Moncho Valcarce e a defesa da Terra: umha inspiraçom para hoje
A capacidade mobilizadora da Galiza mostra um pulo especial nas luitas em defesa da Terra que, onte como hoje, ponhem diques de contençom ao capitalismo extractivista. Nos últimos anos, as plataformas contra a minaria selvagem acaparárom a actualidade informativa, como também o fixérom as iniciativas contra a ocupaçom eólica ou contra os refugalhos industriais. Em respostas populares como estas, encetadas há quatro décadas, forjou-se o imaginário do movimento nacional graças, entre outros muitos, a umha figura que ainda nos inspira: Moncho Valcarce, crego, obreiro, revolucionário e místico.
Para praticamente toda a militáncia independentista a partir da década de 80, certos topónimos da nossa geografia tenhem umha cárrega especial: Jove, Baldaio, as Encrovas, como antes Castrelo de Minho, foram os lugares onde o movimento galego parecera desprender-se do seu lastro culturalista para ligar, de maneira decidida, com capas amplas das classes populares, batalhando corpo a corpo pola recuperaçom do território usurpado. Isto acontecera nos anos nos que se começava a conceber a militáncia ‘como umha forma de vida integral’, segundo as palavras do malogrado combatente Duarte Abade Lojo; nos mesmos tempos em que obreiros, labregas, estudantes, e também cregos de esquerdas, faziam confluir os seus esforços no dia-a-dia dum activismo esgotador e ilusionado, sem tutelas abusivas da intelectualidade acomodatícia nem dos burocratas.
Neste panorama emergeu -para marcá-lo com a sua impronta- Ramón Valcarce Vega, mais conhecido como Moncho Valcarce. Nascera numha família da burguesia corunhesa, direitista e pró-espanhola, mas aginha amossou a sua vocaçom de serviço ao bem comum e o seu amor à Galiza. Formado nos jesuítas, licenciado em Direito em Salamanca e versado em Teologia polos seus estudos em Roma e Compostela. Precisamente em Itália descobrira a sua consciência galega. Em Santiago, a hierarquia expulsou-no do seminário por causa de reivindicaçons estudantis, riscando-o de ‘sindicalista de tendência comunista.
Sacerdote desde 1969, na paróquia de Sésamo (Culheredo) combina a atençom sacerdotal com o trabalho de obreiro, renunciando à paga de cura; lança revistas em galego (Outeiro de Sam Cosme), fai ondear a nossa bandeira pola vez primeira em romarias, colabora com a resistência à ditadura em empresas de risco, e consolidada a Restauraçom borbónica, participa do trabalho institucional nas fileiras do BN-PG e logo do BNG. Cercano à gente, sempre querido, estivo sempre no alvo policial e mediático, mas nom se inquietou demasiado polo tratamento dos lacaios da mídia: ‘a imprensa capitalista fai-nos o boicote porque dizemos a verdade do povo’, afirmava com claridade.
Baptismo de lume
A poeta Pilar Pallarés definira-o nestes versos de homenagem: ‘teimosamente humano/ teimosamente humilde e quotidiano;/ também falando baixo se construem os sonhos,/vivendo no imediato, /povoando o dia a dia.’ Apenas esta angueira silenciosa, anos a fio, explica o que acontecerá depois: o seu papel de liderado e autoridade incontestável em algumhas das grandes batalhas da década de 70.
Em 1974, um dos gigantes industriais do franquismo, FENOSA, punha a sua bota sobre umha esquecida paróquia do noroeste galego, as Encrovas. Lignitos de Meirama S.A., subdivisom da eléctrica, mercava por 900 milhons de pesetas a concessom para a extracçom; os seus representantes no aparelho político aprovavam a expropriaçom forçosa por via de urgência, reforçando o plano com um crédito oficial do 40%. 300 vizinhas e vizinhos viam ameaçada a sua forma de vida -onte como hoje- com a promessa de ‘mais e melhores empregos.’ Nom aceitavam a mera compensaçom económica e exigiam, no pior dos casos, umha reubicaçom em terras equiparáveis às suas: ‘Quartos nom, translado de populaçom’, foi um dos lemas daquele tempo.
