Vicente Risco lembra-nos o medo dos nossos devanceiros a esta ave, identificada com o agoiro de morte; mas o refraneiro é amplo e acolhe contradiçons, e outros ditos fam-na bom indicador de tempos e labouras agrárias: “coruja tardega, água noitega”; “coruja na carvalheira, caldeiros à goteira”; “coruja noiteira, malhadores à eira”; outras mostras da sabedoria popular tiram-lhe toda cárrega de medo: “na carvalheira da Pena/ está a coruja pousada/ nom lhe tenhas medo nena /que a coruja nom fai nada.” Em qualquer caso, esta vizinha milenária das nossas comunidades agrárias foi umha ave importante, como símbolo de certas fonduras da vida, algumhas raianas com a morte: “já lhe vim os olhos à coruja”, dizia umha pessoa quando passara por experiências severas. Nom por acaso, vemos a coruja no lusco e fusco, num espaço intermédio entre a clareza do dia e as penumbras da noite.

Estamos ante umha das aves mais comuns do mundo, umha espécie que tem enriquecido inúmeros saberes populares; nos nossos agros vive umha das quase subcorenta espécies que se espalham polo globo: é a subespécie Tytus alba, que partilhamos com o norte da África e toda a Europa, com a excepçom dos países escandinavos. Ave muito adaptativa, nom atura porém as temperaturas médias inferiores a seis graus.

Aparentemente pequena, com as asas extendidas quase alcança o metro de envergadura. Ao ser humano sempre lhe impactou o seu rosto em forma de coraçom, os seus grandes olhos e o fino peteiro preto. Numha das suas variedades apresenta o peito totalmente branco, o que lhe dá um ar fantasmal.

Gosta de zonas habitadas, campos cultivados e terrenos abertos; nom refuga a presença humana, ainda que pola sua discreçom, nom se exibe demasiado. Numha relaçom simbiótica com as labregas, tem-se aproveitado das agras, a um tempo que limpava as propriedades de ratos. É capaz de caçar também animais grandes: morcegos, outros paxaros, mesmo donicelas. O seu fino ouvido permite-lhe caçar sem ver.

A coruja, que gosta de habitar restos ruinosos deixados por humanos. A sua querência por velhas estruturas abandonadas, como sinos esboroando, ruínas de castelos ou muros de camposantos, reforçou a sua associaçom com o Além e a morte. Irrompe na noite, voa a média altura sem fazer o mínimo ruído, e olha em fite com movimentos súpetos de cabeça.

As ruínas, espaço predilecto da coruja

O povo galego baptizou-na como ‘coruja alvar’, ‘ancrusa’, ‘aveleitosa’, ‘cruja’ ou ‘curujeira’. Vários topónimos levam o nome de ‘curuja’ ou o derivado ‘curujeira’.

Mitologia e filosofia

Para as sociedades antigas, a condiçom humana nom se podia desvendar em alusons restritas às pessoas, e o mundo animal servia para traçar coordenadas de relaçons entre espécies, traços de carácter e capacidades de adaptaçom. À noite, as corujas custodiavam a Acrópole ateniense, e os gregos vencelhárom com claridade esta ave a Atenea, encarnaçom da sabedoria. Fídias esculpiu-na no Partenom.

A sabedoria nascera da cabeça de deus pai, neste caso Zeus, trás ser golpeada por umha machada de bronze esgrimida por Vulcano. A coruja acompanha assi esta deusa que os romanos chamam Minerva, e que velava pola frauta e a dança, acompanhava na guerra e aprendia a montar os cavalos. Nos tempos actuais é doado confundir o lercheo com a sabedoria, e ao que parece os gregos temiam a mesma confusom. Por isso a sua mitologia estabelece que Atenea expulsou o ‘Corvus corone’ de assessor, o larchám, e situou no seu ombreiro a coruja.

Na Europa moderna seguia a considerar-se emblema de sabedoria. Diz por exemplo Juan Pérez de Moya, em castelhano do século XVI; na súa ‘Filosofía secreta, donde debajo historias fabulosas se contiene mucha doctrina provechosa a todos estudios’: “rejeitado o corvo da companhia de Minerva recebeu a coruja, porque esta ave vê de noite, e ao sábio, entendido por Minerva, nenhuma cousa se deve agochar por encoberta que semelhe; e porque assi como esta ave está de dia escondida e retrazida em lugares escuros, arredada da conversa das outras aves, assim o sábio com desejo da especulaçom se retrai a lugares solitários. (…) E porque o contemplar e considerar tem mais força de noite que de dia, e o ánimo mostra neste tempo mais vigor.” Na verdade, Moya segue as ensinanças clássicas de Aristóteles, que identificara coruja com pensamento claro: ‘assim como os olhos da coruja na clareza do sol, assim o nosso entendimento nas todas as cousas que som muito certas na natureza.”

Atenea e a sua coruja, representadas numha moeda grega

Alguns estudos dim que a sua proscriçom por parte do cristianismo integrista deu lugar a interpretaçons erradas. Por exemplo, a tese que mantém prejuizosamente que a coruja entrava na igreja a ‘beber o azeite’ pode ter a sua origem remota na associaçom da coruja com os santuários devotados a Minerva (cristianizada logo como virgem Maria). Um certo desprezo levou a que os ornitólogos nom a reconhecessem como espécie de seu até inícios do século XX.

Coruja e moucho, emblemas da sabedoria

A sua consagraçom como símbolo moderno chegou, porém, graças a Hegel. O pensador alemao, na sua ‘Filosofia do Direito’, redigiu umha frase que se ergueu em lugar comum: “a coruja de Minerva ergue o voo no solpor”. Que queria dizer? No mito greco-latino, a ave deixa o ombreiro da deusa ao fim do dia, para recabar com o seu voo silencioso, as novas da jornada. Para alguns, Hegel pretendia dizer que o pensamento sempre vai por trás dos acontecimentos, e em certo modo caminha rezagado da realidade; para outros, o intelectual apontava que é nos momentos escuros da sociedade quando a reflexom se desdobra com força. Quem sabe? Em todo caso, cada animal dá aos humanos umha série de liçons. E a coruja fala-nos de discreçom, silêncio, observaçom constante e soidade. Nom som más pautas para um mundo de ruído e charlatáns.