Em 1935, Pedro Galán Calvete escrevia n’A Nosa Terra a crónica dum acto da extrema direita em Santa Isabel, em plena Compostela republicana: o artigo intitula-se ‘A Espanha deles’. Se aquilo que representavam os congregados no comício era Espanha, dizia o adolescente corunhês, ‘nós somos arredistas’. E ciente da beligeráncia predicada polo fascismo em auge, afirmava que os galeguistas iriam até o final polos seus ideais no pior dos panoramas: ‘com muita ou pouca força numérica, mas com todas as vibraçons do nosso ser (…) Se se pretende levar-nos a umha luita civil, nom seremos os derradeiros em acodir a ela.’ Foi umha triste premoniçom, pois apenas treze meses depois, em setembro de 1936, Galán caía baleado numha valeta em Corveira, Culheredo. Desestimara agochar-se e fugir ao estrangeiro nos dias mais crus, mas os golpistas nem lhe permitírom um enfrentamento entre iguais como que ele enunciara por escrito: um esquadrom da morte eliminou-no com nocturnidade e sem possibilidade de defesa. Na actualidade, os herdeiros dos seus executores, num dos blogues negacionistas do genocídio que a justiça espanhola nunca perseguirá, ainda celebram a morte. O moço, contam os ultras de hoje, ‘era parte da manada borreguil que se enfrentou aos militares’, e nom tinha ‘dignidade suficiente’ para comparecer diante dum conselho de guerra.

Os restos de Galán Calvete repousam no nicho número 188 do departamento 2º do cemitério de Sam Amaro. As circunstáncias da nossa história, e a lentitude com a que nos recuperamos da lousa de silêncio impedírom ainda umha grande homenagem nacional a este jovem militante. Morreu com dezanove anos e representa, quiçá como ninguém, a sorte colectiva dum arredismo prometedor, que puido ser e nom foi. Entre as nossas obrigas de hoje está destacá-lo nos nossos símbolos, encontros e relatos.

Memorial às e aos assassinados polo fascismo em Punta Hermínia, na Corunha. (Foto Adiante.gal)

Galán Calvete nascera em 1917 na Corunha republicana e trabalhadora em que abrolhavam as primeiras Irmandades. Filho do proletariado, era mais um de muitos, dumha nova camada social que estava a piques de situar o galeguismo longe da exclusividade intelectual e mesocrática. O pai, Pedro Galán Cortés, era camareiro marítimo em barcos que cruzavam o océano. A mae, Carme Calvete Suárez, vendia legumes no mercado de Santo Agostinho e criava quase em solitário quatro filhos. Galán foi filho do esforço associativo do nacionalismo de 1916. Formou-se na Escola de Ensino Galego de Ángel Casal e Maria Miramontes, o primeiro dos seus magistérios. Logo abraçou o marxismo, possivelmente marcado por origem social e leituras. Num estudo de Xosé Manuel Carril dá-se conta da precocidade do rapaz e, citando testemunhas da época, relata-se: ‘com doze anos nom tinha pressa para ir à rua e permanecia com nós atento à conversa dos mais velhos’.

Em 1933, com apenas 16 anos, aparece como um dos assinantes do manifesto constituinte da Mocidade Galeguista da Corunha. Acompanha Jenaro Marinhas del Valle em postos de responsabilidade organizativa e representa a Corunha na fundaçom da FMG em Ourense. Na Galiza da altura -de comunicaçons lentas e longas- acode às juntanças nacionais da Federaçom como delegado da assembleia da sua cidade. Compagina o activismo galeguista com os estudos na Escola de Altos Estudos Mercantis e logo com a vida assalariada de contável. Como os mais avançados da altura, combinou patriotismo e marxismo. Quase adolescente, topamo-lo como um dos oradores do movimento galego, acarom de Soares Picalho ou Antom Vilar Ponte.

À margem de precocidades ou preparaçom cultural, Galán Calvete nutria umha corrente relativamente numerosa que abrolhava desde meados da década de 30. Fazia-o com rapidez, e preocupava enormemente aos poderosos e os seus servidores mais violentos. Os donos do país nom podiam permitir um movimento que reclamava a acçom, o sentido prático, a rua e a vocaçom popular. O historiador Xosé Álvarez Castro conta no seu blogue ‘Pontevedra nos anos do medo’ como a polícia detinha na cidade do Leres em 1934 oito militantes das Mocidades Galeguistas, acusados do reparto de ‘propaganda separatista’ que vindicava Pardo de Cela na data da sua execuçom. As detençons, produto dumha denúncia de direitistas locais, levárom também ao registo do local e à confiscaçom de material político, no que se incluía ‘umha bandeira galega com estrela verde de cinco pontas numha esquina.’ Desde que o primeiro arredismo tenta fazer-se um oco no espaço público do país, a resposta policial e ultradireitista é hostil e por vezes violenta. Um ano depois, Xosé B. Pazos, da FMG, escreve n’A Nosa Terra : ‘nom devemos ficar adormecidos neste sono mortal. Nom deve importar-nos que os nossos inimigos nos queiram estorvar, com permisso dos ‘gangters’ de turno ou sem eles nós devemos de falar, devemos de espalhar as nossas folhas patrióticas, e se é mister meios de violência, nom devemos duvidar um intre (…) para nós é muito mais importante a liberdade da Terra que o encadeamento duns quantos de nós.’ Com o pulo da juventude, o ideário de intelectuais tam avançados como Plácido Castro e novos organizadores talentosos, um nacionalismo mais desacomplexado e audaz parece abrir-se passo. Xohán Suárez colocava umha questom central nas páginas do boletim do Partido Galeguista: ‘muitas gentes unidas a nós (…) perguntam-se se o Galeguismo é algo mais por hoje que umha comunidade espiritual, composta por homens que sabem muito de livros, mas sem sentido prático e portanto político nenhum’. A resposta dam-na os mais jovens nas páginas da imprensa da época. Ilha Couto, considerado o impulsor da FMG como estrutura nacional, celebra a nova atitude do nacionalismo juvenil em apenas um ano de vida: ‘liberdade interna, consciência nacional polo caminho da formaçom patriótica; liberdade externa, ‘imperium’ da Galiza polo caminho da política revolucionária ou activa’ (Guieiro, 1935).

