A era do chamado capitalismo comunicativo é uma era caracterizada pela individualidade ordenada. Cada um de nós é informado, repetidamente, de que somos únicos e encorajados a cultivar essa singularidade. Aprendemos a insistir e a desfrutar da nossa diferença, a intensificar os processos de auto individuação. É a celebração da singularidade pessoal. Obrigado a descobrir, decidir e expressar tudo a nós mesmos e construir a coletividade política como nostalgia das solidariedades impossíveis de uma era diferente. A ideia feminista da segunda onda de que o “pessoal é político” se destorceu na presunção de que o político é pessoal: como isso me afeta?(DEAN, 2016).
Entretanto, o individualismo nem sempre foi tão intenso e absoluto. Ele não é essência, ele foi naturalizado. Segundo Dean (2016), nos Estados Unidos na década de 1970, os “individualismos reformados e diversificados” prejudicaram as abordagens baseadas nas classes para os direitos econômicos ao longo da década. Segundo ela, houve um assalto à coletividade. Olhando para as mudanças na individualidade ordenada desde a década de 1970 até o presente, existem enormes tensões colocadas no indivíduo, este sendo uma espécie de sobrevivente frente ao desmantelamento de instituições e da solidariedade. Além disso, os processos capitalistas simultaneamente promovem o indivíduo como a principal unidade do capitalismo, o individualismo é hoje menos uma indicação de narcisismo do que a psicose. Logo, as ênfases da responsabilidade e da identidade individual neste debate aparecem como o que de fato eram: a fragmentação de uma perspectiva coletiva. Para Dean (2016; 2009) tal situação resulta em um problema psíquico e econômico interligado: a incapacidade e as contradições da forma individual como um lugar para a criatividade, a diferença, a agência e a responsabilidade. E, consequentemente, o individualismo acaba por servir como um impasse para a política da esquerda.
Muitas vezes a coletividade acaba por funcionar como retórica cooptada a serviço da amplificação da coragem individual, em um contexto preocupado com a afirmação da singularidade pessoal. Então, segundo Dean (2016), quando a esquerda ecoa injunções à individualidade, quando enfatizamos perspectivas únicas e experiências pessoais, funcionamos como veículos para a ideologia do atual capitalismo comunicativo.
Fazendo da diferença individual a base da política, não conseguimos distinguir entre o capitalismo comunicativo e a política igualitária emancipadora. Pior ainda, afirma a autora, fortalecemos a ideologia que impede o cultivo de coletividades politicamente poderosas. Chamar as pessoas a fundamentar suas políticas nas experiências pessoais que os diferenciam dos outros é reforçar a dinâmica de individuação capitalista.
Oferecendo a fantasia de políticas personalizáveis, tal chamada diz: olhe para si mesmo a partir da posição específica e dos interesses que lhe são dados pelo capitalismo e faça o que quiser. Ao fazê-lo, afasta-se da coletividade da qual a política de esquerda depende.
A injunção à individualidade é tão onipresente que é fácil esquecer sua construção histórica e modulações, seu caráter de patologia que acompanham os processos capitalistas. As turbulências econômicas, mudanças na estrutura da autoridade e perda de autossuficiência, dão uma qualidade tênue à identidade pessoal. As pressões competitivas dos processos capitalistas se tornam cada vez mais deslocadas e concentradas no indivíduo. As forças que ordenam a individuação o prejudicam. Quanto mais o indivíduo, esse sujeito fictício do capitalismo, é glorificado, mais tenso e impossível se torna. Uma espécie de individualismo autodestruído (DEAN, 2016).
O homem econômico do século XIX deu lugar ao homem psicológico de nossos tempos – o produto final do individualismo burguês. As preocupações com o eu, a autenticidade e o crescimento pessoal que se tornaram predominantes ao longo da década de 1970 são sintomáticos de um individualismo que colapsa sobre si mesmo como lutas de individualidade ordenada para perceber as expectativas sempre crescentes que vão sobrecarregá-lo (DEAN, 2016). Aqui, vale ressaltar que “individuo” não necessariamente deve ser visto como uma só pessoa ou sujeito, mas também enquanto grupo (principalmente em termos políticos), um grupo que se comporta como indivíduo. Dean (2016), tenta localizar as mudanças no indivíduo dentro de um contexto de mudanças políticas e econômicas. Assim, afirma que as próprias injunções do capitalismo para a individualidade sobrecarregam e prejudicam a forma individual. A título de exemplo, a autora faz um contraste entre os pioneiros norte-americanos e os norte-americanos dos anos setenta que estão presos em uma sociedade “chata, ordenada e banal”. Porque a luta pelo sucesso substituiu a luta para sobreviver. No entanto, os norte-americanos nos anos setenta se assentaram com uma raiva interior de que a sociedade burocrática e sua liminar para se comportar alegremente os impedem de se expressar, às forças violentas do id agora faltam uma saída.
