A começos dos anos 70 do século XIX, Alfredo Vicenti, jornalista republicano refugiado em Castrotiom, na Ulha, dá conta do seu encontro com um doutor galeguista, que também escolhera os arredores de Compostela para se retirar trás o fracasso político. O médico pertence a umha geraçom anterior e participara da revoluçom de 1846; quase trinta anos depois, reflete com amargura: “somos dous milhons homens com linguagem, alimentaçom e gostos próprios. Mais temos de portugueses, e é bem pouco, que de espanhóis. Nunca nos queixamos nem sublevamos, e apesar do nosso isolamento é-nos preciso pagar em dinheiro e carne de canhom por todas aquelas províncias estranhas que, quando gostam, declaram-se insolventes…nom poderíamos tentar um esforço para fazer que fosse nossa, exclusivamente nossa, essa querida e única pátria?” Na crónica de Vicenti, o cirurgiao cuida com especial atençom dos meninhos da aldeia, por palavras do vizinho Antom de Touceda, porque tem a esperança de os cativos fazerem “andando o tempo, o que nom puidemos fazer nós.”
O doutor, ainda na actividade política suspensa, conserva umha raiola de ilusom que aponta para o futuro. Vicenti, pola contra, é dos que suscreve já a derrota de qualquer projecto nacional galego. Nom concebe mais que salvar o salvável no cultivo das letras: “a nossa raça figura entre as famílias desgraçadas, a quem virou costas a fortuna, deixando-as cair no seio de nacionalidades maiores. (…) Já que a Galiza nom se acha em aptitude de figurar como naçom no vindouro, recolha-se quanto menos no santuário do passado, e guarde cuidadosamente a sua tradiçom, língua e costumes.“.
I
A consciência de derrota marcou muito forte as duas primeiras promoçons de galeguistas; esta derivou num estado de impotência e amargura que nom obedece a certo traço de carácter: é colectiva, cultural, e fará-se transgeracional. Aurélio Aguirre, apenas umha década depois do fracasso de 1846, escreve a Murguia, que marchara a provar sorte a Espanha, para lhe dar conta dos obstáculos que o abafavam na Terra: “Tu vives na vida (em Madrid). Eu morro na morte. Tu sementas com esperança de colheita. Eu semento infrutuosamente porque a minha semente esparege-a o vento das circunstáncias em terrenos cuja esterilidade conheces como eu, e como quase todos os filhos da Galiza.” Camilo Álvarez de Castro, em correspondência com o de Arteijo, justificava assim a sua fuga do país: “esses galegos que nom dam um peso para alentarem quem trabalha para erguer a honra do seu país, som umha gente que cumpre deixar como cousa perdida. Nom tenhem pulo mais que para se desgarrarem, e para viver entre as imundícias mais imundas da carne, e para ver com calma que outros exploram a riqueza do seu país. Conheço todo isso e a influência que exerce no carácter dos nossos paisanos, e crea você que algumhas vezes quase é cousa de envergonhar-se de ser dessa terra.”
A primeira vez que damos com escritos como estes somos tentados de adjudicá-los a galegos medíocres, pessoas mais preocupadas com o sucesso pessoal do que com a dignidade do seu povo. Mas juízos assim estám em pequenos, medianos e grandes, tam grandes como Rosalia de Castro. A compostelana tivera que recorrer ao apoio económico da emigraçom para dar a lume os seus livros, e no interior recebeu indiferença ou desprezo. Som conhecidas as palavras com que clausura a sua relaçom com a editorial que nom atendia as suas demandas: “nem por três, nem por seis, nem por nove mil reais volverei escrever nada no nosso dialecto, nem acaso de ocupar-me de nada que atinja o nosso país (…) (Tenho) a resoluçom de nom volver pegar na pluma para nada que pertença este país, nem menos escrever em galego (…) nom quero volver escandalizar os meus paisanos.”
Só as ilusons truncadas, e a consciência de ser enganada, podem levar a sentenças tam duras. Nom se arredam muito do tom que, em plena II República, utiliza Ramom Cabanilhas para curtar -quanto menos na correspondência privada com Otero Pedraio- com o galeguismo, ao que acusava de nom garantir-lhe sustento profissional: “fum o único de todos vós feramente perseguido: o único que por republicano naquele tempo (…) e por anticaciquil, tivem que andar batendo o zoco por terras do Trópico; fum, sem que nisto haja gavança (…) um dos que pujo mais carne do coraçom na espeteira para erguer o espírito cidadao da minha terra, sem umha linha de adulaçom para os poderes (…) E agora, neste novo regime, topo-me com que som umha morea de esterco. (…) Mira, querido Ramom, cago-me nos galegos, na Galiza e em duas léguas à redonda por se nom estám bem fixados os lindeiros. (…) Nom há cousa que mais me ponha fora de mim que ouvir citar o meu nome como galeguista.”
