“Vim alumar diante de mim os olhos dos lobos, e foi como se me cravassem alambres na testa” (Ánxel Fole)
O lobo, que foi eliminado de modo rápido e implacável na maior parte da Europa occidental, sobreviviu na Galiza. Como em muitos outros ámbitos do património natural e ambiental, a nossa Terra atravessou a história como se fosse umha autêntica ilha: mui bem conectada como o Atlántico e o mundo, mas ao mesmo tempo blindada face influências exteriores agressivas.
Na Inglaterra, de desagrarizaçom temperá e capitalismo agrário precoz, o derradeiro lobo foi abatido em 1680; na Irlanda, o exemplar mais resistente caiu por volta dum século depois. Na França e na Alemanha, os lobos nom chegárom vivos ao século XX. A Galiza ‘com umha geografia separatista’ (segundo dixera um deputado da direita espanhola na década de 30), o lobo continuou campando nos nossos montes: ameaçando os labregos, engordando as lendas negras da cultura popular, e servindo à igreja para difundir poderosas metáforas do mal, a escuridade e a morte. E porém, quiçá nom há nenhum animal coma ele, que seja capaz de concitar ódio e admiraçom ao mesmo tempo.
Por sobreviver, o lobo até sobreviviu aos embates falsamente civilizatórios do franquismo. A ditadura incluira-o na lista de objectivos da ‘Junta para a Instinçom de Animais Daninhos’. Houvo umha cruzada para a brutal colonizaçom do território, e também para a extinçom deliberada dos animais riscados de nocivos. Seguia-se o esquema das batidas de extermínio medievais, mas agora com meios tecnológicos contemporáneos, e num mundo que pretendia comer espaço ao bosque e ao mato até apagá-lo do mapa. Salazar, imitante do franquismo, realizou a mesma operaçom em Portugal, e confinou o animal aos cordais do norte. O lobo sobrevive, sem embargo, nas serras da velha Gallaecia en no sul peninsular, em Serra Morena, as duras décadas de 50 a 70. A partir dos 90, com o retrocesso do mundo agrário consumado e o crescimento do bosque, industrial ou natural, o lobo recupera terreno nos montes da Galiza. Também o fai em Espanha e Itália.
Quem é o lobo?
Antes de entrarmos nas famas e nas lendas, cumpre conhecer este nosso vizinho esquivo. Trata-se do ‘Canis Lupus signatus’. Irmao do lobo europeu, de tamanho mais pequeno, recebe a denominaçom latina de ‘manchado’ pola sua pelagem de cor irregular. Um macho grande pode erguer até 70 cm do chao, e extender-se até 1’80 de longo. É difícil confundi-lo com o cam, o seu descendente amaestrado. Apresenta umha testa mui grande, maciça, quadrangular, cuja forma responde à necessidade de fortes e poderosas mandíbulas. É dos poucos grandes carnívoros da Península Ibérica, e as pegadas que deixa a sua dentámia nom som comparáveis às de nenhum outro animal. Os restos mutilados das suas presas assustárom ao ser humano desde tempo imemorial.
Grandes fondistas, podem percorrer até 60 kilómetros numha noite, mesmo no terreno esgrévio do monte baixo, que é o seu predilecto. Na Galiza continuam a ser umha espécie ameaçada, e é por isso que em 2006 se aprovou umha Lei de Protecçom do Lobo, que o ecologismo sempre considerou insuficiente e puramente formal. Sabe-se que a caça e o envenenamento clandestino continuam. Trás passarem o seu momento mais crítico nos anos 70 e 80, os lobos galegos recolonizárom território. Hoje -se contarmos apenas os dados da CAG- estima-se que existem mais de 700 exemplares, os mais deles organizados em mandas de sete a nove exemplares. Estima-se que até um quarto deles viviriam dissociados, como ‘lobos solitários’, subsistindo precariamente sem apoio do grupo. O montanheiro experimentado, se é cauteloso e paciente, poderia ver esta fera esquiva e inteligente em várias das nossas serras: no oeste, no Barbança, no Suído e e na Loba; no centro do país, no Deça; no norte, nas estibaçons montanhosas que descem à Marinha; e obviamente no leste, nas grandes serras escarpadas que se extendem até a Galiza irredenta, nomeadamente na terra das Portelas.
De onde vem o ódio que lhe professa o lavrador? Possivelmente de muito longe. O lobo é um súper-depredador que caça mais do que precisa, por vezes inçando os montes de restos que nom come. Os especialistas afirmam que se trata da herança genética da época glaciar, quando o lobo armazenava presas mortas para serem comidas em tempos de penúria. O certo é que aos nossos ancestros deveu impressionar-lhes também os enormes parecidos do lobo com o humano, alguns sombrios. A sua organizaçom em clans hierárquicos, que tanto recordam às famílias e às pequenas comunidades humanas, pois organizam-se em parelhas monogámicas e som guiados por dirigentes; a sua técnica de caça, baseada no acurralamento e na extenuaçom das grandes presas; e até o cuidado posto na criança dos lobatos: as fémias construem sempre as lobeiras acarom dum regato e orientadas ao sul, procurando a maior comodidade. Com inteligência, e para minimizarem problemas com os humanos, nunca caçam nas zonas onde criam.
