Um
Ele é um homem duns 45 anos, andaluz, extraordinariamente simpático e amável, dessas pessoas com as que sempre é agradável passear polo pátio da prisom. Acusado de narcotráfico, pergunta-me com carinho:
– “‘Quillo’, de verdade o vosso paga a pena? Fai sentido sofrer todo isto por umhas ideias?”
‘Todo isto’ é a dureza dos muros, a lógica perversa da burocracia carcerária, a balbúrdia deste módulo 2 de Soto del Real e a separaçom das nossas famílias, que ambos padecemos.
– “Eu, quanto menos, fago isto para os meus filhos nom lhe faltar de nada”- diz-me, noutra ocasiom, um outro acusado de fazer negócios ilegais.
Eu, que venho dumha família de matemáticos, nom quero calcular os abraços nem decidir se umha vida sem riscos conta do lado dos ‘deves’ ou dos ‘haveres’, mas penso para mim que nenhuma quantidade de dinheiro compensa a estadia na cadeia. E que as dores da vida só tenhem sentido quando quem as sofre contribui para outorgar ao mundo algo de verdade ou de beleza.
Nego-me a calcular se vale a pena ter crianças, bater-se por um amigo, ficar sem dedas ascendendo o Himalaia ou enfrentar o cárcere por te opor à destruiçom do teu país, mas sei que nom há fortuna que consiga tornar habitável um mundo no que estas cousas deixem de fazer-se.
Dous
A prisom está cheia de pessoas que nom sabem calcular: aquele, detido em Barajas com 400 gramas de heroína no estómago, arriscou cinco anos de vida por umha quantidade inferior a médio ano de trabalho; aquele outro deixou-se levar vinte minutos pola ira, e vai passar um mínimo de dez anos preso; e nós nom sabemos o que teremos que pagar por erguer-nos para que a Galiza nom desapareça. Por isso o cárcere é umha grande instituiçom para ensinar cálculo: pontos, partes, prémios, castigos…se obedeces, +1; se nom o fas, -1. É umha imensa máquina de Pavlov para humanos deficientemente adestrados, ou -quase literalmente- umha passantia extrema para pessoas que latavam demais na escola. Os bons cidadaos aprendem a disciplina de calcular na escola e no trabalho; os que nom, tenhem muitas opçons de acabarem na cadeia.
A característica comum que temos a maioria dos presos deste módulo 2 de Soto del Real é que as acçons que nos trouxérom até aquí nom estivérom guiadas pola aritmética: nalguns casos, guiou-nas a ética; em outras, guiou-nas o instinto. A mesma característica partilham-na também alguns dos comportamentos mais honrosos e mais desprezíveis que conhecemos da história humana.
Três
A antropologia funcionalista -essa disciplina que pretende explicar com a calculadora todos os comportamentos humanos, em todas as culturas- achou um dilema de difícil resoluçom na instituiçom do ‘Potlach’: um ritual mediante o qual alguns povos indígenas do Oeste norteamericano punham todas as suas pertenças a disposiçom dos vizinhos. Dentro dos muros da prisom, as e os independentistas galegos levamos anos a ser objecto de incompreensom e admiraçom polo extraordinário carinho com que cuidamos os nossos prisioneiros: “_Neste sábado também comunicas?”-diz-me surprendido um companheiro a olhar a listagem com os nomes dos que temos visita nesta fim de semana; umha listagem que nunca passa dos dez nomes, num módulo com arredor de 60 internos.
Desde 2005, todos os fins de semana as estradas espanholas som testemunha dum ‘potlach’ particular, protagonizado por galegas e galegos de bem que nom duvidam em investir o tempo, os quilómetros e o dinheiro que fixer falta em vir comunicar com nós. Gastar 100 ou 200 euros e um mínimo de 15 horas em ir até umha prisom madrilena para, durante apenas 40 minutos, ver através dum vidro e falar através dum telefone intervido com um companheiro preso é um acto tam pouco calculado como nobre e generoso. Nom tem sentido económico ou prático nenhum, e por isso tem um valor humano e ético incalculável. Desfrutei de fazê-lo quando estava fora, agradeço-o imensamente agora que estou preso, mas -sobretodo- sinto-me enormemente orgulhoso de pertencer a um povo e a um movimento que cuida dos seus sem lógica e sem medida.
Quatro
Desta volta é um búlgaro duns 60 anos o que comenta:
“-Para os que vivemso o comunismo, todo isto resulta familiar: casa, comida, educaçom e sanidade deficientes, mas garantidas; burocracia exagerada para o trámite mais simples; produtos escassos e só dumha marca; e muros e guardas a impedirem que saiamos. Eu criei-me com isto!”
Semanas depois, numha terça feira, assisto no módulo sócio-cultural a umha sessom de cinema. Quando saio som as 19 horas, já é noite, está a barbanhar, e enquanto caminho sozinho até o meu módulo atravessando o jardim central da cadeia sinto-me quase tam bem -suponho- se podiam sentir meus pais ao sairem do Cine Fraga de Vigo nos anos do franquismo.
A vida carcerária em 2º grau parece-se bastante com a vida normal dum regime totalitário, o que pode ter várias interpretaçons. Umha delas é que quando os Estados tenhem poucos inimigos metem esses na prisom, mas quando os inimigos som muitos (e berram isso de “nom tendes cárceres abondo para fechar-nos a todos”), o que fam os Estados é virarem eles próprios em prisons. Os presos políticos de hoje pagamos com o cárcere o mesmo atrevimento que os nossos pais, maes, avôs e avoas pagárom na ditadura.