Como manifestara o historiador Alberto Arana, nom é rigoroso falar de ‘problemas nacionais’ no Estado espanhol; estamos ante um só problema, e é o ‘problema espanhol’. A enorme crise de legitimidade dum poder constituído baixo o liberalismo decimonónico e que hoje, douscentos anos depois, continua a abanar por desafios colectivos. Em 2019, Catalunha aparece como epicentro do problema espanhol.
Se repassarmos um mapa da Europa occidental, nom daremos com um Estado com um défice de legitimidade tam grande como o Reino de Espanha. Porçons amplas da populaçom nom se sentem identificadas com a chéfia de Estado, com o hino, a bandeira, o exército e as forças policiais, a língua e a história. Mesmo certas elites territoriais -económicas, institucionais e intelectuais-mediáticas- renegam do quadro jurídico-político. Na Catalunha, todos os elementos da deslegitimaçom espanhola estám em jogo: desafecto popular, fortíssima identidade etnocultural, sistema de partidos próprio, e sistema mediático distinto do hispano. O desafio é enorme e, o mais lúzido do pensamento nacionalista espanhol sabe que irresolúvel: Ortega y Gasset, um dos teóricos de maior alcanço, manifestou no seu dia que a única forma de evitar a soberania catalá era a ‘conllevancia’: conviver com a Catalunha em equilíbrio inestável, ponhendo-lhe regras consensuais favoráveis a Espanha.
História a ferro e fogo
Quando a Galiza levava dous séculos de submetimento a Castela, o Principado da Catalunha ainda mantinha instituiçons e mantinha duros pulsos com a Monarquia austracista. Os feitos do Corpus de 1640, enorme mobilizaçom contra o Decreto de ‘Uniom de Armas’ do Conde Duque de Olivares, ficárom como primeiro fito na memória resistente catalá. Setenta anos mais tarde, a aposta antiborbónica das elites autóctones leva à ocupaçom de Barcelona por Felipe V; as repressálias manifestárom-se no Decreto de Nova Planta e na aboliçom de foros.
Bem que o nacionalismo contemporáneo catalám tivera um enorme peso burguês e pequeno burguês -com as estratégias do pactismo e o pacifismo como pedras angulares-, na memória colectiva arraizárom referentes bélicos como os que citamos, assentando um forte orgulho colectivo. O independentismo actualizará-os com sucesso no século XX.
Da dupla identidade à afirmaçom
Em 1812, momento fundacional do liberalismo espanhol, os cataláns mantenhem memória de instituiçons de autogoverno (nom passaram nem cem anos da sua supressom violenta). Por darmos um exemplo, o deputado catalám nas cortes de Cádiz, Antonio de Capmany, levava a defesa identitária catalá ao nascimento da Espanha contemporánea. A Espanha seria superior à França, manifesta, pois nesta ‘nom há províncias nem naçons’. Das ‘pequenas naçons peninsulares compom-se a massa da grande naçom’.
Todo o século XIX catalám supom umha séria tentativa de integrar a identidade própria no projecto espanhol, sem que o núcleo duro do Estado, castelhano-andaluz, mostrasse mínimo sinal ed compreensom. Nessa linha estám as tentativas do precursor Valentí Almirall. O autor de ‘Lo Catalanisme’, ciente da relutáncia espanhola para reconhecer as ideias de plurinacionalidade e progresso capitalista, começa a propor que essa aliança de povos que é Espanha seja governada desde Catalunha. A mesma proposta está por trás do grande catalanismo burguês da Lliga Catalanista. Prat de la Riba ou Cambó sonhárom um ‘império’ peninsular do Mediterráneo a Lisboa, no que Barcelona seria motor económico e cultural.
É a negativa hispana, mais umha vez, a permitir qualquer direcçom da burguesia catalá nos assuntos peninsulares, a que decanta o catalanismo cara o nacionalismo. Da dupla identidade passa-se à identidade única, da Catalunha naçom e a sua cidadania com vontade soberana.
Arredismo popular
A historiografia espanhola -nomeadamente a esquerdista- fabricou a imagem dum catalanismo de privilegiados, egoísta e mercantil, desvinculado das massas. Este existiu, mas floresceu também umha defesa popular da identidade catalá. Lembremos, sem ir mais longe, que já o conhecido anarco-sindicalista Salvador Seguí, ‘El Noi del Sucre’, apostara na independência catalá.
E num curioso paralelismo com a Galiza, o independentismo catalám também nasceu em Cuba, baixo a influência de José Martí e os nacionalistas da Ilha. Ali nasce Estat Català e madura as suas teses Francesc Macià, o primeiro líder que programa umha insurrecçom arredista. Trata-se do complot de Prats de Molló, gorado nos seus inícios, mas que permite difundir como nunca o ideário rebelde dos cataláns.
Tam só a perspectiva esquerdista e a base popular permitem entender a decidida oposiçom independentista à ditadura -frente a ambiguidade ou refúgio cultural do catalanismo burguês. Protagonizam-na partidos como o Front Nacional de Catalunya ou o Partit Socialista de Alliberament Nacional, que mantivo relaçons privilegiadas com a Uniom do Povo Galego no franquismo. Este novo catalanismo radical, muito influenciado por pensadores como Joan Fuster, teoriza a unidade nacional no marco dos Países Cataláns, sonhando umha República que integre o País Valenciano e as Ilhas. Trata-se dos verdadeiros precursores das actuais CUP, com importante arraigo popular e ampla representaçom municipal e autonómica.