Mitos, admiraçom e medo
Existe um problema objectivo do humano com o lobo pois, desde tempos remotos, a fera ameaça as fontes de sobrevivência das comunidades campesinas. No Paleolítico, foi rival directo, em inteligência, estratégia caçadora e capacidade de subsistência, dos primeiros humanos. Ainda a dia de hoje, no mundo industrializado, e com a razom da sua parte, organizaçons como o SLG denunciam a tardança dos gadeiros em cobrar as indenizaçons polos ataques lobunos. Em 2008, parte do ecologismo organizado reclamou que os gadeiros nom fossem indenizados por danos, senom subsidiados se viverem em zona lobuna.
O resto dos ódios, porém, pertence ao terreno do exagero. Com a míngua de lobos multiplica-se umha das suas presas naturais, o javarim, com os consabidos danos aos cutivos. Científicos descobrírom também que numha natureza que acada o seu clímax, o lobo recorre menos aos ataques ao gado, para se centrar nos corços e outras presas selvagens. E finalmente, ainda que se testemunham casos pontuais de ataques a humanos -sobretodo nenos-, mui raramente o lobo coloca um desafio frontal às pessoas.
A Igreja católica, que precisava de imagens reais para ilustrar a sua noçom do demo, tivo no lobo figura predilecta. Batidas e monteirias medievais -recriativas ou comunitárias- tivérom bençom eclesiástica. Dizia-se que o lobo era o dianho, que só comia a parte esquerda das suas vítimas (a parte demoníaca), e que Deus o castigara a ser coxo pola sua maldade (o lobo tem as grupas muito mais baixas que a parte superior do lombo, astúcia do desenho natural que lhe permite correr até 40 km por hora). A força do bem -particularmente a força do bem cristao- podia com o pior dos males, o mal dos lobos. Por isso Sam Francisco de Asis domestica um lobo, e o Sam Froilám galaico, de Lugo e Leom, amansa esta fera e utiliza-a como mula de cárrega para levar os seus enseres.
Contra o maniqueísmo católico, existírom concepçons mais dialécticas, que por outra parte tenhem as suas origens nas religions indoeuropeias. Como expugemos no caso do corvo, a figura do lobo é ambivalente nas culturas ancestrais, também na céltica. O lobo é demasiado parecido a nós como para odiarmo-lo por completo. Na nosssa toponínimia, aparece nos ‘Ulfe’ emparentados com o ‘wolf’ germánico; também em apelidos como ‘lobeira’, ‘lobato’ ou ‘foxo’ (em alusom às trampas que se utilizavam para eliminá-los).
Desde a antiguidade grega, o lobisome é umha figura matizável: Zeus castiga ao rei Licaom de Arcádia a virar lobo por lhe oferecer carne humana. Mas o lobo também se identifica com Apolo como dador de luz, já que tem capacidade para ver na noite.
Os lobisomes aparecem em clássicos como Virgílio e Petrónio, ou nas sagas do Ulster da mitologia irlandesa. La Morrigan, deusa da guerra, aparece acompanhada por lobos. Na Galiza, onde o imaginário e o real parecem confundir-se, o maior caso de licantropia peninsular chegou ao século XIX. Manuel Blanco Romasanta, psicópata assassino confesso de doze pessoas, baseou a sua defesa no alegado padecimento do licántropo.
Ainda, nom todo no lobo é sinistro. Indómito, inteligente, digno, os traços humanos que se vírom no animal fixérom-no símbolo dos ladrons de antano, os bandidos com código moral e enfrentamento militante às convençons. Eis a nossa ‘Pepa a Loba’, mulher proscrita e insubmissa, que levava como alcunha o nome desta fera; ou, muitos séculos antes, a Rainha Lupa, dirigente fachendosa que se negava a reconhecer a tumba do Apóstolo supostamente descoberta em Compostela.
Hobbes, um dos pais do pensamento reaccionário, dixera aquilo de que ‘o homem é um lobo para o homem’, aponhendo, falsamente, a sofisticada violência dos humanos a um depredador que sobrevive como pode, e que tivo que aturar falcatruadas e crueldades da nossa civilizaçom. Os mais dos intelectuais e artistas galeguistas seguírom esta tradiçom: ‘fazei monteria com os lobos da terra’, dixera Cabanilhas em alusom à praga caciquil; e a cançom de Suso Vaamonde chamando ao combate animava ao povo ‘colhe a fouce e mata o lobo’.
Nom todo o pensamento segue esta linha, porém: Uxío Novoneyra limitara-se a consignar em verso o efeito que produzia nos humanos: ‘o lobo: os olhos do lombo do lobo’. Nos seus versos, segundo ele declarou, transmitiu o fundo medo e soidade que pode embargar por vezes ao homem ou à mulher na montanha. Como todas as suas achegas à natureza, nesta transpira-se humildade.
O carlista Xosé María Castroviejo, na sua crónica de viagem dos Ancares (‘Viaje por los montes y chimeneas de Galicia’), lembrava como o medo inteligente e dosificado da fera é capaz de afectar o comportamento humano: ‘ao vizinho Pepe do Quelho branqueou-lhe o cabelo polo medo ao sentir o alento do lobo’, escreveu.
Som as versons contemporáneas dumha crença antiquíssima, a do lobo astuto, com poderes mágicos, que nom só arrepia: também embaça, isto é, fascina. Se se produz um reencontro humano com a Terra, por força terá que valorizar o que de extraordinário há neste animal que resistiu tantos dos nossos atropelos.