Duns anos para aqui no país vizinho multiplicam-se as luitas sociais e os projetos comunitários que combatem a lógica destrutiva do capital. Para além da identidade linguística e cultural partilhamos com as vizinhas do sul muitos fatores de exploraçom: eucaliptizaçom do território, extraçom depredadora de matérias primas, turistificaçom, etc. O jornal português MAPA, criado sob a intervençom criminal da Troika, consolidou, desde posiçons militantes e de autogestom, um espaço informativo, de análise e debate entorno das luitas sociais e os movimentos emancipadores. Nos seus conteúdos há sempre um espaço dedicado ao nosso país, e na Galiza o MAPA já conta entre os seus subscritores Centros Sociais, Escolas de Idiomas, etc. O MAPA pode ser também para nós, um instrumento para exercermos a independência, derrubando os muros do isolamento internacional com os povos lusófonos aos que nos condena Espanha. Falamos com Sandra Coelho, Guilherme Luz e Filipe Nunes, integrantes do projeto jornalístico Mapa sobre estas e muitas outras questons.

Levam já sete anos de percurso como espaço para a informação, difusão e debate centrado nos movimentos sociais. Qual foi a motivação para iniciar o projeto? Reconhecem algum referente anterior?

Alguns dos membros do colectivo tinham já estado envolvidos em publicações informativas libertárias. O referente anterior comum a todos será provavelmente o universo de publicações anarquistas que sempre circularam nos nossos espaços, um universo onde o formato ‘fanzine’, mais panfletário, ocupa um lugar de destaque. Daí surgiu a vontade de trabalhar num objecto que se afastasse desta estética, e das linguagens que lhe vinham associadas, e se assumisse num formato mais ‘jornalístico’, capaz de transbordar para outros universos, para outros círculos sociais, para as mesas dos cafés e para as bibliotecas. No entanto, o nascimento do jornal MAPA não se pode desligar do fato de existir um vazio em Portugal em termos de publicações de informação ou jornalismo alternativo. A maioria dos jornais pertencem a grandes grupos económicos, são jornais de nicho ou são órgãos de expressão de forças políticas partidárias. O que queríamos era criar um jornal de informação que comunicasse diretamente com as ruas a partir de uma posição de independência e autonomia informativa e, obviamente, uma postura crítica tal como deve ser a do jornalismo, no sentido dar espaço à tomada de posição de quem escreve, à análise da informação disponível e, mais que isso, as análises que se fazem com a informação que é muitas vezes escondida ou não tem visibilidade. daí o adjetivo de informação crítica. Tudo isto porque a grande motivação era também a de criar uma ferramenta de informação e comunicação para os movimentos sociais, não no sentido da coordenação ou organização de movimentos mas do ponto de vista de cobrir e publicar investigações, reportagens e divulgar informações que sejam úteis para a multiplicidade de movimentações sociais em Portugal e em territórios vizinhos.

Qual é a implementação do Jornal em Portugal, onde tem maior incidência?
Em Portugal o jornal tem já uma distribuição bastante grande, cobrindo praticamente todo o território. No entanto, a rede de distribuição não é a de um jornal comum (que chega a todos os quiosques e papelarias). Pelo contrário, assenta no envolvimento afectivo de um colectivo de pessoas, espalhadas pelo território, que recebe um molho de jornais e os distribui na sua cidade. É uma distribuição ainda bastante artesanal, podemos dizer, e que acaba por realçar dinâmicas de afinidade com determinados espaços, como associações e centros sociais. No entanto, o esforço de integrar o jornal em espaços mais convencionais de venda de periódicos é essencial numa lógica de contraposição dos nossos conteúdos com aqueles mais mainstream, veiculados pelos principais jornais portugueses, o que no entanto nem sempre é possível por falta de fundos. Recentemente levámos a cabo um esforço do qual nos orgulhamos muito e que consiste em oferecer assinaturas a todas as bibliotecas públicas de Portugal. Desta forma conseguimos fazer com que o Jornal MAPA esteja disponível em pequenas localidades onde nunca chegaria e que, para além disso, o faz num espaço acessível a todos. Depois, um jornal de 48 páginas que tem preço de capa a 1€ fala por si. O grande apoio à continuação do jornal, não podemos deixar de o referir, são as assinaturas, cerca de 500 atualmente. Não esquecendo que toda a estrutura do MAPA é voluntária, o que também explica a sua continuidade financeira, ainda que muito esforçada por parte dos envolvidos.

