A Organizaçom Mundial da Saúde elaborou estudos nesta década que afirmam que perto de um quarto da populaçom mundial padece algum nível de dependência de hábitos e substáncias ‘socialmente aceites’. Do estudo excluem-se as drogas ilegais, e nele incluem-se dependências novidosas, tipificadas como IGD (‘Internet Gambling Disorder’ e ‘Internet Gaming Disorder’), alusivas à escravitude das apostas ou do jogo online. O informe, porém, nom reconhece um fenómeno de perda de autonomia de força crescente: a adiçom à pornografia, debilitante das relaçons sociais no mais íntimo das pessoas.
Dados contundentes
Segundo o gigante capitalista do porno, PornHub, o Estado espanhol situa-se no posto número 13 de consumo de porno online, posto de mérito duvidoso, se levamos em conta outros países do ranking. Com efeito, estados como Estados Unidos, a Índia ou o Reino Unido aventajam o Reino de Espanha, mas a sua populaçom é bem maior. Nenhuma diferença de relevo, porém, deitam as estatísticas quanto géneros: quase o 80% do seu consumo é masculino, e as mulheres raramente chegam ao 30%. A filosofia machista que subjaz nesta indústria, como logo veremos, explica esta desproporçom.
Num estudo apresentado neste mês de Outubro em Compostela, e assinado pola Rede de Jovens e Inclusom Social da Universidade das Ilhas Baleares, procuravam-se algumhas das chaves explicativas do fenómeno. A sua extensom em idades muito temperás, mesmo na infáncia, dá prova do papel ‘educativo’ -substitutivo de pais, maes e centros de ensino- que estám a jogar os dispositivos móbiles. A sua presença entre adolescentes, por outra parte, afinca no analfabetismo sexual que ainda predomina na nossa sociedade, apesar do avanço da visom liberal das relaçons. Segundo o estudo citado, 80% de adolescentes dim que nom recebêrom umha adequada formaçom sexual no ensino.
Adiçom ou compulsom? Controvérsia académica
O recurso continuado ao entretimento sexual online acança proporçons massivas, fomentado pola gratuidade dos conteúdos, a falta de sançom social, e o deterioramento das relaçons entre as pessoas, também as íntimas. De sexo som as páginas mais visionadas na rede, e também de sexo (neste caso abertamente ilegal e delitivo) som as webs mais consultadas na chamada ‘dark web’, a rede oculta ao controlo dos Estados. O primeiro portal de consumo pornográfico do mundo maneja, segundo o especialista Carlos Rosón, presidente da ONG Igaxe, mais volume de dados que Facebook.
A Associaçom Norteamericana de Psiquiatria, instituiçom que vela por umha espécie de ortodoxia da saúde mental (e questionada pola psiquiatria crítica) rejeita falar ainda da dependência do porno como umha ‘adiçom’. Ainda, a magnitude do problema levou-no a incluir no DSM-V, o seu manual de referência de doenças, como um ‘trastorno de controlo de impulsos nom especificado’. O recurso compulsivo, reiterativo e alheio à própria vontade, de imagens sexuais na rede, faria parte, segundo alguns psiquiatras, das chamadas ‘adiçons sem substáncia’. Som respostas dirigidas à calmaria de dores e padecimentos íntimos. Sensaçons cada vez mais frequentes nas metrópoles capitalistas -mesmo em pessoas que nom padecem o mais cru da exploraçom económica- som a tristura, a soidade, o baleiro ou o aborrecimento. As crises na relaçom de parelha, no pior dos casos motivadas pola agressom machista, no pior por umha epidemia de falta de entendimento e compreensom, som à sua vez, segundo os especialistas, ‘causa e consequência da extensom do porno on line’.
Sem entrarmos em fundas disquisiçons científicas, as tendências que fomenta o sexo virtual semelham-se às causadas por outras substáncias ou hábitos: o recurso abusivo propicia a toleráncia crescente aos seus efeitos, o que exige mais e mais consumo; a sua carência provoca malestares, que se podem entender num sentido amplo como sindrome de abstinência; e a impulsividade ou adiçom podem alterar o controlo cognitivo. Por regra geral, quando as pessoas agimos contrariamente às nossas querências e princípios, adoitamos recorrer a inúmeros trucos psicológicos que disfarçam a nossa atitude, mesmo ante nós próprios.
