As dificuldades para identificar com clareza os elementos que poderiam constituir umha cultura independentista galega som mais um indício da precariedade do independentismo como projeto político e como movimento social. Parece complexo pensar numha cultura assim adjetivada se nom pensamos na sua contiguidade com outras formaçons culturais, sobretodo a galeguista-nacionalista e várias da esquerda radical, e na fortíssima influência tanto da cultura independentista basca como, em menor medida, da catalá – estas sim claramente reconhecíveis.

Nesta série de artigos centraremo-nos no independentismo galego dos últimos vinte anos e usaremos diferentes conceitos de cultura que nos ajudam a enquadrar a questom. Falaremos da cultura como conjunto de autores, textos literários e outros produtos artísticos que representam a excelência estética dumha determinada comunidade humana (quase sempre nacional). Mas pensaremos também, numha visom mais orientada para o social, na cultura como conjunto de processos, práticas e modos de relacionamento que articulam o funcionamento coletivo de um determinado grupo. Finalmente, observaremos o independentismo como cultura militante, na linha dos estudos sobre subculturas urbanas e juvenis que concedem grande importância ao que num sentido alargado foi definido como o estilo, isto é, a combinaçom de escolhas estéticas (vestimenta, complementos, penteados, etc.), práticas de consumo cultural ou organizaçom dos tempos livres que sustentam tanto umha identidade grupal como a oposiçom a normas estabelecidas polos poderes hegemónicos.

No primeiro senso mencionado, o da cultura como excelência estética, o independentismo tendeu a funcionar com um conjunto variado de elementos. Por um lado, umha seleçom de obras e autores do cânone consolidado da literatura galega, adaptada aos preceitos ideológicos nas variáveis nacional, de classe e, só ultimamente, de género – Rosalia de Castro, Curros Enríquez, Pondal, Antón Villar Ponte, Castelao, algum Manuel Antonio, Celso Emilio Ferreiro, entre outros –, adubada por alguns setores com reivindicaçons menos consensuais como a de Carvalho Calero e concretizada em muitos casos a partir de citaçons, trechos ou breviários mais ou menos descontextualizados de épocas e trajetórias. Umha segunda componente está conformada polo legado literário do nacionalismo que emerge em meados da década de 1960. Nessa altura iniciam a sua trajetória figuras como as de Xosé Luís Méndez Ferrín, Uxío Novoneyra, Manuel María ou María Xosé Queizán, progressivamente valorizadas e legitimadas por diferentes grupos ideológicos e partidários no âmbito difuso da esquerda soberanista, com maior ou menor intensidade arredista.

Se bem a institucionalizaçom do nacionalismo hegemónico tendeu a reduzir os repertórios literários explicitamente independentistas, nom faltárom nas últimas duas décadas referentes que somar à listagem precedente – que é sobretodo isso, umha listagem, parcial e esquelética, muito distanciada nas suas pretensons de constituir nada parecido a um cânone. Para além da esporádica apariçom do independentismo como “tema” em algumha obra – nom é disso que estamos a falar – podemos ligar à ideia de cultura independentista trajetórias singulares da poesia galega que começa nos 90 como as de Igor Lugris ou Ramiro Vidal Alvarinho, bem como o coletivo das Redes Escarlata, frente cultural da FPG desde 2003 que integra várias das poetas mais reconhecidas do sistema literário galego (Chus Pato, Anxo Angueira, Xabier Cordal, entre as de mais longa trajetória, ou Xabier Xil Xardón e Brais González, entre os mais novos), mas cuja atividade como grupo de intervençom se encontra em estado latente nos últimos anos.

Já que no di respeito às geraçons literárias que começam a sua andaina na primeira década do século XXI, podemos afinar umha leitura independentista em páginas várias ou conjuntos mais alargados das obras de Daniel Salgado, Mario Regueira, Alberto Lema ou Marcos Abalde, o último deles com umha poética verdadeiramente singular em que memória comunal e repressom histórica fundamentam umha épica emancipadora para o presente e o futuro. Mas advertimos mais claramente a vertente independentista nos trabalhos do último Séchu Sende, cuja atividade literária se orienta na atualidade para os públicos e o trabalho do ativismo sociocultural.

Com lentes específicas devemos observar a literatura produzida por aqueles que experimentárom em primeira pessoa a onda repressiva contra o independentismo, seja a interessante série de poemários de Hadriám Mosqueira, “Senlheiro”, distribuídos na escala local e sobretodo em círculos de afinidade ideológicas, sejam os Diários (2015) de Carlos Calvo Varela ou os artigos ensaísticos de Antom Santos, os dous com trajetórias intelectuais sólidas e reconhecidas no arco ideológico que nos interessa focar. Ainda sem pretender entrar no complexo género do ensaio, em parte polas dificuldades para o deslindar da investigaçom, da doutrina, da divulgaçom ou da propaganda, vale a pena mencionar o marcante livro de crónicas Novas do exterior. 63.000 quilómetros de viaxes ás cadeas (2016), de Xosé Luís Santos Cabanas, um testemunho inédito no sistema literário galego sobre os contornos da repressom.

Como nom podia ser doutra maneira, o feliz fortalecimento do feminismo leva anos a deixar a sua pegada em poéticas que elaboram literariamente repertórios ideologicamente afins. Vozes como as de Andrea Nunes Brións ou María Rosendo podem ser citadas neste caso, bem polas leituras que admitem alguns dos seus textos, bem pola sua participaçom mais ou menos próxima na sociabilidade cultural própria do independentismo. Foi em qualquer caso o poemário De como acontece a fim do mundo (2015), de Charo Lopes, onde os repertórios do feminismo independentista encontrárom umha realizaçom mais clara, inovadora e sugestiva.

Neste repasso nom podem ser contornados os casos especialmente simbólicos de Patricia A. Janeiro e Teresa Moure. A narradora compostelá conseguiu com A perspectiva desde a porta (2009) pôr ao descoberto os limites e os tabus da normalizaçom cultural, ao ser excluída por motivos ideológicos do prémio Xerais e ao negar-se esta editora a publicar a obra como costuma fazer com as obras finalistas. O livro, que denuncia a repressom estatal contra o independentismo e oferece um retrato dignificador da militância histórica, foi também pioneira na crítica ao modelo de cidade turistificada desenhado para a capital da Galiza e conseguiu, num momento de especial intensidade repressiva, situar partes alargadas do establishment cultural galego a pensar nas suas contradiçons e incoerências.

Diferente é o caso de Teresa Moure, que após ter recebido entre 2005 e 2013 a maioria dos mais importantes prémios nos géneros narrativo e teatral, transitou cara a umha quebra com alguns dos consensos da cultura normalizadora. Dentre estes, a prática reintegracionista mas também a incorporaçom de repertórios ideológicos até aquela altura inexplorados como o que transparece no livro de poemas Eu violei o lobo feroz (2013), em que a voz de umha presa independentista na sua declaraçom ante o juiz constitui a cerna da obra. Quase só na personagem de Iago na peça teatral Rastros (1998), de Roberto Vidal Bolaño, podemos encontrar um referente anterior na literatura galega.