O estoupido de revoltas populares ao longo do mundo, de Chile à França, passando polo Ecuador ou a Catalunha, demonstra que o quadro das democracias capitalistas nom garante o cumprimento de direitos essenciais. Nalguns casos, direitos oficialmente consagrados como vida digna, teito e liberdades, vulneram-se na prática; noutros, como o de autodeterminaçom, nem existe reconhecimento constitucional. Como pano de fundo deste renovado debate dos direitos, aparece um esquecido, mas nom por isso menos importante: o direito à rebeliom.
Os intelectuais da imprensa capitalista acusam os movimentos rebeldes de carecerem de lógica democrática. Habitualmente recorrem às suas influências marxistas ou anarquistas (pois o movimento obreiro permeou todos os grandes movimentos sociais modernos, do feminismo ao ambientalismo) para deslegitimarem as causas. É que, com efeito, tanto comunistas como libertários desconfiárom radicalmente das instituiçons representativas. Acusárom-nas de sequestrar a vontade popular, ou de serem formas camufladas de domínio das oligarquias económicas. Segundo os pensadores do sistema, por trás de todo movimento social esquerdista estaria a latejar umha ‘tentaçom totalitária’ que só de maneira instrumental utiliza a luita eleitoral: a acçom directa, a luita armada, o motim, a insurrecçom, seriam as pretensons de fundo.
O direito à rebeliom, ancestral
Há parte de certo e parte de falsário neste argumento. Pois se obviamente a esquerda revolucionária confessou que o derrocamento do poder pola força é a sua meta (como se explicita no Manifesto Comunista) os movimentos populares que estes dias agitam o mundo som demasiado diversos como para enquadrá-los na dinámica da conspiraçom.
Na verdade, o direito à rebeliom é muito mais antigo que o marxismo. E se os autodenominados liberais estudassem com atençom a história, dariam-se de conta que nas origens do pensamento burguês a chamada à resistência existe e está codificada.
Já na China da dinastia Zhou, mais dum milénio antes de Cristo, os teóricos estatais falavam do ‘Mandato do Céu’. Em chaves teológicas, entendiam que um mandatário justo duraria no seu posto mas, se fosse tiránico, rebelions de inspiraçom divina iriam expulsá-lo pola força, e com legitimidade. O confuciano Mencio, por outra banda, declarou o direito do povo a derrocar governos.
Justiça medieval e moderna
Mesmo o teocêntrico medievo, com as suas associaçons tenebrosas, recorreu a formas de teoria política que procuravam o remédio violento à tirania. A Magna Carta inglesa de 1215, que alguns pensadores entendem como germe do controlo democrático aos reis, incluía umha cláusula de segurança que dava o direito a um comité de barons a derrocar o monarca injusto. E mesmo o dominico Tomé de Aquino, na sua Summa Teologica, afirma o ‘direito a combater ao tirano’. Mais longe foi o jesuita espanhol Juan de Mariana, no abrente da Idade Moderna: na sua ‘Lei Natural’ escrita em Salamanca, teorizou o direito ao tiranicídio.
Pode-nos sonar chamativa esta argumentaçom rupturista da sempre reaccionária igreja de Roma, mas fôrom os seus argumentos insurrecionais os que inspirárom o ‘Gunpowder Treason Plot’ a primeiros do século XVI, a ‘Conspiraçom da Pólvora’ de Robert Catesby e os seus companheiros. Precisamente baixo inspiraçom jesuita, e apavorados pola hegemonia protestante nas Ilhas, tencionárom a voadura do parlamento de Londres, com a intençom de encetar umha rebeliom em toda a Inglaterra.
Chamado liberal
Mas foi o pensamento burguês o que pujo os alicerces do direito à rebeliom que agitou o mundo até os dias de hoje. John Locke, nos ‘Dous tratados do governo’, afirmou que o ser humano nasce com direitos naturais, inalienáveis e eternos: liberdade, propriedade, seguridade. De serem estes vulnerados, a rebeliom virava legítima, pois os governantes vulneravam as bases do contrato social: “quando os legisladores tentam tirar e destruir a propriedade do povo, ou reduzi-lo à escravidom baixo um poder arbitrário, ponhem-se em estado de guerra com o povo, e este está portanto absolto de obediência.’
O que vem depois é conhecido. Na obra ‘Common Sense’, de Thomas Paine, o liberalismo em ascenso chega aos Estados Unidos; e na sua declaraçom de independência, a naçom emergente afirma que ‘quando umha forma de governo se fixer destrutora da vida, da liberdade, e da procura da felicidade, o povo tem o direito a reformá-la e a aboli-la, e a instituir um novo governo alicerçado nesses princípios. Na constituiçom revolucionária francesa de 24 de junho de 1793, no seu artigo 35, as palavras som ainda mais contudentes: “quando o governo viola os direitos do povo, a insurrecçom é, para o povo e para cada umha das suas porçons, o mais sagro dos direitos e o mais indispensável dos deveres.”
Mesmo na Declaraçom Universal de Direitos Humanos, redigida em 1948 e sobre os entulhos do fascismo recém derrotado, o direito à rebeliom aparece veladamente recolhido. Lembremos neste ponto que na Europa estoupara a guerra pola agressividade imparável do fascismo, tolerado por longo tempo polas potências capitalistas. Parte das forças de extrema direita belicista chegaram ao poder por métodos eleitorais mais ou menos limpos, para depois começarem desde dentro a destruçom dos Estados liberais. Com esse recordo ainda muito vivo, a Declaraçom diz: “considerando essencial que os direitos humanos forem protegidos por um regime de Direito, a fim de o homem nom se ver compelido ao supremo recurso da rebeliom contra a tirania e a opressom.’
Com plena unanimidade e sem atreverem-se a citar estas fontes, os criadores de opiniom do capitalismo afirmam que mesmo no pior dos casos, as citas eleitorais som os procedimentos que substituem a velha rebeliom violenta no mundo actual, a risco de recairmos na barbárie. Mas que acontece se nenhum processo eleitoral é quem de solventar a vulneraçom sistemática de direitos? Ou, ainda pior, se, como na Catalunha, um processo eleitoral constituinte e popular é blocado violentamente por tribunais e corpos policiais? A resposta conheceremo-la nos próximos anos.