneros. Polas suas dotes analíticas e nível de compromisso, chegou a ser um oficial da guerrilha, desenvolvendo fundamentalmente tarefas de imprensa e inteligência. Conhecido como ‘Esteban’, ‘El Capitán’ e ‘Profesor Neurus’ na clandestinidade, continuou a combinar o desenho táctico e estratégico com o jornalismo de investigaçom.
A meados dos 70 começa o seu distanciamento da guerrilha montonera, à que acusa de desvincular-se do trabalho social e de massas; assim que se impom a Junta Militar, Walsh assinala que a dirigência montonera nom fora quem de ‘prever a ditadura’, dominada por teses ‘triunfalistas e militaristas’. A ruptura fai-se inapelável, ainda sem curtar nunca os vencelhos ideológicos e emocionais com os insurgentes. De facto, pessoas tam próximas como a sua filha, ou o amigo -militante e poeta Paco Urondo- caem abatidos polos militares na primeira fase da ditadura. A primeira, com apenas 26 anos, decidiu tirar-se a vida com o seu camarada Alberto Molina antes de cair nas maos dos repressores que a rodearam. Walsh dedicou-lhe estas palavras a María Victoria, ‘Hilda’ ou ‘Vicki’:
“Perguntei-me se a minha filha, se todos os que morrem como ella, tinham outro caminho. A resposta abrolha desde o mais fundo do meu coraçom e quero que os meus amigos a conheçam. Vicki puido escolher outros caminhos que eram distintos sem ser desonrosos, mas o que escolheu era o mais justo, o mais honroso, o mais razoado. A sua lúcida morte é umha síntese da sua curta, formosa vida. Nom viviu para ella, viviu para outros, e esses outros som milhons.”
Apesar da sua reubicaçom organizativa, Walsh seguiu fiel à sua dedicaçom mais querida, a denúncia através da palabra. Walsh e outras jornalistas fundam ANCLA (Agência de Notícias Clandestina), um gabinete segredo que repartia propaganda anti-ditatorial de mao em mao, chamando à contra-informaçom como forma de desobediência: ANCLA chamava o povo a “reproduzir a informaçom, a mao, a máquina, oralmente. O terror basea-se na incomunicaçom. Rache o isolamento. Volva sentir a satisfaçom moral dum acto de liberdade. Derrote o terror.”
Na dilatada trajectória de Walsh, um texto sobressai entre todos os demais: a carta aberta que dirige aos militares golpistas, informando de passagem ao país e ao mundo, com umha recompilaçom implacável de dados, da barbárie em andamento. Numha tensom entre rigor e paixom difícil de topar, Walsh nom se esqueceu tampouco de assinalar o menos visível. Pois por trás dos rios de sangue que corriam na Argentina, e das formas mais brutais de esmagamento da dissidência, existia um plano económico dirigido polos centros imperiais:
“os feitos (repressivos) que sacodem a consciência do mundo civilizado, nom som porém os que maiores sofrimentos trouxérom ao povo argentino, nem as piores violaçons dos direitos humanos em que vocês incorrem. Na política económica desse governo deve procurar-se nom apenas a explicaçom dos seus crimes, senom umha atrocidade maior que castiga milhons de seres humanos com a miséria planificada. (…) Ditada polo FMI segundo umha receita que se aplica indistintamente ao Zaire ou ao Chile, ao Uruguay ou a Indonésia, a política económica dessa Junta apenas reconhece como beneficiários a velha oligarquia gadeira, a nova oligarquia especladora, e um grupo selecto de monopólios internacionais.” Era o neoliberalismo o que estava de estreia no Cono Sul, e para se impor, nom só aniquilava guerrilheiros, senom todo o povo organizado:
“Depositários dumha culpa colectiva abolida nas normas civilizadas de justiça, incapazes de influirem na política que dita os feitos polos que som repressaliados, muitos desses reféns som delegados sindicais, intelectuais, familiares de guerrilheiros, opositores nom armados, simples suspeitosos que se matam para equilibrar a balança das baixas segundo a doutrina estrangeira de ‘conta-cadáveres’ que utilizárom os SS nos países ocupados e os invasores no VietNam.”
Reparaçom e memória
Em outubro de 2011, um tribunal federal condenou a quinze pessoas, parte deles militares, a várias cadeas perpétuas e longas penas de décadas de prisom aos assassinos de Rodolfo Walsh, numha medida que ainda assombra no Reino de Espanha, onde autores de atropelos semelhantes ganhárom total impunidade nos anos da Reforma. O Estado argentino reconciliava-se assim, quanto menos parcialmente, com os milhares de pessoas que pagárom com a vida o seu compromisso social. Nalguns casos, este compromisso fundamentava-se na utilizaçom da palavra e na defesa incondicional da verdade. Assim o exprimia Walsh no seu texto póstumo:
“Estas som as reflexons que no primeiro aniversário do seu infasto governo quigem fazer chegar aos membros dessa Junta, sem esperança de ser escuitado, com a certeza de ser perseguido,mas leal ao compromisso que assumim há muito tempo de dar testemunho em momentos difíceis.”