Os interrogadores da CIA desenvolvêrom umha longa experiência na disciplina do quebranto humano. Em cárceres secretos, campos de concentraçom, voos clandestinos, ensaiárom muitas variedades da crueldade. Desde que o imperialismo norteamericano é menos pudoroso que o espanhol, e permite falar do atroz em filmes, romances e documentários jornalísticos, sabemos algumha cousa dos perfis que se encontrárom os defensores da orde. Os menos eram pessoas heroicas que aturavam o arrepiante, assumindo o tormento e umha morte terrível por lealdade a umha ideia. Na linha que predicava o nosso Gomes Gaioso, torturado antes da sua execuçom, ‘romper, mas nunca doblar’, a maior das coerências levada até o final. Os mais, a humanidade média, indivíduos que cediam em graus diversos ante a violência física e mental, rematando vencidos, humilhados, desfeitos, por vezes também aviltados e identificados com o torturador. Havia, porém, um outro grupo que descoloca o lugar comum da psicologia: pessoas que, trás padecerem duros abusos, entravam num estado desconcertante de passividade e indiferença, como se os golpes e os insultos deixassem de feri-los. A CIA chamou esta conduta ‘apatia defensiva’. Resistir nom serve, e entregar-se tampouco, pois para algumhas pessoas resulta impossível, assentir às exigências do inimigo. Resta entom assumir o inevitável sem investir, como diriam os neoliberais dos sentimento, em emoçons de nenhum tipo.

Alguns estudos neurocientíficos estám, desde as suas origens, unidos às realizaçons escuras da humanidade, como a tortura e o amoldamento a entornos laborais agressivos. Num trabalho de pesquisa realizado na década de 60 na Universidade de Pennsylvania, o psicólogo Martin Seligman provou a submeter cans a choques eléctricos associados a diferentes movimentos. Quando um dos cans aprendia qual o tipo de pauta física que ajudava a fugir da descarga, perfeiçoava-a até fazê-la totalmente eficaz. Se, pola contra, os animais eram introduzidos num entorno no que qualquer movimento produzia descargas, rematavam por recebê-las sem reacçom, aceitavam-nas passivamente. Se som sentidos como inevitáveis, o nosso cerebro pode processar a dor e o horror com tal naturalidade que assombra.

Por fortuna, os desafios na vida das pessoas nom soem ter a intensidade da tortura ou da electrocuçom. Mas em qualquer existência a acumulaçom de sem sabores pode ser tam continuada que moldea profundamente a conduta. Nesta dimensom de dramatismo variável, a psicologia moderna começou a falar de indefensom aprendida. Quando umha pessoa se tem enfrentado com inúmeros processos que considera totalmente além do seu controlo, o seu tom anínimico geral tende à apatia; os recursos energéticos baixam irremediavelmente. Num outro estudo, neste caso realizado com humanos, demonstrárom-se dous patrons de comportamento bem distintos. Dous grupos de pessoas eram forçadas a realizar um trabalho intelectual com o pano de fundo de um ruído permanente e quase insoportável; enquanto um deles nom tinha mais opçom que levar adiante a tarefa com barulho, o outro dispunha de um interruptor para desligar o som e ficar em silêncio. Eram os membros deste segundo grupo -apesar de nom desconectarem o ruído- os que trabalhavam com mais intensidade, eficácia e pulo, simplesmente por conhecerem a possibilidade do acougo. A indefensom aprendida fai-se pauta em muitos contextos, e traz consigo passividade, desánimo e afundimento progressivo. Em meios violentos, como adoitam ser as sociedades humanas, abonda apenas com os abusons ventarem indefensos para aumentarem as suas demandas sobre eles. A opressom sempre é um círculo vicioso que pode levar a níveis de degradaçom que nem sequer imaginamos. É por isso que o psicólogo Harrison White, no seu livro ‘Identity and Control’ (1992), declarou que a dita ‘apatia defensiva’ era chave para compreendermos o comportamento político de colectividades submetidas, educadas por um ronsel inacabável de derrotas.

Puidemos nom ter padecido esta sensaçom e, sem embargo, umha empatia elemental fai-nos compreendê-la. A indefensom apreendida seria a versom extrema desse desalento que, por períodos mais ou menos dilatados, todas as pessoas temos conhecido, o que nos resta força para acometer as empresas mais importantes.

