(Lagoa de Doninhos. Imagem: bichosedemaisfamilia.blogspot.com ) Na semana passada falávamos de branhas e turbeiras, espaços singulares demasiado esquecidos, e ameaçados pola obsessom produtivista de parques eólicos e autovias. Hoje despedimos o ano por outros territórios da água: as lagoas. Especialmente delicadas no seu equilíbrio ecológico, e fogar predilecto de -entre outros animais- milhares de aves migratórias, na Galiza só podem compreender-se cabalmente conhecendo o rico depósito de lendas que se teceu à sua volta. De Baldaio à Lagoa da Serpe, passando por Cospeito ou Antela, no litoral ou na montanha, estas massas de água alimentárom a imaginaçom da nossa estirpe.

Lacunas na costa

A primeira divisom científica chama-nos a considerar de maneira diferenciada as lacunas ou lagoas costeiras -também chamadas lagoons- das lagoas interiores. As primeiras adoitam coincidir com a desembocadura de pequenos rios. A acçom das correntes marinhas, paralela à costa, dá lugar a correntes areentas que blocam as águas e dam lugar ao fenómeno lacustre. Estas zonas dam acolhida a plantas com especial toleráncia à salinidade, mas também permitem a proliferaçom de anélidos e mariscos, e mesmo de peixes de mar aberto que aproveitam as águas mansas para as suas fases larvárias. Ora, por riba de todo, as lacunas som um paraíso das aves migratórias, e por isso um lugar venerado polos ornitólogos. Diferentes espécies de garças, limícolas, anátidas e também gaivotas.

Maçarico em Baldaio. Imagem: avistandoavesenarteixo.blogspot.com

Em tempos geológicos, a vida das lagoas litorais é curta: as areias das praias vizinhas e da barra areenta (ou sistema dunar) das cercanias rematam por encher a laguna costeira, e por eliminar as suas barreiras face o mar. Porém, em tempos humanos as lagoas permanecem geraçom trás geraçom, e merecem ser cuidadas. A insensatez produtivista dana os seus equilíbrios mais frágeis: a extracçom de areia (que motivou, como sabemos, o histórico conflito de Baldaio), os poluintes químicos numha água que só a custo se depura, especialmente agravados em épocas de seca…fam perigar estas paisagens únicas. Na variadíssima Galiza, as lacunas litorais som também variadas, e assim temos algumhas muito isoladas do mar (Doninhos, Junho), outras com comunicaçom intermitente com o Atlántico (Louro, na Ria de Muros-Noia) ou permanentemente ligadas a este (Corrubedo ou Valdovinho).

Humidais do interior

As cousas mudam no interior. A primeira sugestom dá-no-la a toponímia, mui precisa para falar de zonas húmidas e baixas: Lagoa, Junqueira, Espadanedo, Espadanal, Caneiro, Canaval, Canedo, Carriçal...alguns destes nomes denominam apenas zonas fluviais ou pontos de encontro entre rio e mar, mas outros si som aplicáveis às lagoas de interior.

Nelas desfrutamos dumha flora única, enraizada na ribeira, em zonas permanentemente alagadas. Lá, boa parte das plantas tenhem raízes e talos por baixo da água. Conhecidas som as espadanas (este termo agrupa na realidade duas espécies distintas, a Typha latifolia e o Iris pseudoacorus), com um vistoso florescimento amarelo entre abril e junho; obviamente, o junco, que medra e agrupa-se a formar moutas, com a sua cor verde lustrosa e flores pardentas; o carriço, com longas canas que até alcançam três metros de altura. Estas plantas som alimento e acobilho para mamíferos como a lontra, ou aves muito bem adaptadas a este meio: as galinholas na espesura, e aves insectívoras ou granívoras nas zonas mais visíveis: o escribidor dos juncos, as folosas ou a carriça dos juncos. Cercetas e parrulos, aves migratórias, fam deste hábitat o seu quartel de inverno.

Lagoa de Cospeito. Imagem: wikipedia

Antela: desfeita e lenda

Topamos lagoas em Abadim, Carucedo (na Galiza berciana), Trevinca, Cospeito…sem desmerecer nenhuma, hoje viajamos a Antela, que tem muito que contar pola sua riqueza lendária e o seu trágico final. Há duas semanas, e por obra e graça do trem de borrascas que enchoupou o país, a vizinhança da Límia puido ver temporalmente ressucitada a lagoa, em forma de superfície alagada.

No seu dia Antela era um dos humidais mais extensos da Península Ibérica. Atingia os concelhos limiaos de Sandiás, Sarreaus, Vilar de Bairro, Ginzo e Junqueira de Ambia, a mais de 600 metros de altitude, e chegava aos seis kilómetros de longo. A lacuna aproveitou-se dumha depressom tectónica formada no Terciário, e ao que parece formou-se quando o território actualmente galego gozava dum clima tropical.

A arqueologia demonstrou, já na década de 50, que nele existírom povoados lacustres pre-históricos, as chamadas palafitas, formados por vivendas de madeira sostidas em colunas sobre a água. O espaço tentou ser dominado polo homem de tempos muito recuados, e de facto o Império romano dirigiu as águas com um sistema de canles cujo surtidor principal media mais de 20 kilómetros. Foi a ditadura franquista, porém, quem tivo os recursos tecnológicos e coercitivos suficientes para rematar com a lacuna; o pretexto foi o foco de paludismo que podia supor tal superfície anegada, mas na realidade, a zona reunia as condiçons idóneas para lançar umha versom hispana da ‘revoluçom verde’: agricultura baseada em amplas extensons, orientada ao monocultivo, muito dependente de inputs exteriores, como maquinária e adubos químicos. Em 1958, o plano de dessecamento foi consumado, e em 1972 a agressom ao meio ainda foi intensificada por várias empresas de extracçom de areia.

Imagem histórica da lagoa de Antela. Imagem: antela.es

As lendas

Nos seus estudos precursores, já Manuel Murguia assinalou com abraio que as lendas sobre cidades e mundos asulagados som um dos elementos mais poderosos da tradiçom oral galega. Vicente Risco proseguiu esta pesquisa, e já em 1932, a revista ‘Nós’ acolhia estudos etnográficos sobre a lagoa de Antela. A lenda imemorial limiá coincidia em vários aspectos com semelhantes recriaçons míticas das lagoas de Carregal ou Abadim, que acolheriam baixo as suas águas as cidades mergulhadas de Valverde ou Lucerna.

Baixo Antela, segundo o estudo de Urbano Santana em Nós, existia a cidade asulagada de Antioquia. Umha velha urbe, diz o mito, que chamou a atençom de Deus polo carácter avassalador e sobérbio da sua vizinhança. Um Jesus Cristo vestido de esmolante chegou a Antioquia para provar a qualidade moral dos seus habitantes, e só topou portas que se lhe fechavam e desprezo generalizado. A única família que lhe deu sustento e cama merece o prémio de ser salvada da cidade, agás um dos seus membros. Apesar da proibiçom, decide olhar atrás para ver como a cidade se anega, e por esta indiscreçom é convertido em pedra.

Eis umha lenda com certos elementos bíblicos (o dioivo como puniçom), mas também com elementos chave da tradiçom pre-cristá galaica: a existência dum mundo sobrenatural paralelo ao nosso, a condena a indiscreçom (olhar o proibido), e a crença num fatal desenlace para os que desafiam as leis do convívio social. Numha sociedade como a nossa, que abandonou qualquer noçom de responsabilidade colectiva polos próprios actos, a começar pola desfeita ambiental, as lendas milenárias podem ter um valor importante.