Em junho do passado ano, a chefa territorial da Junta na província de Lugo, Margarita López Blanco, descartava a presença estável do urso na Galiza: “nom há um assentamento definido”, manifestava, e restava preocupaçom à vizinhança dedicada à apicultura: “em caso de danos, há um seguro que cobre os danos a alvariças”. O urso é solitário, discreto e cobre longuíssimas distáncias, polo que nom se pode afirmar alegremente que tenha as nossas serras como localizaçom permanente. Porém, mais e mais indícios apontam a presença regular entre nós do mais grande dos mamíferos terrestres europeus, mitificado em rituais e lendas polos nossos devanceiros.

Em 2018, Fernando Ballesteros, coordinador do Projecto Life Oso, manifestava menor timidez que a Junta na sua estimaçom da cercania do urso: as reiteradas apariçons do animal, dizia, levam a pensar num ‘assentamento permanente’ em terras galegas. Precisamente nesse mesmo ano o urso fora avistado em Folgoso do Courel e na Serra do Oríbio; em 2019 registaram-se destroços em Ribeira de Piquim, muito provavelmente causados polo urso; o mesmo acontecera numha alvariça à beira do rio Lor, e já em 2014 a vizinhança de Seceda detectara danos semelhantes. Na realidade, os avistamentos do urso pardo na Galiza produzem-se com intermitência em todo o século que andamos: em 2009, um urso jovem fora atropelado na autovia ao seu passo polo concelho berciano de Trabadelo, e em 2006 um exemplar fora filmado nos Montes de Robledo, no concelho de Rubiás. Da Fundaçom ‘Oso Pardo’ chamam, obviamente, a congratular-se da proliferaçom do plantígrado, mas também avisam para nom tomarmo-nos encontros fortuitos com ligeireza: “nom é um peluche’, comentavam responsáveis da Fundaçom, cientes da imagem que a mídia norteamericana tem difundido nas últimas décadas através da figura do ‘teddy bear’.

Os vales fundos e as fragas do Courel, território propício para o urso

Umha presença familiar até tempos bem recentes

Pola nossa curta memória, e pola ruptura na transmissom do passado familiar e local, desconhecemos que o urso, na sua variedade de urso pardo (ursus arctus europaeus) foi umha presença familiar no nosso rural nom há tantas décadas. No seu livro ‘Viaje por los montes y las chimeneas de Galicia’, escrito em colaboraçom com Álvaro Cunqueiro, José María Castroviejo escrevia sobre o urso que ainda morava com certa normalidade nos Ancares. A obra publicou-se em 1962, e ainda testemunhava a caça do animal com matilhas de cans e armadilhas colocadas nas alvariças. Mas som os anos do franquismo os que marcam o seu devalar, coincidentes com o recuar da fauna selvagem na maioria do contorno da Europa occidental. Segundo as crónicas oficiais -que nom coincidem com as afirmaçons de Castroviejo-, o último urso caçado na Galiza caiu baixo as balas em 1946, em Couceiros, no concelho da Padrenda. Dacordo com a mentalidade da época, as autoridades parabenizárom o caçador, que foi premiado mesmo polo governador civil de Ourense, Vicente Muñoz Calero.

A perseguiçom vinha de longe. Pois ainda que o urso nom concitava os medos e antipatias do depredador mais temido -o lobo- si se incluía no mundo das ‘alimárias’. Desde a Idade Moderna e mesmo nos primeiros compasses da Idade Contemporánea, a Audiência do Reino da Galiza autorizara caçarias comunais naqueles montes que concentravam números importantes de ursos. No século XIX o animal habitava com toda a certeza o Faro e Testeiro, no coraçom da Galiza; o naturalista López Seoane situa-o em Oseira e nos montes cercanos a Vilalva, e ainda registou a existência do ‘osseiro’, um vizinho especializado na sua caça, valendo-se apenas dumha faca e um cilindro de ferro; na altura, habitavam o Jurês, o Larouco e Leboreiro, no sul; e obviamente todas as serras do leste que lindam com a Galiza irredenta. Pensa-se que o núcleo central foi o primeiro em desaparecer. Nas décadas finais do século XIX, o urso campava -segundo crónicas jornalistas e eruditas- em Cercedo, Doçom ou Alama. Em 1897, uns estudantes santiagueses alviscárom um exemplar na Escravitude, perto de Padrom. A primeiros do século XX, pensadores como Vicente Risco já davam o animal por desaparecido do centro do país.