Álvaro Cunqueiro, Fernández del Riego e Carvalho Calero na década de 30. Os dous primeiros professavam o arredismo na sua mocidade. (Foto wikipedia)


Fernández del Riego, um dos ideólogos desta linha emergente, soubo ver a sua significaçom em 1934 : ‘por primeira vez desde todas as horas do começo nacional, há um movimento juvenil, unánime e vertebrado, que nasce nas aulas e jurde no eido e no mar.’ A um tempo, advertia: ‘Nom abonda com o foco guieiro dos mestres. Quiçá o demasiado teorizar, o demasiado assimilar de pensamentos feitos, o demasiado intelectualizar os nossos sentimentos, tenha esterilizado a força e a dinamicidade do nacionalismo galego.’ Dous anos depois da sua constituiçom formal, em maio de 1936, 331 votos, mais do 40 % da organizaçom, secundam a declaraçom da Federaçom como força arredista. Naquela III Assembleia Nacional o sector mais rejo logra mudar o nome para Federaçom de Mocidades Nacionalistas. Conseguem-no na Cela Nova de José Velo e Celso Emílio Ferreiro, onde já congregaram milhares de moças e moços num acto de afirmaçom nacional; e baixo o olhar, entre admirado e preocupado, da geraçom decana dos moderados galeguistas.

Obviamente que a FMN exagerava na sua propaganda e estilizava os feitos, da mesma maneira que fai o independentismo ou qualquer movimento popular na actualidade. Possivelmente nom fossem tam numerosos, possivelmente o seu ardor prático nom alcançasse as quotas do seu ardor jornalístico e, o que é seguro, faltava militáncia popular nas suas fileiras. Estudos recentes desvelam que a maioria da sua composiçom era estudantil, seguida por sectores empregados e filhos das classes médias. As mulheres escasseavam, apesar de existirem militantes de primeira orde como Olimpia Valencia, e o proletariado -como a FMN reconhece nos seus textos- era a classe menos representada na organizaçom, o que de por si pejava o avanço rupturista. E porém, aquela era umha sociedade em movimento acelerado, a esquerda nutria-se dum sentimento de entusiasmo, e os vasos comunicantes entre diversas forças e correntes eram muitos e efectivos. Assim se explica que o genocídio se livrasse também contra o nacionalismo galego, e que na lista de 78 patriotas assassinados recentemente registada (‘Mortos por amor à Terra’, de X.R. Hermida) tantos deles estivessem ligados com o agrarismo, o movimento obreiro e as ideologias mais avançadas.

Vozeiro da FMN em Cela Nova

A história deixa muitas névoas, e nom podemos declarar com certeza científica a exacta dimensom deste independentismo nascente. Si sabemos que nom se tratava dum ‘sarampelo arredista’, como o tem caricaturizado a burocracia historiográfica do nacionalismo de hoje. Sabemos também que estava representado por pessoas de muito valor intelectual e, nalguns casos, de grandíssima talha moral, como o Joám Jesus Gonçález que vence o analfabetismo e a penúria e enfrenta os fascistas em armas, ou como o José Velo que continua solitário a sua utopia além mar. Um elemento importante é a idade dos seus protagonistas: em vésperas do golpe militar, os seus representantes senlheiros estám na flor da vida e do activismo. Celso Emílio Ferreiro tinha 24 anos, José Velo 20, Fernández del Riego 23, Ilha Couto 21. Os seus inspiradores ideológicos além mar, os promotores d’A Fouce que sonhavam com a construçom dum partido arredista, eram relativamente jovens e entravam na primeira madurez; Ricardo Flores tinha 33 anos, Moisés da Presa 32, Bieito Fernandes (o autor do afamado ‘Manifesto de Grou’) apenas 27. As figuras mais veteranas do arredismo, como Fuco Gómez ou o próprio Joám Jesus, andavam por volta dos 40. A combinaçom de idade, formaçom, dimensom ética e relaçom societária, abria a este sector a possibilidade dum protagonismo real num regime republicano, autonómico, e com certos direitos civis consagrados. Soterrar esta semente com violência e pánico foi o acerto sinistro do fascismo; amnistiar os perpetradores e colaborar com a amnésia, a renúncia mais lesiva da esquerda famenta de poder na ‘Transiçom’. Ambos os feitos explicam o atraso político em que vegeta a Galiza, e portanto o esforço enorme que ainda nos aguarda.