E mais: Dean (2016) aponta que com o desenvolvimento e fixação da burocracia e o caráter burocrático da vida cotidiano, passou-se a valorizar a rapidez e a mobilidade. O sujeito, nesse contexto, não integra as regras como normas socialmente válidas; ele experimenta relações trabalhistas e pessoais como lutas de poder. Um comportamento amigável, um ar de compaixão, e uma abordagem aberta e participativa para a tomada de decisões esconde um jogo de poder que a maioria perderá. Junta-se a isso a ascensão de uma autoridade especializada (o especialista, o técnico) em detrimento de outras formas de autoridade. Segundo a autora: a racionalidade burocrática do capitalismo social substitui a hierarquia da era anterior por administradores, técnicos e especialistas. Em vez de ter autoridade simbólica, especialistas e administradores têm conhecimento. Este conhecimento é geralmente contestável e provisório. A cultura da experiência tecnocrática e da gestão absolve indivíduos de responsabilidade, tornando todos uma espécie de vítimas de doenças ou circunstâncias. A cultura narcisista infantiliza promovendo a dependência das burocracias paternalistas do liberalismo do bem-estar (corporação e estado) e ao mesmo tempo encorajando a busca do prazer. São as ilusões fabricadas pela cultura de massa.
O que temos é uma individualidade reativa que acompanha as mudanças na sociedade capitalista associadas à produção e ao consumo em massa. Dean (2016), aponta que o consumo resolve todos os problemas, preenche todas as necessidades. Em vez de adiar o prazer, o consumismo exige a gratificação agora. O crescimento concomitante na gestão e proliferação de técnicos, especialistas e profissionais do conhecimento apresenta novas formas de controle capitalista, que se estabeleceram primeiro na fábrica e depois se espalharam pela sociedade. Então, o efeito desses desenvolvimentos é a realização da lógica do capitalismo, de modo que a busca do interesse próprio, anteriormente identificada com a busca racional do ganho e o acúmulo de riqueza, tornou-se uma busca do prazer e da sobrevivência psíquica. A tendência é que cada pessoa deve ser usada para o gozo de outro: o individualismo puro, assim, causa o repúdio mais radical da individualidade. Ou seja, acaba que a cultura do narcisismo coroe o indivíduo que ele realmente celebra.
Assim, ao longo dos tempos, o aprofundamento da desigualdade e da insegurança econômica vem mudando o indivíduo até o momento contemporâneo. Onde antes se destacava a corporação burocrática, o desenvolvimento do capitalismo desaguou em uma nova economia de trabalhadores temporários, trabalhadores tecnológicos e empreendedores. Esses trabalhadores agora não dependeriam essencialmente da burocracia. Suas vidas e trabalho, no capitalismo comunicativo, são instáveis, sem muitas garantias. Muitos trabalham em contratos temporários. As empresas querem ser flexíveis e a crítica da dependência tornou-se uma norma interiorizada. Logo, passa-se a dar ênfase em valores empresariais, como autonomia e auto direção. Os trabalhadores se preocupam em manter suas habilidades atualizadas, ter o potencial de aprender novas tarefas rapidamente e cultivar capacidades facilmente transferíveis, como “resolução de problemas”. Cria-se uma áurea orientada ao curto prazo, focada no potencial e capaz de abandonar o passado. Imediatismo, flexibilidade e uma ruptura com a continuidade histórica (DEAN, 2016).
