Na sua juventude arredista, Fernandes del Riego reflectia sobre o excessivo peso dos teóricos no movimento galego, e observava preocupado o enfraquecimento da actividade por mor das digressons labirínticas sem conclusom definida. Também Ilha Couto, como apontávamos neste portal lembrando o mártir Galám Calvete, vincava no mérito das mocidades em nome dum novo estilo, mais propositivo e contundente: ‘liberdade externa, ‘imperium’ da Galiza polo caminho da política revolucionária ou activa’. A intervençom decidida -e, portanto, o ánimo que lhe dá soporte- é um motivo central do independentismo nos anos 30. O fascismo apagou o lume, mas permanecêrom as suas brasas. Delas surgírom iniciativas importantes, projectos de futuro nos panoramas mais negros. Por trás do DRIL de José Velo latejava o ánimo de intervir apesar de todo ‘contra os galeguistas románticos e apáticos’. E foi Antom Moreda, formado no arredismo das Mocidades Galeguistas de Bos Aires, o que trouxo a palavra ‘militáncia’ à nossa causa, desbaratando os plans ruins dos que se refugiavam nas bibliotecas e nos versos.
Quando o independentismo ganhou alento de novo, e puido ter organizaçons e discurso autónomo, recuperou este motivo central da sua identidade, advertindo contra as rémoras: ‘estas elites culturalistas-literárias, desassossegadas e entusiastas, acaparadoras, situadas à frente da corrente maioritária do nacionalismo, com armas do gargarismo, o arronrom e a hibernoterápia convertêrom-se em esquisitos gestores do processo eutanásico do seu povo’ (Antom Garcia Matos: ‘A Fouce: apontamentos para umha introduçom necessária’).
Os nossos detractores podem topar fundamentos para deslegitimar esta proposta. O canteiro Joám Jesus Gonçález, apesar de letrado e muito culto, considerava-se a si mesmo um ‘nacionalista de acçom’. E o jurista Carl Schmidt, na mesma época histórica, propunha o ‘nacionalismo de acçom’ como remédio aos problemas da Alemanha. Na década de 30, opçons radicais à esquerda e à direita partilhárom a promoçom da estética marcial, a prosa inflamada e o desprezo dos covardes. É certo, o culto, à acçom, à juventude, ao confronto físico, foi um dos traços fortes do fascismo. O ódio aos intelectuais e o receio contra os livros acompanhou a marcha triunfal de todos os camisas negras, azuis ou pardas polas ruas da Europa. E ainda que só os mal intencionados nos podam adjudicar parentesco com o totalitarismo, nom haverá razons de fundo para sentir certo desconforto? Nom estaremos proponhendo o atalho fácil e simplório do activismo a problemas mui complexos? Nom seremos, como dizia Eduardo Blanco Amor em diatriba contra ‘A Fouce’, pessoas embrutecidas para a reflexom de fundo que compensam a frustraçom com a fugida para adiante?
Nom. Esta suspeita, que realmente afasta muita gente de nós, procede dumha grave confusom. Associamos a inteligência com a cultura letrada, o pensamento abstracto e o ofício de pensador. A modernidade deslocou a autoridade do sacerdote pola autoridade do escritor e o científico. Estes, por vezes involuntariamente, escurecêrom outras muitas inteligências populares e empobrecêrom a nossa caixa de ferramentas.
Na década de 80, um psicólogo de Harvard, Howard Gardner, percebeu como a sua própria disciplina deixava fora habilidades mentais importantíssimas para explicar o ser humano. Gardner levou a cabo estudos empíricos com pessoas aqueixadas de distintos danos cerebrais, produto de accidentes ou doenças. E enquanto algumhas lesons fanavam capacidades básicas como a expressom escrita ou a fala, deixavam intactas outras destrezas, que por vezes se manifestavam com níveis excelentes. Sérias disfunçons na capacidade de redigir um texto, por exemplo, nom implicavam diminuiçom na capacidade de ler psicologicamente as intençons dum interlocutor; deficiências oratórias severas, por outra parte, podiam ir acompanhadas de grande perícia manual, até beirarem a excelência artística.
O sentido comum conhece esta compartimentaçom de competências. Gardner deu-lhe apoiatura científica e defendeu a pertinência de falarmos de ‘inteligências’, em plural, para entendermos as capacidades especificamente humanas. No seu livro ‘Frames of Mind: The Theory of Multiple Intelligences’, publicado em 1983, propujo cinco tipos de inteligência, que em estudos posteriores, desenvolvidos até o ano 2009, ampliou até dez. Achamos as inteligências próprias dos obreiros especializados, artistas puros, desportistas e cientistas exactos (a rítmica-musical, a física-kinestésica, visual-espacial, lógica-matemática); as que associamos com as dinámicas de grupo (a interpessoal e intrapessoal); e ainda outras que podemos riscar de ‘filosóficas’ ou metafísicas (como a existencial-moral ou a naturalista, que mede a capacidade da pessoa de perceber e integrar-se na natureza da que fai parte).