Há ainda outras derivaçons da violência dos humanos contra os humanos que pode desafiar, apriori, a nossa compreensom. Escuitemos R.P., um desempregado solteiro envolvido num círculo infernal de auto-castigo e arrependimento: ‘sinto-me triste, e quando me sinto triste, vou de compras, compro o que me dea o meu pouco orçamento. Logo embebedo-me, normalmente sozinho. Ao dia seguinte sinto-me fatal, ressacoso, e encerro-me a descarregar filmes de internet. A verdade é que me sinto umha autêntica merda, sei que nom valho para nada. E quanto mais me sinto umha merda, mais ganha de enclaustrar-me e de comer me entram.’ Essas som as margens esquecidas da nossa sociedade felicista. Agravadas, recriam-se nas prisons. Comenta P.V., no isolamento da cadeia de Aranjuez: ‘quando me ‘raiao, ‘chino-me’ (chinar-se é curtar os braços com cuitelas), vejo sair o sangue a borbotons. Dói-me e tranquiliza-me.’ Depois de muito chinar-se, P.V. tem os braços cheios de cicatrizes, até o ponto de nom ficar um centímetro de pele intacta. Ademais, nos isolamentos o controlo das cuitelas é mais exaustivo que nos outros módulos: ‘também trago cousas. Pedaços das culheres do almorço. Um colega meu tragou pilhas, e outro lixívia.’

Nas situaçons extremas, a passividade do apático defensivo parece quase umha bençom. A muitos nom lhes serve e precisam da autolesom. Nom som suicidas, nom querem matar-se, e em certo modo estám comprometidos com a vida. Ora, para suprimir umha dor tam intensa que se fai insoportável, precisam outra dor, que paradoxalmente actua de suavizante. Na autolesom violenta carcerária, as atençons médicas, a mudança de módulo, a ruptura da monotonia, podem agir como lenitivos do calvário; na rua, a chamada de atençom aos seres cercanos, a agressividade contra as pessoas que procuram ajudar, ou a captaçom da benevolência dos demais exibindo as próprias penúrias, cumprem esse cometido.

A condiçom de oprimido e a desgraça podem ser despachadas com moralismo, e como a esquerda tem feito tantas vezes, ser denunciadas como produto da incapacidade e ou da ignoráncia (alienaçom). Na realidade, som fenómenos sociais e psicológicos de grande complexidade e alcanço, que seguem umha lógica. Por isso precisamente som tam difíceis de superar.

Se quigermos procurar umha conexom entre ambos modelos de implosom humana poderíamos topá-la no pessimismo. Apáticos e autodestrutivos tenhem em comum umha visom sombria da realidade. Em parte por boas razons, em parte porque o padecimento levou a percepçons distorsionadas, o pessimismo funciona ao cabo como auto-exculpatório: ‘nom há nada que fazer’; ‘a nossa situaçom é das piores do mundo’; ‘igual se poderia fazer X, mas eu nom som capaz.’ Por palavras dum psicólogo, umha pessoa que regularmente pensa que nom vale para nada, chega por crê-lo, eliminando do seu leque de opçons qualquer aposta arriscada por melhorar.

Panorámica deliberadamente escurecida do mundo que toca enfrentar; evasom de responsabilidade pessoal em favor de factores externos; lamentaçom como falsa terápia, por vezes em forma de literatura e desvario teórico-político; no caso mais extremo, regocixo mórbido no infortúnio, em que o indivíduo, arrastando os pés, se exibe como vítima. Os traços som-nos tam conhecidos a galegos e galegas -especialmente militantes- que chamam a umha intervençom decidida e urgente. A ‘Galiza que morre’, além dumha colecçom de cifras demográficas, sociolinguísticas e eleitorais, é sobretodo um grande espectro, alimentado pola imaginaçom conjunta de milhares de pessimismos crónicos. A sua soluçom é complexa e nom devêssemos propor, como os manuais de auto-ajuda capitalista, fórmulas para êxitos seguros e imediatos. Si podemos, em troca, localizar e nomear o problema, e esse é um passo para a frente de grandíssima importáncia. Também inspirar-nos nas soluçons vivintes, isto é, os tantos exemplos de coragem, vitalismo e dignidade que o nosso país tem dado, para alimentar as fileiras resistentes.

Com toda provabilidade, um poder institucional próprio, a nossa sonhada República, poderia reverter esta decadência moral. Como a República é um horizonte afastado, precisamos um poder mais modesto, colectivo, que é o do movimento independentista politicamente organizado; e como todos os poderes colectivos se constituem com achegas individuais é o poder da pessoa, do indivíduo, o que alicerça o prédio inteiro. Poder como controlo do próprio eu e como sentimento da própria valia, como afirmaçom da responsabilidade e, ao cabo, como alegria. Porque a opressom nom é só injusta, insá, deformadora e frustrante. É sobretodo triste, e qualquer militante pola vida está abocado a enfrentá-la.