Na tradiçom ocidental, Ulisses fixa para sempre a experiência radical do viajante que, contra todos os obstáculos e todas as tentaçons, afrontando tempestades, monstros e ameaças de morte, depois de travessias sem fim e contratempos em cadeia, alcança finalmente o seu destino. Porque Ulisses viajou, o seu país mudou; porque Ulisses viajou, ele próprio mudou tanto que ficou irreconhecível. Chamamos viagem à mutaçom simultánea do espaço e do sujeito; isto é, à impossibilidade de voltar ao mesmo sítio e de voltar a ser o mesmo ou, também pode ser, à própria impossibilidade de regresso.
Uns 175 milhons de pessoas em todo o mundo fam ou figérom a viagem de Ulisses. Luitárom durante anos contra o mar e contra o deserto, jogárom e até perdêrom a vida, vírom-se empurrados, repudiados, espancados, presos, antes de alcançar o seu destino. Quando o conseguírom, ninguém estava à espera deles para celebrar a sua façanha nem recolher o testemunho das suas aventuras. Porquê? O que é que estas pessoas querem? Para quê todo este esforço? Porquê todo este repúdio? Porque querem ser trolhas na Europa e mandar algum dinheiro às suas famílias.
Uns 700 milhons de pessoas –as mesmas todos os ano – passam dum aviom a um hotel, a um museu, a um restaurante, a umha loja de recordaçons, sem nunca sair do estreito caminho da experiência padrom, e exigem por isso, e obtenhem, sorrisos, aplausos, reconhecimento e protecçom. Porquê? O que é que estas pessoas querem? Por que gostamos tanto delas? Porque querem tirar umha fotografia.
Ao contrário do que poda parecer, o capitalismo nom gosta dos viajantes. Um íntimo paradoxo obriga-o a vender a todo o mundo –e leva todo o mundo a consumir– a mesma experiência exclusiva; um íntimo paradoxo obriga-o a vender a todo o mundo –e leva todo o mundo a consumir– a mesma aventura imobilizadora. A viagem de Ulisses está proibida. Mas há que transportar mercadorias e consumidores ininterruptamente; há que transportar mercadorias e consumidores ininterruptamente sem que aconteça nada, sem que nada se mova. A única maneira de voltar sempre ao mesmo sítio e de ser sempre a mesma pessoa é nunca ter estado em nengum lado. Este “nenhum lado” chama-se televisom; este “nengum lado” chama-se também turismo.
O capitalismo arranjou umha enorme, sofisticada, poderosíssima maquinaria para impedir as viagens. Converteu de facto a proibiçom da viagem num dos negócios mais rentáveis do planeta. No meio da crescente crise, as receitas do turismo internacional aumentárom uns 5,6% no ano de 2008, alcançando os 850.000 milhons de dólares; isto é, 30% das exportaçons internacionais de serviços. A Organizaçom Mundial do Turismo prevê para o ano 2020, 1.600 milhons de deslocaçons turísticas internacionais por todo o mundo. Talvez nos devêssemos alegrar, ainda que a imagem se mostre menos esperançosa e optimista se imaginarmos 1.600 milhons de saltons vorazes ou 1.600 milhons de marines fotógrafos –como estampidos de animais fagoscópicos– reclamando aos nativos, e impondo-lhes, o seu verdadeiro país.
Em 1867, o escritor francês Teophile Gautier visitou o Egipto e ficou muito decepcionado: nom era nada parecido com o “autêntico” Egipto, o da Exposiçom Universal de Paris de 1855. Desde entom, a indústria da proibiçom de viajar tenta fazer com que os destinos turísticos se pareçam consigo mesmos, com que as cidades, as paisagens e as lembranças consumidas se ajustem à realidade estabelecida –como polo eidos platónico– nos catálogos de viagens. Em 1888, a Kodak inventou o rolo fotográfico e democratizou portanto a fotografia, com umha frase publicitária que resume muito bem a contribuiçom do turista-consumidor da cultura universal: «Tu apertas o botom e nós fazemos o resto». Durante séculos, militares, sacerdotes e empresários destruírom e reconstruírom sem parar os países do chamado Terceiro Mundo para que os seus prolongamentos pacíficos pudessem hoje fotografar o verdadeiro Egipto, o autêntico Senegal, a Índia genuína, o Marrocos original. O paradoxo do colonialismo é que impujo nom só a modernidade às suas colónias; também lhes impujo as suas tradiçons autóctones e os seus costumes milenares.
O custo económico e ecológico do turismo de massas é altíssimo: o capitalismo nom pode imobilizar o viajante sem levá-lo dum lado para o outro em meios de transporte dependentes do petróleo; nom consegue produzir a “verdadeira cópia” dos países visitados sem deslocar populaçons, destruir mangais e selvas, alterar as paisagens, estimular a especulaçom e acelerar a construçom de hotéis e instalaçons quase sempre incompatíveis com os recursos e necessidades dos nativos. Mas mais grave do que todo isto –porque também é a sua condiçom– é o custo antropológico, cultural, humano do turismo. «Tu apertas o botom e nós fazemos o resto» é umha frase que expom mui bem a continuidade consumista entre o espectador de televisom, o turista e o piloto dum bombardeiro. A nossa vida decorre em “nengum lado” e nunca nos acontece “nada”.
Turismo e guerra confundem-se de tal modo nesta negaçom radical do mundo que os torturadores de Abu Ghraib acreditam estar a fazer turismo no Iraque e por isso tiram fotografias com as suas vítimas assassinadas enquanto que os turistas ocidentais no Egipto ou Senegal som ao mesmo tempo marines invasores e prisioneiros consumidores. Marines porque prolongam, alimentam e confirmam relaçons de dependência neocolonial; prisioneiros porque (ao contrário de Ulisses e dos imigrantes, os verdadeiros viajantes) som passivamente deslocados, encurralados, alimentados, por vezes até tatuados, e em qualquer caso encerrados em campos de concentraçom de luxo, nos quais comem o mundo sem olhar para ele nem o entender; sem nem sequer o roçar.
Um amigo –já contei isto noutra altura– propujo na assinatura do Protocolo de Quioto, um acordo internacional em virtude do qual todos os homens ao nascer receberiam umha porçom limitada de quilómetros para se deslocar polo mundo. Nessa “outra sociedade possível”, esgotada essa porçom, só seriam permitidas as viagens de aprendizagem e de solidariedade (e, claro, as de amor autêntico e amizade verdadeira). Esse é o modelo vigente em Cuba desde há cinquenta anos, como o demonstram os soldados em Angola e os médicos em todos os pontos do planeta. Talvez sob o capitalismo seja mui apetecível ser imobilizado em avions, hotéis, lojas e restaurantes estrangeiros, mas nom chamemos a isso “viajar”. Digamos ao menos a verdade. E a verdade é que os cubanos, por vezes justificadamente insatisfeitos, viajárom e continuam a viajar muito mais do que todos os outros povos do mundo. Nós, espanhóis, que estamos em todo o lado, na realidade nem saímos ainda das nossas casas. E a partir delas fotografamos ruínas antigas e ruínas frescas.
- Artigo recolhido no livro “Todas as guerras” editado pola da Escola Popular Galega e publicado originalmente emLa Calle del Medio (Cuba).