A corporação não fornece mais um ponto de referência estabilizador para a narrativa da vida profissional, desorientou os indivíduos nos esforços para planejar seu curso de vida estrategicamente e esvaziou o poder disciplinar da antiga ética de trabalho, sinalizando um declínio do simbólico, uma perda em termos de significado e linguagem: a ausência de um lugar a partir do qual narrar a vida. Dean (2016), aponta tal fato pois, em seu entendimento, as ênfases em narrativas de vida acabam por aumentar a carga sobre a forma individual. Em vez de construir a coletividade e a solidariedade que poderiam aliviar algumas das demandas impostas aos indivíduos, continuar-se-ia em direção do indivíduo. Essa mudança de narrativa levou a uma versão mais extrema, no sentido de que o individualismo protege e enfatiza a autoconfiança, o fazer por si próprio, rejeição de grupos e instituições sociais, a não dependência. Mas, a independência acaba por se converter em um fetiche que dificilmente mantém a frágil forma individual. Na contextualização histórica para entender o trato dado pela esquerda a essa questão, Dean (2016) destaca que, no nascer do neoliberalismo, nos ataques ao estado de bem estar social, sindicatos e as responsabilidades coletivas mais amplamente, a individualidade desponta em um lugar surpreendente: a própria esquerda. Mais especificamente, enamorados da aparente liberdade e criatividade oferecidas sob odisfarce de uma sociedade em rede. O indivíduo, e não a classe, seria o locus da liberdade. No final da década de 1980, a dissolução do estado de bem-estar e o surgimento da tecnologia da informação e, mais tarde, o colapso do bloco soviético, exigiram a reconstrução da esquerda. A questão, então, era como essa esquerda reconstruída se pareceria. Um “individualismo progressista” se fez presente e enfatizava colocar os interesses individuais no centro da estratégia da esquerda. O objetivo da ação coletiva seria satisfazer as necessidades individuais. Para se adaptar aos novos tempos, a esquerda tem que se parecer com a direita. Em vez de defender os valores da classe trabalhadora, da igualdade, solidariedade e coletividade, existe a união por uma celebração do indivíduo como um agente racional, disciplinado e autônomo com o poder de refazer seu mundo. Esses “novos tempos” exigiriam uma política de identidade(DEAN, 2016).
Nesse contexto, a política de identidade deve estar no centro de uma política transformadora, porque dá uma sensação de diferença, das muitas identidades oferecidas na e pela cultura contemporânea. Ela ajuda as pessoas a pensar sobre como elas se relacionam com os outros, como vivem e experimentam diretamente a ideologia. Em vez de o partido fornecer uma perspectiva crítica a partir da qual olhar o mundo, rompendo com a cultura capitalista hegemônica e instalando uma lacuna dentro dele, a experiência vivida seria a perspectiva exercida sobre a política. Caracterizando fundamentalmente o pensamento de esquerda por várias décadas, a própria política se volta para dentro, a tarefa de mudar o mundo precedido pelo de entender a si mesmo. Tendo listado as identidades e relações importantes para pertencer – raça, classe, gênero, nação e colegas, amigos, filhos, etc – haveria então um sentido fundamental do ‘eu real’, o sentimento que, embora precário nessas outras identidades, há um núcleo oculto e secreto, um eu completamente antissocializado e essencial em algum lugar privado e interno. A implicação é que esse núcleo secreto deveria ser o alicerce de uma nova política de unidade na diferença, uma espécie de princípio bolchevique reimaginado através de uma política de identidade. O resultado é uma mudança no foco da política de esquerda, de modo que ela contraia e não amplie (DEAN, 2016).
Dean (2016) aponta que existe a impressão de que o capitalismo se tornou infinitamente mais permeável, abrindo enormes espaços para as pessoas esculpirem suas próprias realidades sociais autônomas. Porém, na realidade, o capitalismo se tornou mais um “sistema global total”. O chamado “realismo de esquerda”, amplamente compartilhado entre a esquerda anglo-europeia, teoricamente desenvolvido por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, e reforçado por estudos culturais e pós-estrutural (a teoria crítica habermasiana forneceu a estrutura para uma acomodação similar), aceitam o mercado como necessário. Limitando-se a um campo político limitado e aceitando o Estado e o mercado como dados, os realistas de esquerda abraçam a política da identidade. (DEAN, 2016)