II
Estamos certos que, de seguirmos a avançar na história, e de mergulharmos sistematicamente nos arquivos, aboiariam novamente o sentimento do ofendido em fases ulteriores do movimento nacional. Com certo atrevimento, mas sem prescindirmos do rigor, podemos deixar de lado os documentos e ir à experiência, que também é mestra de vida. Os abandonos militantes aparecem sempre justificados em razoamentos políticos mais ou menos lúzidos, mas invariavelmente, como motivaçom de fundo, age um sentimento de irritaçom, de timo, por vezes de amargura inconsolável: o tanto que entreguei e nom me devolvêrom; o muito que argumentei e o pouco que me escuitárom; as minhas pretensons nobres frente ao interesse camuflado de princípios; o idealismo ingénuo que me moveu num mundo corrompido pola ambiçom. “Eu valho, mas Galiza nom”, parece confessar-nos entre linhas o fuguista.
Este sentimento de tristura é mui importante, condiciona como poucos a saúde dum povo e salpica um movimento nacional. Cumpre perguntar-se, antes do mais, se é justo, se é legítimo, se se apoia em argumentos convincentes; e logo, cumpre saber se é saudável para as pessoas e as causas colectivas.
III
Devemos ser comprensivos, com nós mesmos e com o próximo. Há umha certa deformaçom óptica à que nom podemos escapar. Por necessidades de amor próprio, todas as pessoas tendemos a camuflar as nossas misérias, estilizar os nossos traços e considerar-nos moralmente mais elevadas do que somos. Em sentido inverso, as dores que padecemos parecem-nos as mais insoportáveis, as ofensas que nos lançam as mais intoleráveis, as desgraças que sofremos as mais inexplicáveis. Num sentido colectivo, passamos facilmente a ver os nossos tempos como os mais decadentes, a nossa pátria como a mais duramente maltratada. Quiçá é impossível sentir de outra maneira, pois nem somos quem de experimentar os sofrimentos do passado, nem de vivermos a dor alheia exactamente como a própria, por muita empatia que mediar. Dispomos porém da razom, do sentido histórico e da noçom de perspectiva para contemplarmos cabalmente o panorama. Chamamos a isto ‘objectividade’ e, ainda que estritamente nom exista, resulta umha ferramenta valiosa para atravessarmos experiências históricas como a nossa, tam carregadas de entusiasmos, ódios e outras paixons. Olhando à nossa volta, facilmente podemos entender que, com a excepçom de destinos particularmente funestos, as nossas biografias nom som vales de lágrimas; o passado da Galiza, marcado por umha decadência sostida desde a doma e castraçom, nom é porém mais dramático que tantos episódios de guerra, genocídio, fome ou aldragem que padecêrom tantos povos, alguns bem cercanos. O vitimismo é paralisante, favorece a inibiçom, e por cima de todo falta à verdade.
IV
À pergunta de “como nos foi”? Ainda deve somar-se outra: “como nos irá?” Na semana passada, e neste mesmo portal, um irmao preso escrevia melhor do que nós puidéramos fazê-lo sobre as dificuldades de aplicar o cálculo às decisons afectivas e morais. “Nego-me a calcular se vale a pena ter crianças, bater-se por um amigo, ficar sem dedas ascendendo o Himalaia ou enfrentar o cárcere por te opor à destruçom do teu país.” Na realidade, e no que diz respeito às implicaçons colectivas, a resposta de “se vale a pena” nom se pode contestar, porque a questom é impertinente.
Mas como sempre, podemos conceder aos nossos adversários a sua parte de razom. É certo que, na Europa do século XXI, quase todas as pessoas estamos imbuídas da lógica de certo distanciamento afectivo das cousas, do cálculo e da planificaçom estratégica. Somos, gostemos ou nom, modernos e liberais. As nossas cabeças tenhem umha lista de ‘deves’ e ‘haveres’ nas que organizamos e planejamos o futuro. A questom dos rendimentos -ainda nom monetários- empapa as relaçons afectivas, as carreiras profissionais e até as apostas políticas.
Os custes dos compromissos colectivos aparecem na nossa literatura militante -em geral, em toda a literatura revolucionária- e por vezes achegam-na ao martirológio. Para os cristaos primitivos existia o prémio ideal do céu. E para nós, que nem acreditamos nele, nem tampouco no paraíso político, que resta? Muito mais do que adoitamos ter em conta, e muito mais do que, um pouco entorpecidos pola enumeraçom de entregas heroicas, adoitamos mentar. Graças à Galiza temos sentido de arraigo e direcçom vital num mundo confuso e à deriva; os nossos clássicos, entre eles os que se laiavam de incompreensom, dérom forma à sua ideia no passado e transmitírom-nos um tesouro cultural do que nunca podemos deixar de estar agradecidos. O movimento independentista transmitiu-nos o valor da camaradagem e umhas habilidades técnicas e sociais que nom poderíamos topar na melhor das universidades. Mesmo a dureza do activismo, que em tantos casos actuou como umha autêntica trituradora, dotou-nos da dureza suficiente para afrontar com sucesso o mundo inclemente do neoliberalismo e as relaçons sociais asalvajadas.
Como Rosalia ou Cabanilhas, como toda pessoa de carne e osso, podemos alporiçar-nos e podemos irritar-nos. As fraquezas som humanas e só um puritano obtuso pode censurá-las. Mas deve tratar-se dumha cólera superficial e passageira, pois quem estamos em dívida com o país, realmente, somos nós. Dessa dívida nasce um compromisso inesgotável.