No mundo animal, muitas espécies fingem aumentar o seu tamanho em situaçons de perigo. Peixes, paxaros, monos ou ursos forçam o aumento da sua envergadura inchando-se, extendendo as patas ou curvando o lombo. Especialistas em fauna dizem-nos que, de sofrermos um encontro com umha fera da que nom poidamos fugir, permaneçamos quietos com as pernas bem fincadas, extendendo os braços para aparentarmos ser criaturas grandes difíceis de atacar. Outros animais, pola contra, sabem que neste jogo de imagem sairiam perdendo, e preferem a mímese com o contorno para virarem invisíveis.
Desgosta-nos recordá-lo, mas somos animais. Inseridos inevitavelmente na comunidade, como seres sociais; dependentes de relaçons hierárquicas; e, muito ao nosso pesar, objecto de pressom, agressom ou caça de outros grupos, empoleirados no topo da pirámide social, e incapazes de renegociarem os seus privilégios. Nom todo o nosso comportamento pode ser mediatizado pola claridade da razom. As pessoas depressivas e inseguras tendem a caminhar com os ombreiros caídos e a mirada baixa. O decaimento anímico acomoda-se bem nesta posiçom. E nela também há um algo de estratégia: passar desapercebidos, nom ser olhados, evitar interrelaçom, e portanto o conflito. Que depressivo estaria disposto a entrar numha peleja? Esta mímese por vezes é efectiva se um procura viver como invisível; mas resulta letal se o sobérbio e fanfarrom nos escolhe como objecto da sua ira. ‘O leom ataca primeiro a gacela coxa’, diz um refrám árabe.
O fachendoso anda erguido, mentom alto, olhada que interpela. Na sua presença há algo de desafio, de posto privilegiado a defender. Está destinado a malentender-se com outros fachendosos, e a esmagar o que lhe aparece como um coitado, o alvo asequível. Simone Weil recorda-nos, trazendo à tona aos gregos, que o poderoso, guiado por umha espécie de lei da gravidade, exerce tanto poder como é capaz de exercer. Todo o poder que lhe deixem.
O mundo linguístico segue também as pautas da autodefesa corporal, e no que mais temos de humanos -a capacidade simbólica- lateja muito do que em nós pervive de animais. Quem se percebe fraco utiliza a linguagem compracente: confirmar, nunca retrucar, exagerar cercania e, no pior dos casos, louvaminhar. Um mimetismo menos indigno é o silêncio. Aparentar ser mais um do grupo, parte da tropa que vegeta na base da hierarquia, sem pronunciar nem a menor palavra fora de tom. Quem se sente forte utiliza as palavras sem matizes, na plenitude do seu significado. Utiliza um tom alto, por vezes insolente, e mesmo pom acima da mesa o assunto mais violento e incómodo. O poderoso escolhe de que se fala e, como um director de orquestra, impom o tom em que se tem que exprimir todo o resto.
Condicionado por umha antiga derrota política e um racismo castelhano temperao, o nosso povo escolheu o mimetismo. Como muitas comunidades campesinas submetidas, entendeu que o confronto, ou até mesmo a manobra de fingir umha grande envergadura, levaria à destruçom. Escolheu a palavra compracente, a frase equívoca, ou o puro silêncio. O silêncio dos nossos compatriotas na rota incerta da emigraçom foi espanholizar os seus apelidos, esquecer a língua, mesmo corrigir o sotaque. Ainda que no mais fundo do seu coraçom a galega soubesse que nenhum afecto a unia ao seu patrom, essa era a carta que havia que jogar. Foi umha estratégia social adaptativa, no curto prazo inteligente, no longo prazo mui custosa.
A contemporaneidade trouxo consigo umha nova concepçom: o direito a exigir direitos. Mimetizar-se supunha continuar sendo invisível. E ser invisível -além de conlevar inúmeras penalidades materiais- conleva sentir-se indigno. O sentimento de indignidade é insoportável para a mulher ou o homem que se estima.