Abordando como exemplo o cenário europeu, Dean (2016) defende que no momento em que o capital estava atuando para romper sindicatos, desmantelar o Estado de bemestar, privatizar serviços públicos, impor tecnologias de informação, transferir a produção industrial para mercados de trabalho mais baratos e facilitar expansões em serviços financeiros e fluxo de capital, a esquerda anglo-europeia estava tentando descobrir como tornar o socialismo mais atraente do que como revidar. Procedendo como se o socialismo fosse apenas mais um produto de um mercado político, a perspectiva em relação aos desafios políticos e econômicos enfrentados pela esquerda era determinada por um horizonte capitalista em vez de comunista. Abraçou-se o apelo capitalista ao individualismo no exato momento em que deveria ter enfatizado a solidariedade e a força coletiva. Esse abraço ajudou a reforçar a forma individual. A intensificação do capitalismo amplifica as pressões sobre e para o indivíduo. Essas pressões são políticas: ele é chamado a expressar sua opinião, falar por si próprio, envolver-se. Ele é informado de que ele, sozinho, pode fazer a diferença. As pressões sobre o indivíduo também são econômicas: mesmo na ausência de mobilidade social significativa, o indivíduo é oferecido como o determinante mais significativo de sucesso ou fracasso. Não admira que o capitalismo comunicativo nos imponha à singularidade: somos o produto que fazemos de nós mesmos. E a injunção do capitalismo para individualizar é a arma mais poderosa em seu arsenal pois dificulta que as pessoas se unam em uma luta comum. As pressões também são psicológicas, como já vimos, a intensificação informacional e aceleração temporal saturam nossa atenção aos níveis patológicos, a exemplo dos cada vez mais comuns casos de depressão, que acabam por funcionar como uma espécie de defesa, já que a patologia real seria a própria forma individual. O indivíduo é patológico no sentido de ser incompatível com seu ambiente, incapaz de responder às pressões que encontra sem dor, sacrifício ou violência, além de afetar diretamente os tipos de “eus” que nos tornamos. Vivemos em uma época em que se sobrecarrega o indivíduo de responsabilidades e expectativas anteriormente coletivas (DEAN, 2016).
Mas, as contradições concretas do capitalismo já levaram ao reconhecimento geral de que este é um sistema que toma dos muitos e dá aos poucos. O sistema produz perdedores – os desempregados, os sem-teto, os endividados, etc. Ele se baseia em dívidas, execução de hipotecas, expropriação, expulsão, desapropriação, destruição, privatização. Porém, desde que a esquerda começou a olhar para si mesma e para o mundo em termos de especificidade individual e eficiência dos mercados, pareceu mais fácil imaginar o fim do capitalismo do que imaginar uma esquerda organizada. A fragmentação da política de esquerda em uma matriz cada vez maior de populista, liberal, progressista, verde, multiculturalista, antirracista, democrática radical, feminista, identitária, anarquista, queer, autonomista, horizontalista, anti-imperialista, insurrecionista, as convicções libertárias, socialistas e comunistas, etc são sintomáticas e recheiam discussões entre ativistas e acadêmicos, réplicas em reuniões e réplicas nas mídias sociais. Essas premissas são de que a coletividade é indesejável e impossível (DEAN, 2016).
A coletividade é indesejável porque se suspeita de excluir possibilidades, apagar a diferença e impor a disciplina. “O que você quer dizer com ‘nós’?” É um slogan dessa suspeita, tipicamente lançado em contextos e discussões consideradas insuficientemente atentas às especificidades de cada um, a experiência da pessoa. A “diversidade de táticas” às vezes surge como outro slogan, particularmente quando invocado para garantir espaço para confrontos entre pequenos grupos com a polícia, em detrimento de uma coordenação política mais ampla. No lugar de uma coletividade indesejável, o realismo de esquerda oferece diversidade, pluralidade e multiplicidade. Tais pontos de vista procedem como se essa multiplicidade fosse primariamente ontológica, ao invés de também estimulada pelo capitalismo para seu benefício e preservação. Somos tão diferentes, tão singularizados em nossas experiências e ambições, tão investidos na primazia de um conjunto de táticas sobre o outro que não podemos nos unir em uma luta comum. Na melhor das hipóteses, podemos encontrar afinidades momentâneas e coalizões provisórias. A política deve envolver o cultivo de nosso próprio ponto de vista ou o ponto de vista de nossa localidade – em vez de tentar organizar essas visões em algo como uma estratégia. Outra variação é de que a impossibilidade de mudanças fundamentais na economia mundial impede a coletividade. A ênfase unilateral do realismo de esquerda na dimensão objetiva do nosso atual cenário capitalista falha em reconhecer a dimensão subjetiva de perspectiva, organização e vontade. A resposta da esquerda ao isolamento não deveria ser deixar a realidade que produz o individualismo determinar nosso horizonte político. Em vez disso, deveria ser construir solidariedade. As suposições de que a coletividade é tanto indesejável quanto impossível derivam de uma suposição ainda mais insidiosa do realismo de esquerda: que a política envolve o indivíduo (DEAN, 2016).