O movimento galego está em dívida com o primeiro e mais célebre tipo de inteligência, a que Gardner chama verbal-linguística. Pensadores de altura delimitárom, em obras escritas com enorme agudeza e claridade, qual ia ser no sucessivo o terreno de jogo da causa galega: explicárom por que constituímos umha naçom, desentranhárom a génese do colonialismo, e intuírom que a resoluçom do nosso conflito passava inapelavelmente por um movimento sócio-político e a conquista dum Estado. Com grande manejo da palavra, escritores e escritoras achegárom outro capital ao nosso património: sintetizárom em formas emotivas, comovedoras, míticas, a nossa razom histórica. Ligárom como nenhum outro sector com a psique dum povo que digerira o seu fracasso histórico em cantigas e poemas, que sobrevivia com ánimo saudoso, em esperanças difusas de redençom.
O movimento sobressaiu neste domínio, e porém escurece-se nos ámbitos que exigem outro tipo de destrezas. Cartografar com precisom os mapas dumha rota (trabalho dos teóricos) nom pressupom forma física nem capacidade de orientaçom sobre o terreno das montanheiras destinadas a consumá-la; acordar o entusiasmo para iniciar umha empresa (labor dos poetas) nom assegura que a paixom se mantenha ao longo das vicissitudes do caminho.
Para Gardner, a inteligência interpessoal é a que permite a regulaçom harmónica dos conflitos sociais e, na sua versom mais avançada, a capacidade carismática de seduçom e envolvimento das pessoas em causas colectivas. Na história do movimento, figuras como Castelao ou Bóveda brilhárom nesta dimensom, concitando a um tempo consensos e paixom popular. Fórom as raras excepçons numha longa tradiçom de lideratos litigantes e narcisistas, quando nom demissionários. Desde as Irmandades e até hoje, a controvérsia dura e o choque limpo de argumentos foi marginalizado em favor de debates nom resolutivos, personalizados e carregados de amargura. O cissionismo foi a principal manifestaçom da frustraçom política galega, a forma política da autolesom como desabafo.
O psicólogo norteamericano revelou nas suas pesquisas o alto grau de excelência que as pessoas podiam alcançar no domínio da inteligência intrapessoal. Hoje o capitalismo perfeiçoou esta disciplina para fazer sobreviver as assalariadas num meio hostil, baptizando-a como ‘inteligência emocional’. Ao longo da história, tradiçons mui distintas, e também a cultura revolucionária, fomentárom esta faceta da vida que remite ao auto-conhecimento, o cultivo da calma, o pensamento desapaixonado e a ecuanimidade. O independentismo deu bons exemplos desta inteligência, que floresce em contextos adversos como a perseguiçom ou o cárcere. Sem embargo, a maioria do movimento galego considerou desnecessário abordá-la a fundo. A viagem é longa e muito exigente, o nosso inimigo está diposto a todo (mesmo a esmagar pola força alternativas pacíficas). Ignorar o cultivo da nossa força interior tem algo de infantil, pois parte da negativa de considerar com toda transparência o que temos enfrente, e as exigências que o isto nos coloca.
Vivemos, dum certo ponto de vista, um contexto semelhante ao dos nossos antecessores: hegemonia espanhola, elites desleigadas, auto-ódio extendido, predomínio de estados anímicos colectivos apáticos ou derrotistas. Mas de outra óptica, entramos num horizonte totalmente novo. Estám em causa a sobrevivência da civilizaçom capitalista-consumista tal como a conhecemos, o consenso das elites e as formas de integraçom da populaçom; e o colapso ambiental fai evidente -por dizê-lo suavemente- que a relaçom entre a nossa espécie e a natureza tem que reformular-se em termos radicais. Todos os nossos movimentos emancipadores -e o independentismo é um deles- podem definir-se sem grandiloquência, doravante, como movimentos de emergência. E vam precisar de todos os tipos de inteligência, sem exclusom, para transitar cenários desconhecidos, cambiantes e possivelmente perigosos. As habilidades manuais e a criatividade, as relaçons entre as pessoas e das pessoas com si mesmas em cenários de dureza, a reflexom teórica e a arte, e também umha nova percepçom e um trato humilde com o mundo natural. Essas inteligências, que estám nos livros e porém sobardam todos os livros, som em realidade a acçom que historicamente vindicou o melhor do nosso movimento.