Em ‘Vida, paixom e morte de Alexandre Bóveda’, Xerardo Álvarez Gallego narra a detençom do líder galeguista naqueles dias de verao de 1936. O mesmo tenente que o acompanhara um dia antes a casa do sogro, para evitar qualquer incidente que puidera acontecer-lhe de caminho, arrestava-o com desculpas. ‘Yo cumplo órdenes, Bóveda. ¡No entiendo bien esto!’ Na véspera, os galeguistas estiveram no governo civil com os militares, confiantes no seu apoio, e convencidos de estarem a defender a legalidade frente um golpe ilegítimo. Conduzido à prisom municipal sem opor resistência, é mui provável que nom fosse ainda consciente do desenlace dos sucessos que alguns desenhavam na altura. Abundam testemunhas de repressaliados que reflectem a incredulidade de quem caminhavam para a morte. O Reino de Espanha conhecera mudanças de regime, militaradas, guerras civis, insurrecçons e repressom, mas ainda ignorava a violência de massas do fascismo. Por isso tantos representantes da esquerda reformista, republicana, galeguista, ou mesmo simples liberais, recebêrom como um shock o que estava a acontecer.

Semanas mais tarde, e segundo conta ao seu cunhado, Bóveda conhece perfeitamente o seu destino. Chamara-lhe a atençom a agressividade ambiental e a carragem desatada contra ele. O dirigente palpara-a na sala do tribunal, e a sua família, na rua, percebeu-no com arrepios em círculos sociais da pequena burguesia pontevedresa. ‘Esta gente tem fome atrasada de sangue. Matarám-me’, dixo Bóveda a Álvarez Gallego. Agora conhecia-se o programa de guerra do fascismo. Como fixera sempre, o aparelho de Estado embestia contra revolucionários e era implacável com a classe obreira. Agora, além disso, umha parte do poder procurava a liquidaçom dos sectores desafectos nas instituiçons, incluídas as elites políticas. Ramón Rivero de Aguilar, que pede a morte de Bóveda, é um dos fiscais e auditores militares que levam por diante a vida de altos dirigentes republicanos. Junto com Hernán Martín Barbadillo y Paul, Eugenio Pereiro Courtier, Jose María Salvador Merino e Joaquín Otero Goyanes, forma a equipa jurídica que dirige conselhos de guerra sumaríssimos. Com todas as pompas da nova legalidade, eliminam fisicamente capitáns gerais como Caridad Pita, governadores civis como Pérez Carballo, ou deputados como Pepe Miñones. Naquela formulaçom intelectual da barbárie participam militares, burocratas que medraram deslealmente ao acobilho do regime republicano, e membros das velhas elites galego-espanholas de raiz fidalga, já convertidas a capitalistas. Para a execuçom do plano, sem embargo, precisam-se cumplicidades e silêncios. No juízo de Bóveda foi importante a testemunha do bedel do governo civil, um velho funcionário que declarou que o ourensano, ‘o mais inteligente do comité republicano’, dirigia as operaçons na sede institucional para frear o golpe; e que de nom irromperem os militares, ‘começaria a haver mortes’. Para a sua condenaçom, resultou chave a ausência de Filgueira Valverde. Intelectual mui dotado, precoz erudito galeguista, Filgueira decidiu abandonar o seu antigo irmao e nom acodir a declarar ao seu favor. O selvagismo dos golpistas aumentou o seu alcanço polo concurso de centos ou milhares de colaboradores, cúmplices ou assentidores passivos; desclassados temerosos ou, como no caso de Filgueira, pequeno burgueses que nom sacrificariam o seu plano de promoçom pessoal por nenhuma lealdade. Nem os companheiros de Fazenda, nem os sócios da Polifónica onde Bóveda cantava, nem os cregos das igrejas que frequentava, quigérom mediar por ele.

Monumento a Bóveda em Poio. Imagem: pontevedraviva.com

Embarcada num plano de extermínio, à coaliçom da direita extrema nom lhe importavam os matizes, tampouco os que puidera colocar o galeguismo. Pouco antes de ser assassinado, Vítor Casas chamava os correligionários a tácticas gradualistas e comedidas, pois do contrário seria impossível resistir a pressom do Estado. Inaugurando a tradiçom exculpatória do nacionalismo, manifestara Vicente Risco: ‘A nossa arela nom é separatista. As nossas reivindicaçons nom atentam em nada, a soberania política do Estado espanhol (…) Nós nom queremos fazer da Galiza umha naçom soberana; nós nom queremos separar a nossa Terra da simbiose ibérica.’ Rivero de Aguilar deu a sua resposta na declaraçom acusatória contra Bóveda, precisamente trás ter-se exposto a nula relaçom do PG com o arredismo: ‘que quede claro que no se nos puede venir ahora con equívocos regionalistas. Lo mismo decían los catalanes para obtener su Estatuto, y sin embargo, señores del tribunal, fue claro su separatismo en la revolución de octubre, a la que por cierto el señor Bóveda estuvo adherido’.

Rivero de Aguilar em duas etapas da sua vida. Imagem: biosbardia.wordpress.com

Desde aquela, muitas cousas mudárom, e os sucessores de Rivero de Aguilar nom som exactamente como seu avô: desapareceu a violência sanguinhenta e esvaeceu-se o horizonte de guerra; as coacçons do poder mimetizárom-se em complexas estratégias mediáticas de condicionamento de massas; os conflitos políticos hispanos dirimem-se à sombra dumha estrutura internacional baseada nos protocolos liberais, e a opulência material amoleceu as tensons políticas. Certos traços originários, porém, seguem vivos: a negativa a negociar nem o mínimo detalhe; a disposiçom a utilizar a força, mesmo contra sectores reformistas dispostos a aceitar o pacto e a rebaixa; e o alimento das mais baixas paixons mobilizadoras, como o ódio, o complexo e a carragem. Estes modos de intervençom desenham-se aliás no cerne da engrenagem do Estado, nos postos mais altos da política, a economia e a inteligência militar.

Ortega Smith, um dos vozeiros do novo nacionalismo espanhol.
A ilegalizaçom do independentismo, a sua proposta

Nesse caldo de cultivo está a fermentar o nacionalismo espanhol que procura a total conquista da Galiza nos anos que aí venhem. Um nacionalismo mais desatado, mais violento e prepotente, que sonha arrebatar o mínimo espaço para a nossa língua, os nossos símbolos, e as nossas reivindicaçons; e também os mirrados direitos cívicos dos que gozávamos para a sua defesa. Nom som razoáveis nem dialogantes, e tampouco nom se comoverám escuitando programas rebaixados ou as palavras comedidas que ensaiou o autonomismo em trinta anos perdidos. O desafio está plantejado em termos mui claros, e só organizando-nos politicamente como arredistas podemos enfrentá-lo.