Tendo em vista tudo isso, Dean (2016) é firme ao apontar que o realismo de esquerda parece realista para alguns, porque ressoa com o ethos prevalecente do neoliberalismo tardio que nos diz para fazê-lo nós mesmos, permanecer locais e pequenos, e não confiar em ninguém. Afirma a insistência do capitalismo no imediatismo e na flexibilidade e a substituição do estado de planejamento e serviços sociais de longo prazo por gerenciamento de crises. O realismo de esquerda é bom para a indignação espontânea. Mas não consegue se organizar de uma maneira que possa fazer algo com esse ultraje. Desorganizada, continua incapaz de usar as crises para construir e tomar o poder, e muito menos para construir arranjos sociais e econômicos mais equitativos e menos propensos a crises. O realismo em que a esquerda foi imersa nas décadas neoliberais significou que, mesmo quando estamos plenamente conscientes da profunda desigualdade do sistema em que nos encontramos, confirmamos e nos conformamos com a ideologia dominante: vire-se para dentro, enfatize o singular e momentâneo. Segundo Dean (2009, 2016), mesmo teóricos e ativistas de esquerda que criticam grandes e más corporações e os extremos crescentes entre riqueza e pobreza, acham extraordinariamente difícil pensar em alternativas para a atual configuração de poder. Em parte, isso ocorreria porque não conseguimos dar voz a valores de coletividade, cooperação, solidariedade e equidade suficientemente fortes para combater a fantasia de livre comércio do neoliberalismo. É também porque não podemos imaginar como poderíamos realizar, promulgar, trazer tal visão. Nossa própria suposição de democracia nos aprisionaria nas desigualdades do estado atual em que nos encontramos. Os movimentos de esquerda tiveram importantes vitorias, em termos culturais e políticos, no pós 1968 e durante as décadas de 1980 e 1990, mas o entusiasmo pela diversidade, pela multiplicidade e pela agência de consumidores que ativamente transformam seus estilos de vida acabou, segundo autoras tão diversas como Nancy Fraser e Jodi Dean, unindo a esquerda e o capital.
Por mais que muitos defendam as afirmações da diferença, singularidade e fluidez de modos de ser como posturas radicais, como uma espécie de vanguarda, é perigoso ignorar a relação disso com o neoliberalismo, o impulso que este dá a diversidade. É bom ser diferente, a direita também apoia isso. Aqui o jogo das disputas ideológicas está em curso. Quando o inimigo de alguém aceita os termos de uma pessoa, o ponto de crítica e resistência é perdido. A dimensão do antagonismo, oposição fundamental, desaparece. Outros conflitos menores emergem, tornam-se locais de intensidade e sugam as energias políticas. As confusões surgem à medida que a multiplicidade de pequenos antagonismos, cada um aparentemente central, dificulta encontrar a “divisãochave”. Assim, é justamente o confronto a essas implicações ideológicas que muitos, identificados como esquerda, não conseguem fazer. Repetem-se termos de antigas batalhas, como se o problema da direita contemporânea fosse seu investimento no essencial e nas origens, como se a direita já não aceitasse e se beneficiasse do impacto de representações e mediações. Exemplo contemporâneo disso é o demasiado entusiasmo, tanto de direita como de esquerda, pela democracia (DEAN, 2009).
A suposição da primazia política do indivíduo liga a política de esquerda ao imaginário capitalista dominante e nos impede de ver a concentração da política no indivíduo como sintomática da derrota da esquerda. Em vez de um local de criatividade, diferença, agência e responsabilidade, o indivíduo é o resto sobrecarregado de instituições e solidariedades desmanteladas. A individualidade amplifica as contradições. Mas, simultaneamente (e aqui a autora nos dá uma ponta de esperança), esses comandos e incapacidades atestam outra força: o poder da coletividade que se manifesta nas multidões (DEAN).
Visão corroborada, por exemplo, por Asad Haider. Segundo ele a política identitária contemporânea é uma neutralização dos movimentos contra a opressão, e não uma progressão em relação à luta de base contra esta. Ele argumenta que a identidade foi abstraída das nossas relações materiais com o Estado e a sociedade, que a tornam relevante para as nossas vidas. Assim, quando a identidade serve de base para as crenças políticas de alguém, ela se manifesta em divisionismo e atitudes moralizantes, em vez de estimular a solidariedade.
Fragmento do livro As aporias do lugar de fala: como a política identitária afetou a esquerda de Lays Bárbara Vieira Morais