Assim que ter direitos implicava afirmar-se. Afirmar-se conleva olhar o adversário aos olhos, ter envergadura. Se nom a envergadura artificiosa do finchado e aspirante a déspota, o tamanho justo de quem, com energia, tem meios e vontade de fazer-se respeitar. Na letra da Internacional ‘erguemo-nos’ os escravos da terra, e no nosso hino ‘despertamos’, deixamos a semi-existência do sono para irmos à plenitude da vida. Em processos paralelos, por vezes enfrentados entre si e por vezes interrelacionados, na Galiza de há dous séculos começárom a afirmar-se como pessoas as mulheres, o proletariado, e o comum dos galegos e galegas sentindo-se naçom. Com a sua imprensa, começárom a ter palavras de seu. Com a sua acçom, nos locais sindicais, partidários, ou na rua, começárom a demonstrar envergadura. Conhecendo o medo (à censura, à cadeia, às malheiras ou à morte), fôrom vencendo o medo.
Todo mudou pouco depois. Um genocídio desenhado para inocular umha parálise duradoura. Demasiada barbárie para poder ser processada sem traumas por qualquer alma limpa. Por palavras do historiador británico Paul Preston, ‘umha guerra concebida como investimento de terror de longo prazo, que fixesse à ditadura durar muitas décadas.’ A morte, o roubo, a humilhaçom, o exílio e o ostracismo fixérom aflorar de novo aquela pesada herança. Encapsular-se na melancolia, fugir fisicamente ou consolar-se com os placebos da literatura ou o humor. Os milhares que rejeitárom esta transacçom com o inimigo nas fileiras da guerrilha fôrom literamente arrasados, separados violentamente da sua comunidade de origem, e banidos da memória.
Nos últimos sessenta anos, a Galiza voltou a livrar a partida com novas geraçons e frutos meritórios. Na pior das condiçons, o país sobreviviu. Com a oposiçom de todos os grupos económicos privilegiados, da Igreja católica, das velhas oligarquias caciquis, privada de qualquer soporte internacional, e frequentemente condicionada pola auto-percepçom limitante do servilismo e da incapacidade cívica. Ainda, as taras da compracência seguem a fanar-nos. O negócio ruinoso de apostarmos polas palavras a médias continua praticando-se; a captaçom de benevolência dum inimigo que jamais quijo comprender-nos aparece repetidamente como o típico exercício inútil dos neuróticos. E o rechaço da organizaçom política, com todas as letras do arredismo, continua a compensar-se com os substitutivos da cultura académica ou radical, da galeguidade lúdica e do ‘havia que…’ A compracência fai mui doce e habitável o presente, mas, obviando os problemas, fai com que estes se acumulem no futuro como um monte enorme de ferralha. A negativa a enfrentar-se aos próprios medos, como a psicologia nos ensina, nom fai mais que engordá-los, deformando-os em fantasias arrepiantes.
Até a pessoa mais alheia à nossa dinámica social sabe que os arredistas estamos em minoria na Galiza. Quiçá nos achemos numha proporçom de cinco a um frente um inimigo que tem todo o poder económico, a imprensa comercial, a maioria absoluta das elites académicas, corpos armados, e mesmo o lumpem ultra sobreexcitado nas épocas de crise. Até o de hoje, as mais das elites intelectuais e políticas compreensivas com o nosso ideal preferírom inibir-se nos momentos em que Espanha mostra a sua face. Umha palmadinha no lombo foi o melhor que temos recebido de quem pensam que os problemas já se solventarám outro dia, ou noutra geraçom: ‘eu deixo-o para amanhá’.
Os passivos contemplam esta relaçom desfavorável como um mal que, se calhar, um dia se disolve polos acasos da história. Mas as proporçons políticas som sempre móbeis e relativas. A organizaçom multiplica a força das minorias. O uso acertado de recursos mirrados pode muitas vezes mais que o esbanjamento de meios da opulência. Um tom franco obriga o opressor a calcular os golpes e medir a sua energia. E o acordar da esperança em palavras e em feitos desata reacçons de grande potência. ‘Amo a Galiza -dixera Alexandre Bóveda ante o conselho de guerra. Amo-a fervorosamente. Jamais a traiçoaria, ainda que se me concedessem séculos para viver. Adoro-a além da minha morte.’ Como todos sabemos, dizia a verdade. Sem miga de fachenda, mas também sem miga de auto-rebaixamento nem mimetismo com o tribunal que o mandava à morte. Combinaçom excepcional de talento organizativo e ilusom, de razom e esperança, projectam clássicos como Bóveda além de toda adversidade.