No ano 1972 três reconhecidas autoras da literatura portuguesa, desde entom conhecidas como as três Marias, escrevérom um livro que marcou a cena política portuguesa. Publicada e aos poucos dias censurada e enjuizadas as suas autoras, Novas cartas portuguesas e o seu processo político internacionalizou-se e amplificou a sua mensagem. Um bom exemplo de como a repressom e a censura conseguem o efeito contrário ao esperado. Mais conhecidas do que lidas em Portugal, na Galiza passam desapercebidas para o público em geral e também para o feminismo: tam grande é o desconhecimento que temos das nossas vizinhas mais achegadas.

Três anos antes da queda de Salazar três mulheres colocárom a literatura portuguesa no centro da actualidade política internacional. Porque aquelas cartas eram e som política e porque o seu conteúdo é tam universal como o patriarcado que denunciavam.

As três autoras nos inícios dos anos 70

Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa decidírom no 1971 escrever um volume a seis maos. Entre os acordos que tomárom na hora da sua planificaçom estivo o de nom desvelar a autoria das diferentes partes do mesmo. As próprias autoras mais de quarenta anos depois da sua publicaçom nom aclarárom a responsabilidade de cada umha delas no material editado. Elas próprias refusam classificar genericamente o volume e, pola mesma, tal extremo converte-o em umha das obras mais originais da literatura portuguesa.

Lettres portugaises, o antecedente

Esta obra clássica da literatura francesa do século XII é revisitada polas autoras. Lettres portugaises som cinco curtas cartas de amor que umha freira portuguesa ( Sóror Mariana Alcoforado) lhe dedica ao seu amor Noel Bouton. Estám escritas no momento em que Portugal guerreava intensamente contra a Coroa de Castela apoiado pola França e rematando no 1668 com a sua independência. A obra foi publicada e traduzida de maneira anónima e hoje em dia a sua autoria é polémica. As autoras escolhem-na pola imagem feminina que nela se apresenta: umha freira, enclausurada e renunciando ao seu corpo e desejo focalizado o oficial francês. Retomando a obra, as três Marias evidenciam a actualidade dos conflitos sociais e psicológicos que enfrentava a freira de Beja.

Imagem da portada original da obra Lettres portugaises

Mariana Alcoforado será a voz feminina de maior destaque nas letras portuguesas desde o século XVII, erguendo-se como umha das obras de maior importância do barroco português. Com a recuperaçom do mito da freira, as autoras das Novas cartas portuguesas pretendem simbolizar o encerramento das mulheres no Portugal dos anos 70. Mariana é o estereotipo da mulher abandonada e submissa, que expressa umha adoraçom ou devoçom polo seu amor impossível. Esta mesma relaçom de amor-devoçom e a auto-victimizaçom de Mariana Alcoforado será o cerne onde as autoras vam focalizar, desmontando temas e formas.

A sua originalidade é máxima e nem só tem a ver com a temática ou a autoria polifónica. As autoras resgatam o género epistolar, tradicionalmente associado com a escrita feminina, e dam-lhe umha reviravolta total. Oferecem-lhe umha dimensom política ao inserir temáticas pouco frequentes no mesmo ( devotado normalmente ao intimismo e temáticas saudosas) e fam realidade a máxima de que “ o pessoal é político”.

Literatura em tempos de dictadura

Apartado Salazar do mando por questons de saúde, Novas cartas portuguesas viu a luz em tempos de Marcelo Caetano, sustituto fidel nas formas e fundos do seu predecessor. Tais governos ditatoriais, tivérom como oposiçom interna de primeiro destaque em Portugal a literatura. A censura preventiva nom podia impedir que num primeiro momento os livros saissem do prelo. A sua retirada fazia-se a escassos dias da sua publicaçom, quando já tinham chegado ao público. Isto foi o que lhe aconteceu ao governo caetanista: ignorante de que os movimentos feministas começavam a eclodir na Europa e nos Estados Unidos, o livro das três Marias conseguiu ser publicado na íntegra pola sua editora em 1972 Natália Correia.

Imagem do expediente de censura

O livro foi riscado de pornográfico e imoral, para além de ter conteúdo que ia em contra da moral da sociedade e do estado português. Desconhecedor como era na altura o governo marianista do novo pulo a nível internacional do feminismo, a censura nom pudo impedir que o livro saisse à luz e circulasse durante três dias.

O processo judicial e a internacionalizaçom

Finalmente o governo de Marcelo lança orde de paralisar a obra e dam cabo dos exemplares destruindo a maior parte deles. A PIDE interrogou separadamente as autoras, para poder melhor conhecer a autoria e maior responsabilidade das mesmas naqueles trechos da obra especialmente “amorais”. Fizérom-no sem sucesso, mas até o de hoje nengumha das autoras tem revelado o mistério. Da história do enjuizamento sabe-se principalmente polas diferentes entrevistas que as autoras oferecerom aos jornais da altura e com posterioridade.

Imagem do início do processo judicial

O julgamento iniciou-se em Outubro de 1973. Umha onda de solidariedade internacional fizo possível que na altura a obra circulasse polo mundo traduzido a dezenas de idioma. Nos Estados Unidos a sua traducçom intitulou-se The Three Marys, que é como se conheceu a nível internacional o processo judicial. Meios internacionais como The Times, CNN, Le Nouvel… fizérom-se eco do juízo. A defesa pública da obra foi asumida por autoras como Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Doris Lessing… Elas própias pulárom porque o processo fosse reconhecido como a primeira causa feminista internacional no marco de umha conferência do National Organitation for Women.

Solidariedade internacional com as três Marias

Finalmente, a revoluçom de Abril surprendeu a julgadores e julgadas e o processo ficou arquivado. A actualidade da obra no que tem a ver com a temática ( feminizaçom da pobreza, sexualidade e corpo feminino, ausência de liberdade…) e a sua forma genérica é indicutivelmente nos fai reflexionar sobre o presente e os reptos que hai por diante. A isto engadiremos mais umha imperativa: no equipo de investigaçom e projecto universitário chefiado pola Universidade do Porto em que se trabalha pola actualizaçom e melhor conhecimento das Novas cartas portuguesas estám presentes universidades de todo o mundo. De todo o mundo menos da Galiza. No contexto político que nos toca padecer, é a Universidade Autónoma de Madrid e a de Barcelona as que estám envolvidas no projecto.

Quando nom se podia dizer nada, quando as mulheres melhor estavam nas suas casas dedicadas a tarefas domésticas, as três Marias decidírom conjuntamente e em solidariedade pôr todo patas arriba e deixar claro que as mulheres tenhem voz e sabem falar: dos seus sonhos, dos seus problemas, dos seus desejos. Aconteceu no país vizinho e é um inspirador exemplo de força e potência feminista.