A Galiza labrega fijo-se ouvir em 1976 nas ruas da Corunha, naquela manifestaçom tam recordada, que começou com 400 pessoas concentradas na Praça de Portugal, e juntou logo até 8000 manifestantes. A resposta estatal foi a violência indiscriminada com cárregas policiais, e o discurso mediático, o que tanto nos sona: ‘Once detenidos acusados de agresión, resistencia y desobediencia a la fuerza pública’, escrevia a imprensa do Regime. Um deles era Moncho Valcarce, organizador e orador significado no conflito.
A tensom ainda subiu no ano seguinte. Foi o momento álgido do conflito das Encrovas, imortalizado em fotos que toda a Galiza conhece: lá, no monte Pau Ranhou, um cento de labregos e labregas enfrentavam-se cara a cara às forças de ocupaçom e resistiam quatro horas os fardados. A guarda civil nom tivo mais remédio que deter um por um os resistentes, até tomar possessom ilegítima das terras. A mina instalaria-se e a central de Meirama seria a realidade poluinte que hoje conhecemos, mas quanto menos a vizinhança conseguiu sentar a negociar um gigante empresarial como FENOSA. Atrás ficavam anos de juntas, mobilizaçons, dinámicas organizativas promovidas polos Comités de Ajuda à Luita Labrega -posteriormente Comissons Labregas- e até umha vida humana: Emilio Suárez Valdés, estudante de 17 anos e militante de ERGA, morria electrocutado desdobrando umha faixa solidária com as Encrovas numha torre de alta tensom.
Baldaio e Jove, vitórias populares
As marismas de Baldaio eram umha das zonas de maior riqueza de Carvalho: um banco pesqueiro e marisqueiro em cujas redondezas alguns labregos ceivavam o gado a pacer. Esta fonte de sustento ia ser ameaçada pola ánsia de lucro. A empresa Baldayo S.L., com o pretexto da concessom marisqueira, preparava na realidade umha exploraçom de areia. A vizinhança de Lema, Vilela, Rebordelo e Noicela decide-se à paralisaçom da maquinária durante vários dias consecutivos no ano 1976. A partir de 1977, a repressom cobra um papel destacado. As forças policiais carregam contra a manifestaçom pró-Baldaio em Carvalho, e ‘La Voz de Galicia’, na sua recriaçom esperpêntica dos acontecimentos, relata: ‘la guardia civil rompió quatro mosquetones durante el intercambio de golpes en Baldaio’. Na altura, as autoridades perseguem o marisqueio ‘sem permisso’ e mesmo humilham os vizinhos. Manuel Rodríguez, mariscador, padecendo umha doença crónica, é obrigado pola guarda civil a carrejar um saco de berberechos até o quartelilho, e a seguir morre polo esforço. Precisamente num acto em memória deste homem volve a ser detido Valcarce. Nos feitos de Baldaio fora multado com 100000 pesetas com umha acusaçom, mais umha, que hoje nos resulta conhecida: apologia da violência. Segundo ‘El Ideal Gallego’, ‘en una manifestación en Carballo el día 8 de mayo (…) hizo apología de la violencia y el desorden, así como del uso de la coacción para el logro de fines, atribuyendo la retirada de la fuerza del orden al temor a la reacción del vecindario.’ E é que, com efeito, a vizinhança revoltada recorre a todo o que está ao seu alcanço: queima de máquinas de extracçom, sabotagem das comportas de contençom…som as estocadas finais a um projecto de privatizaçom dos recursos que em 1978 fica gorado. Baldaio salvava-se.
Nom foi a única vitória popular naqueles anos. Na Marinha, a pedagogia das ideias e da acçom vam parar os planos nuclearizadores. FENOSA, Eléctrica del Viesgo e Hidroeléctrica del Cantábrico pugeram a sua atençom em Regodela, no norte galego, pensando que o ‘subdesenvolvimento’ galaico ia concitar aplausos em favor da energia nuclear. Uns alegados (mais que reais) 2000 postos de trabalho para Jove eram o argumento principal da proposta, aginha desmontada polo movimento popular. Associaçons Culturais como ‘Sementeira’ de Viveiro (dalgum modo, polo seu papel conscienciador, antecessoras dos centros sociais de hoje) divulgárom as razons dum ‘nom’ rotundo. O enriquecimento de uránio na zona poderia levar, no caso de se produzir um accidente, ao envelenamento de 23000 pessoas; as augas requentadas que ia expulsar a central ameaçariam o marisqueio. E aliás disso, a Galiza devia rejeitar a produçom de mais e mais energia eléctrica com fins exportadores e risco ambiental. Quando o movimento popular, com especial protagonismo nacionalista, convocava 8000 pessoas na marcha a pé entre Viveiro e Jove, em 1977, demonstrava-se que havia força para deter mais um abuso do poder. Valcarce dera a arenga final do acto e certificara outro grande momento da Galiza rebelde.
