A grelha televisiva espanhola, na que se inclui a galega dependente, está a oferecer às audiências relatos pormenorizados e morbosos dos crimes de mais impacto. Os assassinatos de meninhos e mulheres permitem ao jornalismo profissional brindar crónicas sobre a vida íntima das famílias afectadas, especular com amores e ódios, recriar-se no sofrimento extremo, e mesmo infiltrar-se nas moradas da vizinhança, actuando sem respeito pola intimidade das pessoas. A cobertura mediática dos juízos de Ana Julia Quezada e do crime machista de Valga ilustram, mais umha vez, o nível de exigência ética e profissional que guia os grandes criadores de consciência.

Tem transcendido nas redes sociais que trabalhadoras da RTVG chegavam ao pranto ao serem enviadas a noticiar os detalhes do assassinato de Valga. A cobertura que exigem os dirigentes do organismo, além dumha pura focagem informativa, inclui oferecer as informaçons de maior suciedade possível: o número de disparos que rematárom com as mulheres, as relaçons entre genros e sogros, a situaçom económica das famílias atingidas, ou as fases que conformam o estado de shock em meninhos vitimados por mortes de familiares.

Numha companhia de rádio e televisom abondo deslegitimada polo servilismo partidário, esta vaga de sensacionalismo mereceu resposta. Organizárom-na as trabalhadoras mobilizadas pola democratizaçom do meio, que em redes sociais manifestárom o seu malestar. Vem-se na obriga, declaram, de realizar informaçons contrárias ao seu código deontológico, que partem de práticas nom profissionais como a esculca nos sentimentos da vizinhança, ou a entrevista a familiares do assassino.

Reacçom semelhante mereceu, entre as pessoas mais sensíveis, o desdobramento informativo desenvolvido arredor da morte dum neno em Almería; o juízo da sua assassina confessa, Ana Julia Quezada, serviu para intensificar a exibiçom de indignidade mediática, agravando aliás os sofrimentos dos pais do falecido. Numha nota que se extende também em redes sociais, a Asociación Pro Derechos Humanos de Andalucía espalhou um decálogo que contém as mínimas exigências éticas para abordar episódios tam sinistros. O colectivo, que se tem significado por defender causas como a liberdade palestiniana ou a defesa dos refugiados, exige nesta ocasiom o respeito de oito princípios básicos. Entre eles salienta o rechaço a utilizar imagens ferintes, as intromisons na vida privada das pessoas que nom respondam a nenhum interesse público, a iniviolabilidade das menores, e a negativa a ganhar audiência com rexoubes e falsidades.

Absurdo e saturaçom informativa

O alimento das paixons mais baixas do ser humano é umha das fontes onde a imprensa comercial procura a sua audiência. Somemos a isto a apologia dos poderosos -empresas accionistas e governos fornecedores de subsídios- e a demonizaçom da dissidência, e teremos um retrato a grandes traços dos meios que dominam.Estes som hoje o grande agente de conformaçom da consciência. Por isso casos como o que agora analisamos nom som expressons anedóticas de ‘maus profissionais’, nem tampouco desviaçons pontuais dumha trajectória decente. Som, exactamente, a versom mais horrenda dumha indústria nociva.

Há mais dum século, G.K. Chesterton dizia que ‘o jornalismo consiste essencialmente em dizer ‘Lord Jones morreu’, a gente que nom sabia que Lord Jones estava vivo’. Desde que hoje a rede a televisom som os verdadeiros elementos da nossa paisagem, ainda mais que as árvores, as leiras, os rios ou as montanhas, perdemos a capacidade de decatar-nos da cantidade de tempo que perdemos em absorver imagens, notícias e gags que nada achegam, embotando o nosso raciocínio e percepçom. Em tempos passados, quando a relaçom comunitária era mais rica e os meios umha presença estranha na vida da gente, esta consciência era mais aguda. H.D. Thoureau foi outro dos pensadores que captou o sem sentido: ‘depois dumha noite de sono, as notícias som tam indispensáveis como o café da manhá. Diga-me, por favor, que novidade aconteceu à humanidade em qualquer parte do mundo’, e juntamente como o café e os panzinhos, lê que em Wachito River, naquela manhá, arrancaram os olhos a um homem; fai isso todo sem sequer imaginar que vive na caverna escura, insondável e imensa, deste mundo, e que só tem um rudimento de olho.’