E trás a Reforma política, quando a direita e a esquerda quase em pleno aceitam a nova legalidade monárquica, apenas o independentismo abandeira a crítica ao Regime. Terra Liure e o Moviment en Defesa de la Terra, entre outras organizaçons armadas e políticas, mantivêrom o facho nesta travessia do deserto, quando a direita burguesa catalá era um piar fundamental da governança hispana.
Do ostracismo ao sucesso
Em 1992, coincidindo com a dissoluçom de Terra Liure, Esquerra Republicana abraça o independentismo explícito. As teses pola soberania plena superam o reduzido círculo da esquerda revolucionária e empapam a esquerda liberal; no novo século, umha nova mostra de cerraçom espanhola muda-o todo: o Tribunal Constitucional nega-se a aceitar a proposta de Estatuto catalám reformado, o que desengana de vez aqueles que acreditavam na possibilidade dum pacto federal. O amargo desengano soma-se aos efeitos da crise das finanças, que desgastam como nunca as classes médias catalás. A direita autóctone vira ao soberanismo, e um amplíssimo movimento popular começa a falar claro.
Em Arenys de Munt, no ano 2009, umha consulta simbólica pola independência enceta o ciclo dos referendos locais. Seguem-lhe a constituiçom da Assemblea de Municipis per la Independència em 2011, e a declaraçom de muitos concelhos como ‘territori lliure català’. O resto, até o tsunami democrático destes dias, é de sobra conhecido.
Resposta espanhola: da incompreensom ao ódio
Um dos traços senlheiros do nacionalismo espanhol é o complexo. Face os seus homólogos europeus, os teóricos hispanos nunca assumírom o défice de legitimidade do seu Estado. A frustraçom levou à demonizaçom do inimigo. Se o galego é o entranhável submisso (e, na versom arredista, o rebelde anormal num país harmonioso), o catalám é o negociador maquiavélico. A prosa política espanhola inça-se desta caracterizaçom desde os inícios. Blasco Ibáñez definia os promotores do catalanismo como ‘burguesia separatista barcelonesa, frailuna, vetusta, partidária da independência do famoso Principado, piolhento e sanguinário, que deixou marcadas na história pegadas umha ferocidade fenícia’ (1907, ‘Pueblo’). Pío Baroja manifestava o seu rechaço aos intelectuais catalanistas como Santiago Roussinyol polo seu ‘aspecto semítico’ (‘El problema catalán, la influencia judía’). Também a esquerda republicana incidia no argumento: ‘O catalanismo é a mais viva encarnaçom da mais refinada hipocrisia comercial. Na política representam o que os judeus na nossa raça, som os esquilmadores.’ (‘La Voz del Pueblo’, 1913). E assim, os tempos da II República iniciam-se afiançando o histórico receio espanhol: ‘som eternos inadaptáveis…a sua covardia e egoísmo nom lhe deixam sítio para a fraternidade. Assim pois, propomos às cortes constituintes a expulsom dos catalanistas’ (1931, artigo republicano em vários jornais espanhóis).
De tais argumentos às propostas fascistas havia um pequeno passo que alguns dam. Eis o doutor Albiñana, um dos teóricos da ultradireita espanhola: ‘O Estatuto catalám, contra o que pensa a maioria dos espanhóis, nom representa senom um episódio da despiadada luita secular de judeus e masons contra Espanha.’ Por isso nom havia melhor preparaçom deslegitimadora de Companys que a sua feiçom judia, segundo o monárquico ABC: ‘judeu é Companys (com) cabeça de degenerado, com queijada débil (…) descendente de judeus conversos, e nom há mais que ver-lhe a cara para compreendê-lo’ (ABC, 1936).
Belicismo hoje
Quiçá nenhum nacionalismo peninsular -nem o galego nem o basco- acorda em Espanha nenhum sentimento de ódio tam intenso. A causa provável é a sensaçom estatal de fraqueza ante um movimento enorme, que inclui desde o povo rebelde a elites relativamente poderosas. Qualquer vista de olhos a redes sociais confirma que o velho sonho federal, a crença numha soluçom consensuada para o problema espanhol, se esfarela a passos agigantados. Na retórica do ódio navega com especial soltura a extrema direita, como comprovamos ao ler as suas mensagens, e no seu quadro de discurso inclui-se a imprensa galego-espanhola.
‘Lledoners, a cadeia de cinco estrelas onde os líderes secessionistas aguardam a sentença vivendo a corpo de rei’, diz a jornalista de La Voz de Galicia Ana Balseiro. O representante de Vox em Girona recunca neste sentimento, a denúncia de supostos ‘vividores’ negociando com a política: ‘o covarde de Puigdemont animando mais umha vez as suas tropas, seguramente enquanto desfruta dumhas ostras com champám em Bruselas’. Também os dirigentes ultras e as forças policiais radiam o parte do dia da batalha contra os cataláns com regocixo.
A histórica capacidade mobilizadora independentista e a elevada consciência política de parte do povo abre horizontes de optimismo. Porém, o militarismo e a hostilidade espanholas, que aparecem periodicamente ao longo da história, obriga a estar muito alerta a qualquer pessoa consciente.