Ideário: a força das conviçons
Nom rematou aqui a trajectória dum homem que, até a sua morte em 1993, ainda se envolveu nas luitas contra a segurança social agrária, a prol dos vizinhos das Enchousas, nas tractoradas, na associaçom ambientalista pontesa ‘Ninho de Azor’…mas a sua pegada na memória colectiva identifica-o especialmente com aqueles anos de convulsom e mudança.
Como a idealizaçom do passado é um dos traços mais comuns da memória, é doado recriar aqueles tempos com certo simplismo. Mas na realidade eram também tempos duros: o genocídio de 36 estava tremendamente recente, as feridas muito abertas; o entramado caciquil da direita galego-espanhola sobrepujo-se com facilidade à mudança de Regime, e mantivo a sua hegemonia, como também o fixérom os repressores dos aparelhos judicial e policial. Apesar da dimensom massiva do movimento galego, os processos de deserçom do país e da assimilaçom cultural continuárom. Nom haviam demorar tampouco a integraçom do nacionalismo maioritário na ‘democracia’, nem as purgas anti-independentistas. Acougada a mobilizaçom e em pleno assentamento do Regime, Valcarce falava desta dureza. ‘a situaçom está negra, mas eu tenho umha grande esperança, porque para mim a História é umha espiral, que apesar das apariências, nunca vai para trás, sempre vai para adiante, apesar do momento actual que está muito negro.’
Só há umha chave que explica a persistência e liderado de Valcarce em tempos complexos: a força das suas conviçons. Graças a ela, superou censuras eclesiásticas (à devandita expulsom do seminário cumpre engadir um desterro a Salamanca), detençons e malheiras. Um mando da guarda civil, depois dumha paliça, comentara-lhe: ‘la próxima vez usted me viene estirado (morto), porque doy orden de que le peguen un tiro si lo ven en otra manifestación de labradores.’ Como todo ser humano, Moncho Valcarce conhecia o que era o medo mas, como rezava nas suas oraçons: ‘nom prego, Senhor, que mates o meu medo, prego-che aços para assumi-lo.’ E por isso toda a sua actividade se produziu na corda bamba entre o perigo e o ostracismo, como quando ocultava aparelhos de propaganda clandestinos na igreja da paróquia, ou quando dava acolhida a José Ramom Reboiras Noia, guerrilheiro independentista fugido até a sua queda em combate. Em chaves cristás, explicava a realidade da repressom nas suas reflexons de madurez: ‘a fe e o amor trazem como consequência inevitável a cruz, pois predicar a fraternidade é denunciar todo aquilo que impede que essa fraternidade seja umha realidade, identificar-se com os que clamam justiça, com os explorados e marginados, traz repressálias, e essas repressálias som a cruz.’
Eis o caminho assinalado por um homem que entendia a política longe ‘da conquista da pirámide social, da luita para encaramar-se no aparelho estatal ou do livre jogo das diversas fracçons que excluem o povo através de sistemas eleitorais sabiamente calculados e manipulados’, e que pola contra a vivia como ‘pedagogia’, ‘disponibilidade’, e, ao cabo, como ‘serviço’.
A quem lhe pareça assustador o seu heroísmo poderia-se-lhe retrucar, seguindo ao próprio Valcarce, que é um heroísmo humilde e humano; por isso citava a um pensador de referência para confessar que ‘ser pefeito seguidor de Jesus é impossível; as metas que ele propom som tam elevadas que nunca se podem acadar, por isso sempre somos caminhantes e buscadores.’ Dito em linguagem atea, e recorrendo também às palavras de Bakunin que figuram na obra do crego de Sésamo, ‘é procurando o impossível como o homem realizou sempre e reconheceu o possível; e aqueles que sabiamente se limitárom ao que lhes parecia possível nom dérom endejamais um passo.’