O sensacionalismo da Espanha negra

No Reino de Espanha desenvolveu-se umha forma peculiar de subgénero informativo à que hoje se dá continuidade. Sangue, touros, crónica rosa e futebol formárom a base cultural de milhons de pessoas criadas na ditadura. A recriaçom morbosa do crime em telejornais, tertúlias e shows tem o seu precedente na década de 50. Na miséria moral e material do primeiro franquismo, em 1952, triunfou o jornal ‘El Caso’, especializado na recriaçom de crimes, obviando qualquer análise social, e remexendo em assassinatos, violaçons e abusos. Nom é azaroso que, se bem toda a imprensa do fascismo obtinha as suas informaçons com a peneira da Direcçom Geral de Seguridade, a ‘El Caso’ permitia-se-lhe mergulhar livremente em fontes independentes. Tampouco é casualidade que a revista contasse com um supervisor nomeado pola igreja católica que, baixo o pretexto falsário de ‘velar pola moral’, cobrava um salário e permitia a continuidade do periódico. O Regime permitia umha narrativa nom política sobre a violência social espanhola e, em troca, difundia-se umha informaçom sensacionalista e estupefaciente que distraía a populaçom e enxalçava a judicatura e as forças policiais. No seu melhor momento, e numha sociedade ainda mui analfabetizada, ‘El Caso’ conseguiu vender 100000 exemplares.

‘El Caso’, antecedente de posguerra do sensacionalismo actual, é um dos melhores exemplos da ‘Espanha negra’ que os meios continuam hoje

A democracia minada

Um dos estudiosos mais solventes do poder mediático actual, Pascual Serrano, tem explicado com claridade o papel das grandes corporaçons na modulaçom das condutas, nomeadamente políticas. Para Serrano, ‘os meios estám a suplantar os partidos políticos, o sistema judicial e o debate social. E os políticos nom debatem já nos parlamentos senom em shows de meios de imprensa’. Nas coordenadas ideológicas da imprensa obediente, a transmisom de episódios espantosos serve normalmente para afiançar na populaçom a proposta punitivista e a exigência de mais forças policiais. Na arena do confronto político, segundo explica Serrano, as instituiçons gozam de contrapesos: governo face oposiçom, empresários face sindicatos, empresas frente consumidores; porém, os meios gozam dumha excepcionalidade perigosa: ‘face os meios nom há contrapeso que compensar o seu poder. Aliás, som os menos democráticos, desde que ninguém os elegiu.’

E a verdade?

O progresso das sociedades adoita-se medir em índices de vida materiais, disposiçom de serviços sanitários e esperança de vida. Mas que papel joga o respeito pola palavra e pola verdade na mediçom do avanço humano? No nosso mundo, nenhum. Assim o assinalou com valentia a pensadora Simone Weil na década dos 30. Produzia-se umha contradiçom gritante entre o progresso material e retrocesso do espírito. De feito, os códigos penais ponhem escasso ênfase na perseguiçom da mentira e o embuste.

Junto com o alimento, o abrigo e a integridade física, argumentava a filósofa francesa, a verdade é umha necessidade vital do ser humano, pertencente à orde da moral. ‘A necessidade de verdade é a mais sagrada de todas. E sem embargo nunca se fala dela. Quando se percebe a cantidade e enormidade de falsidades materiais expostas sem vergonha, até mesmo nos livros dos autores mais reputados, pom medo ler. Pois lê-se como se beberia a água dum poço duvidoso.’ Mas nom som os livros, senom a imprensa, o foco principal da distribuiçom da mentira: ‘resulta vergonhento que se tolere a existência de jornais dos que todo o mundo sabe que nenhum colaborador poderia ficar no cargo se por vezes nom aceitasse alterar conscientemente a verdade. (…) Todo o mundo sabe que quando o jornalismo se confunde com a organizaçom da mentira, constitui um crime. Mas considera-se um delito impunível. Que impede punir umha actividade quando foi reconhecida como criminal? De onde procede esta estranha ideia de crimes nom puníveis? Trata-se dumha das deformaçons mais monstruosas do espírito jurídico.’

Morbo, banalidade e ideologia reaccionária mesturam-se a partes iguais em parte da mída espanhola

A necessidade da objecçom

Narrando o acontecido em Níjar trás o assassinato do neno Gabriel, Santiago Alba Rico denunciou como os ‘jornalistas acossavam vizinhos, furgavam nas casas e roubabam imagens íntimas para serem carniça’. Se esse é o trabalho dum jornalista, acrescentava o pensador, ‘o jornalismo nom merece respeito nenhum’. Esforçando-se por diferenciar os bons e os maus profissionais, e evitando a condena sumária de todo o grémio, Alba Rico propom umha medida elementar para frear a degradaçom: a objecçom de consciência ante a exigência de compor notícias injustas.

Que esta resposta limpa e evidente, proposta por um intelectual da esquerda moderada, nom contasse ainda com um seguimento massivo dá ideia das abafantes ataduras que os jornalistas estám dispostos a aturar. A própria intelectualidade nacionalista que escreve colunas nos jornais galego-espanhóis, omite obedientemente qualquer denúncia das deformaçons promovidas por estes cabeçalhos, especialmente graves contra o independentismo. Desta maneira, a dissidência é parcial e calculada, e os poderosos continuam a extender sem obstáculos a idiotez e a mentira.