Umha enxurrada imparável
A diferença de outras substáncias e engenhos aditivos (drogas, apostas, redes sociais), a pornografia online é um fenómeno essencialmente solitário, o que fai mais difícil qualquer controlo ou valorizaçom social. Nos últimos tempos, além de ser acessível e gratuito, virou socialmente aceitável. A visom puritana católica do sexo como algo pecaminoso, alimentada aliás de dupla moral, cedeu passagem à consideraçom das relaçons humanas como algo banal, e do sexo como mais umha atividade fisiológica, como alimentar-se ou defecar, sem nenhuma associaçom com a moral e os sentimentos. Com o neoliberalismo em pleno êxtase, apenas faltava umha poderosa indústria que capitalizasse esta visom das cousas. Nas tertúlias televisivas virou tolerada a participaçom de ‘estrelas’ da pornografia ou magnates do negócio.
O modelo, como em tantos outros ámbitos, é estadounidense: na década de 50, um debate político entre liberdade de expressom e pornografia decantou-se a favor da primeira, apesar do poderoso lobby do integrismo religioso afincado na direita americana. Tal liberdade de expressom foi aproveitada como liberdade para o lucro e, mais de médio século depois, o 80% da pornografia mundial produze-se neste país, constituindo umha florescente indústria exportadora.
Patriarcado redoblado
Carlos Rosón lembrou nas jornadas celebradas em Compostela, referenciadas acima, que, de ser um fenómeno clandestino ou desconhecido, o fenómeno das violaçons em grupo disparou-se baixo influência do porno online. ‘Há mais de cem casos de ‘manadas’ judicializadas’. O exemplo volve a pôr enriba da mesa umha das análises históricas do feminismo: a socializaçom da mulher como um objecto, sem vontade nem direitos, através da pornografia. Num estudo recente realizado numha universidade madrilena, baixo a direcçom da investigadora Ana de Miguel, estudárom-se os três videos pornográficos mais vistos em território estatal: um é umha apologia da violaçom, e os outros dous som sexo sem consentimento. Todos eles juntam mais de 50 milhons de visitas.
Ana de Miguel, que escreveu o livro ‘Neoliberalismo sexual. El mito de la libre elección’, tentou esclarecer o paradoxo de porque numha sociedade que interpreta maioritariamente que ‘já se acadou a igualdade’, o terror e a opressom contra as mulheres continua. Para a pensadora, a pornografia tem um grande papel no que ela chama ‘patriarcado do consentimento’, e daí a necessidade da oposiçom radical: ‘nom posicionar-se em contra da indústria pornográfica que está a gerar modelos femininos e masculinos nos que se dam relaçons desigualitárias, de dominaçom e aldragem (…) é estar a prol do patriarcado. Nom opor-se a um negócio no que sobre os corpos das mulheres se praticam essas violências é ter caído na concepçom neoliberal do ‘todo vale se há dinheiro e consentimento.’
Sós, tristes, irritados
A indústria pornográfica reflecte o patriarcado, e também o modelo de homem (em menor medida, de mulher) do capitalismo seródio. Umha pessoa que substitui as relaçons humanas cara a cara, imprevisíveis e por vezes difíceis, pola mediaçom de aparelhos, até chegar ao mais íntimo. No Japom, umha das vanguardas do capitalismo, o 70% dos casais já nom tem relaçons sexuais, e a indústria da pornografia representa o 1% do PIB do país. No mundo occidental, estima-se que para explicar a existência dum 50% de divórcios do total de matrimónios, o desentendimento sexual entre as pessoas é motivo de peso. O sexo virtual, especialmente na sua dimensom aditiva, degradou ainda mais o entendimento dos casais.
O filósofo Santiago Alba explicou num artigo de 2012 esta relaçom entre sexo mecanizado e ideologia capitalista: ‘umha das avantagens do sexo é que obriga a emprestar atençom ao outro. Nom cuidados o corpo de doente à vontade, mas ocupamo-nos com minucioso entusiasmo do corpo desejado. O amor e o desejo constituem a única garantia irrefutável da existência do mundo e da nossa dependência recíproca nele. (…) Que sed passa quando a perguiça chega ao extremo de curtarmos todo vencelho -mesmo o do desejo- com um corpo de carne e osso? (…) Um macho que se ‘independiza’ dos corpos através da masturbaçom artefacta, um perguiceiro radical adito à ausência industrial do mundo, fará muito pouco por conservar esse mundo que despreza, lá onde se achar em perigo, e fará em troca todo o que for preciso -e sem nenhum malestar nem remorso- por conservar a indústria da que depende a sua independência.’