“Quem fora reichinho ruivo /pra cantar na tua figueira / pra nom sair do teu horto / e aninhar na tua silveira.” (leiras Pulpeiro) Saudamos o ano que nasce com um ave minúscula, de cantos variados, e mais cercana aos humanos que muitos dos seus congéneres: é o papo-ruivo. Casualidade? Nenhuma, pois as nossas devanceiras celebravam o tempo cíclico, e a transformaçom dum ano em outro, com a ajuda dum papo-ruivo e um carriço. Na Marinha, umha das comarcas galaicas de pegada céltica mais evidente, a tradiçom natalícia do Rei Charlo lembra-nos o papel que tinham os animais na organizaçom dos ciclos humanos.
Linneo classificou-no em 1758 baixo a etiqueta de Erithacus rubecula; a variedade que habita o occidente europeu chama-se exactamente Erithacus rubecula melophilus. Extende-se por toda a Europa, chegando até as Ilhas Açores e Madeira, Oeste de Sibéria e Norte de África. O nosso povo chama-o peizoque, paifoco ou pisco, mas sobretodo papo-ruivo. Os espanhóis nomeam-no ‘petirrojo’, os cataláns pit-roig, e as bascas txantxangorri. Como vemos, todos os nomes salientam a sua cor vermelha ainda que, na linguagem actual, diríamos que é laranja. A raiz desta imprecisom topa-se na história das cores, pois quando os povos baptizárom este paxarinho nom se concebia umha cor ‘laranja’, esta distinguiu-se a partir do século XVI, com a chegada à Europa da froita do mesmo nome.
O papo-ruivo é umha ave minúscula que nom passa dos quinze centímetros. Os machos e as fêmeas dificilmente se distinguem fisicamente, embora o seu comportamento é dispar. Todas as aves desta espécie amossam um peito muito redondeado, de cor intensa, e logo umha mestura de plumagens grisalhos, castanhos e de branco sujo.
O papo-ruivo é, entre nós, maiormente umha espécie sedentária, se bem parte dos que estes dias andam nos nossos campos e fragas som migrantes que descem das Ilhas Británicas aos mais benignos invernos peninsulares. O seu canto é formoso e variadíssimo, ornitólogos afirmam que pode ensaiar até mais de 1000 tonalidades diferentes. Tremendamente adaptativa, constrói os seus pequenos ninhos de carriça, folhas e erva na fenda mais insospeitada, e mesmo no chao. Alimenta-se de vermes e bechos, que caça de dia, e na invernia, de froitos e bagas. Nom está protegida na Galiza, e estado de saúde da espécie é bom. Qualquera observadora atenta pode vê-la em agras, bosques de ribeira ou parques.
Apesar da sua aparência cándida, é um pássaro tremendamente agressivo (nomeadamente os machos); bate-se duramente polo seu território com outros papo-ruivos, e mesmo com outras aves, e daí que a sua mortalidade em brigas seja relativamente alta. Paradoxalmente, é cercano a outros animais, e nom é estranho vê-lo nas cercanias de javarins. Aproveita-se do que foçam na terra os porcos bravos para extrazer insectos ou minhocas. A sua amizade com o ser humano é proverbial, mas nela nom existem apenas razons biológicas, senom também culturais.
O papo-ruivo na cultura
Estudos sobre o papo-ruivo afirmam que, em boa parte da Europa occidental, este passarinho mostra umha enorme cercania com o ser humano, do que se situa a pouca distáncia sem temer agressons. Na Europa continental, pola contra, aparece tam fugidio como qualquer umha outra ave. O papo-ruivo na Galiza enquadra-se nesse primeiro comportamento, e nas Ilhas Británicas, este acada a sua máxima expressom. Ingleses, galeses ou escoceses julgam-no ‘ave do jardineiro’, representa o grémio das carteiras e carteiros, e soi engalanar muitos postais do Natal. Esta conduta humana fijo-o muito confiado. Ao que parece, este respeito quotidiano tem raízes ancestrais em veneraçons mitológicas: na Escandinávia, o papo-ruivo era considerado um amigo do deus Thor e um ave vencelhada às chuvas e à trevoada; no mundo céltico, o seu rol era fulcral, e disso ainda temos testemunha no norte do país.
Em muitas zonas da Europa, fundamentalmente nos países de falas célticas, mas também em pontos da França ou Portugal, o papo-ruivo e o carriço associam-se a rituais da passagem do ano. O conhecido antrolólogo James George Frazer analisou o fenómeno na sua obra ‘A pola dourada’, e defendeu que já Grécia e Roma conheciam a lenda; no mundo angloparlante, a celebraçom recebe o nome de ‘Wren Day’ (dia do carriço ou dia do reizinho, e no espaço gaélico, Lá an Dreoilinn). Dependendo das zonas, o pássaro protagonista é um papo-ruivo ou um carriço. O primeiro foi identificado polo cristianismo como amigo de Cristo, pois diz-se que foi consolar a Jesus na crucifixom, e que manchou o peito com o seu sangue, daí a sua cor. O segundo é considerado ‘rei das aves’ pola sua inteligência, e por acreditar-se, nas lendas, que tem superado a águia na capacidade de voar bem alto.
Um documento de 1527 recolhe a prática -ratificada no século seguinte- da ‘Solta do Rei Charlo’ no 31 do dezembro, ainda que há interpretaçons que situam a festa no dia 26. A vizinhança tinha que ‘caçar um rei chiquito do papo colorado’, que depois era levado em procisom a diante do abade de Vila Nova de Lourençá. Diante da autoridade, o povo oferecia-lhe água e trigo, e logo o abade ficava com umha pluma do paxaro. A seguir, o pássaro era ceivado de novo, e tocava-lhe a quatro homens do povo volver caçá-lo. Webs especializadas na nossa mitologia, caso de galiciaencantada, apontam que o nome ‘rei Charlo’ relaciona-o com Carlomagno. A intromisom da Igreja no cerimonial poderia ter que ver com a vontade católica de se apropriar ou caricaturizar ritos pagaos.
Robert Graves, estudioso das raízes pre-cristás da Europa, tentou esclarecer a possível confusom interpretativa entre papo-ruivo e carriço a partir do caso irlandês: o papo-ruivo representa o espírito do Ano Novo e, na lenda gaélica, sai com umha vara de bidueiro a matar o carriço ou reizinho, que se agocha na hedra. O papo-ruivo tem o peito encarnado ‘por ter assassinado a seu pai’ (o Ano Velho). Trataria-se entom de mais umha versom de regeneraçom da roda da vida nos dias mais escuros do ano, em que o povo assiste e colabora na mudança de ciclo.
Na memória oral galega, a maior parte da tradiçom pre-cristá ligada ao papo-ruivo esmoreceu, mas permanecêrom cantigas como estas, que o vencelham ao carriço: “o pisco e mais a carriça/ traçárom umha bailada/ quando o pisco dava voltas / a carriça ponteava.”