Depredaçom humana e paradoxos modernos

Este gigante que pode superar os dous metros e os douscentos kilos, maiormente vegetariano e amante da vida isolada, tampouco nom se livrou da depredaçom humana. A caça foi o primeiro factor de reduçom, e a perseguiçom ao lobo com velenos levou também por diante o urso. As mudanças do produtivismo franquista fixérom mais difícil a sobrevivência da espécie naquelas zonas menos periféricas: a destruçom dos bosques ou a plantaçom industrial de pinheiros, o anegamento de vales fértiles com mega-estruturas hidráulicas, a ampliaçom das vias de comunicaçom rodoviária, restringírom no máximo a zona de extensom. O urso tivo que limitar os seus longos percursos e decidiu-se por habitar as únicas áreas do país arredadas da urbanizaçom e a circulaçom motorizada de pessoas.

E porém, o capitalismo seródio dos nossos dias está a provocar grandes paradoxos. Da mesma maneira que as nossas cidades, de costas viradas ao mundo rural, e nas que poucos habitantes saberiam distinguir mais de duas espécies de árvores, assistem às visitas frequentes dos javarins, também na Europa industrializada e terciarizada algumha fauna selvagem semelha reclamar terreno.

A desagrarizaçom de amplas áreas do território, o avanço da floresta, e a extensom de certa legislaçom protectora dérom pé a umha recuperaçom relativa, mas também inesperada. É o que concluiu o estudo internacional ‘Iniciativa Europeia dos Grandes Carnívoros’, que analisou a tendência ascendente da maioria das populaçons de ursos, lobos, linces e glotons. O trabalho, que veu a lume na revista ‘Science’ em 2018, assegura que depredadores como estes podem sobreviver perto de áreas intensamente urbanizadas, desde que exista umha legislaçom protectora que potencie o seguimento científico e combine os interesses faunísticos com os gadeiros (sobretodo através das subvençons às cabanas atacadas). No caso do urso cantábrico, parte de cujas populaçons visitariam ou habitariam a Galiza, tenhem-se contabilizado hoje entre 195 e 210 exemplares, face os apenas 60 de há umhas décadas.

O mito e a história

Em pleno Pleistoceno, há entre 40 e 45000 anos, um antecessor do nosso urso pardo habitava o que hoje som terras da Galiza. Descobrírom-no os arqueólogos que estudam Cova Eirós, em Triacastela, onde dérom com restos dum ‘ursus spaleus’, o enorme urso das cavernas que veneravam os homens e mulheres paleolíticos.

Relacionado geneticamente com o urso actual, que herdou parte dos seus traços, um animal associado com a fereza e o poderio fijo-se figura importante do panteom de múltiples povos. Desta adoraçom pre-histórica recebemos um dos nossos festejos mais senlheiros: o urso de Salcedo, figura do entroido na Póvoa de Brolhom. A besta, que acordava na primavera depois da sua desapariçom invernal, actuava como alegoria da vida que retorna, e que trazia com ela as novas colheitas.

Este identificaçom com o rejurdimento deu-lhe umha presença importante na mitologia celta; nos ciclos irlandeses comparecem heróis que som derivaçons ou encarnaçons de animais (o cervo como emblema da realeza, o cam da lealdade, o salmom da sabedoria); o urso combinava a potência física com o renascimento cíclico, daí que o rei Artur (de ‘arth’, urso) fosse a encarnaçom humana deste animal, como monarca que volta do Além para levar os britanos à vitória.

Se bem no primeiro cristianismo o urso foi privilegiado na ediçom de Bíblias, missais e ilustraçons do mito da Arca de Noé (aparecia representado como um dos animais mais importantes do barco), com a Baixa Idade Média começou a adquirir conotaçons demoníacas e a ser banido da simbologia. Na proscriçom cristá pesárom as palavras de Agostinho de Hipona, que dixera ‘o urso é um demo’. Ainda, a eliminaçom desta besta, com o seu grande poder simbólico, nom foi em absoluto doada. Os monarcas medievais, que eram em muitas ocasions os únicos autorizados a caçá-lo, definiam-no como ‘rei dos bosques’, e o urso -também o dos montes galegos- figura no ‘Livro de Montería’ do castelhano Alfonso XI.

O urso do entroido de Salcedo, pervivência dum culto ancestral

Quem quiger ver com os seus próprios olhos a pegada do urso no imaginário antigo da Galiza tem-no mui doado: pode visitar o sartego de Fernám Peres de Andrade em Sam Francisco de Betanços, sostido por ursos e jabarins, como emblemas de poderio vidos da noite dos tempos. O nobre henriquenho -que, ainda sendo-o, tem a sua legenda mortuória escrita em perfeito galego- quijo-se imortalizar na pedra como ‘bom fidalgo e verdadeiro, gram caçador e monteiro.’ Mui provavelmente se enfrentaria ao urso, o animal que acabara com a vida dum dos nossos primeiros reis, Fáfila, em Cangas de Onis em 739, e que, transcorridos mais de mil anos, persiste nos montes da Galiza.