Que vos motivou para editar em papel um jornal feito por e para os movimentos emancipadores quando os meios de difusão e comunicação se concentram cada vez mais nas redes?
Esta é uma discussão contínua dentro do coletivo, sobretudo pelo que implica, ecologicamente, a impressão de um jornal em papel; mas sabemos que a Internet também tem a sua própria materialidade, e bastante predatória social e ambientalmente. De certa forma, interessa-nos o potencial que o objecto físico tem, na capacidade de circular entre mãos, de ser encontrado em cima da mesa ou no autocarro, escapando às lógicas micro-temporais do consumo de informação online. Interessa-nos também a capacidade de chegar a pessoas que não usam frequentemente a Internet – e essa divisão digital ainda existe bastante, quer por diferenças intergeracionais, quer pelo crescente número de pessoas e movimentos que atualmente procuram estabelecer diferentes ritmos na sua relação de (in)dependência com as tecnologias digitais. O objecto em papel possui ainda algumas características impossíveis de emular numa versão digital. Em primeiro lugar permite, uma dinâmica de leitura que os suportes digitais não permitem. Por outro, permite uma proximidade que é muito importante para nós e que no caso deste nosso projeto de distribuição em bibliotecas publicas é muito importante. Recebemos inúmeros e-mails de pessoas a agradecer o jornal. Se tivéssemos simplesmente enviado um e-mail com mais uma notícia entre outras, ele teria ficado perdido numa caixa de correio electrónica, mas assim há um reconhecimento de que nós estamos ativamente interessados em que o jornal esteja disponível naquele espaço. Por último, quando se faz um jornal em papel há uma preocupação maior com os “acabamentos” porque, uma vez impresso, um texto não se pode mudar. Teoricamente isso cria uma aumento de qualidade decorrente dessa atenção extra, o que é verdade na maioria dos casos. E nesse campo entra ainda a atenção com o grafismo, a ilustração e a fotografia, cujos contributos originais privilegiamos.

Eu destacaria a pluralidade ideológica e a variedade temática em relação às múltiples lutas sociais que são tratadas no Mapa. Pode o jornal cumprir um papel unificador no contexto atual de desbandada das lutas?
Partilhamos certamente, dentro do coletivo, um olhar libertário, anti-autoritário, anti-patriarcal e anti-racista sobre todos os conteúdos. No entanto, o jornal não é órgão porta-voz de uma tendência política específica nem existe um projeto político no sentido programático. Existe um projeto que aborda a produção de informação desde um ponto de vista maioritariamente libertário sem que isso seja um critério de admissibilidade. Damos lugar a diferentes perspectivas, e a colaboração com diversas autoras que publicam no jornal permite criar a diversidade de abordagens que referes. Se há aqui potencial de unificação efectiva, materialmente e socialmente falando, escapa-nos. Esse é um processo que teria de nascer de outras fontes, e onde o jornal poderia, eventualmente, surgir apenas como mais uma ferramenta. O que o jornal pode fazer, certamente, é contribuir para uma maior partilha e atenção a certas experiências e às subjectividades que elas carregam. A partir daí podem fortalecer-se laços de solidariedade com outras realidades, criar processos de identificação e sugestão, que pelo menos combatem um certo isolamento geográfico inerente a muitas lutas (pensamos, por exemplo, na ilha de Santa Maria, nos Açores, e na luta contra uma base de lançamento de satélites, ou em Setúbal e na luta contra as dragagens no rio Sado).

Acho muito interessante a atenção especial que dedica o Mapa às lutas à volta da defesa do território. Esta consciência ecológica, pode ligar-se ao papel geoestratégico de subordinação de Portugal aos interesses do capital e da União Europeia?
Bom, não sabemos se a atenção do jornal ao território parte conscientemente desse factor – sobretudo quando pensado do ponto de vista de um só território, como seja Portugal. Certamente a nossa atenção ao território estará quase sempre intimamente ligada à subordinação ao capital, independentemente das fronteiras envolvidas. Os interesses da União Europeia têm sido também bastante explorados no nosso jornal através de uma série de artigos publicados sobre a gestão europeia das fronteiras, não tanto porque Portugal faça parte da Europa mas sobretudo porque a gestão técnico-política de fronteiras é um dos aparatos mais relevantes deste século. É claro que prestamos muita atenção ao que se passa perto de nós, porque é este o território que habitamos e porque nos interessam experiências politicamente situadas. Mas não temos nunca a fronteira como critério e relatamos muitas vezes experiências de outros lugares que achamos relevantes, seja de forma prática ou só reflexiva. Depois, as temáticas da defesa do território surgem-nos naturalmente pois interessa-nos sobretudo contar histórias locais e regionais, de lugares próximos das pessoas, e que dificilmente estão na agenda mediática. E na defesa de um território vão-se cruzar as não só preocupações ecológicas, como a consciência da necessidade de comunidade e de novas formas de relação entre as pessoas, que descobrem afinal elas mesmas, que muitas vezes esses processos de resistência que relatamos, são só o primeiro passo que se lhes abriu para questionar o mundo em seu redor.

Em relação a isto e, além da identidade linguística e cultural que partilhamos o povo galego e português, parece que as grandes corporações depredadoras, relacionadas com a extração de matérias primas, têm marcado como objetivo a exploração dos nossos territórios, os fogos que assolam Portugal e a Galiza são mais um exemplo das consequências das políticas criminais de que somos vítimas as portuguesas e as galegas. Acham que há espaço para estabelecer uma relação entre as lutas dos dois povos que supere o isolamento promovido pelos dois Estados?
Há paralelismos óbvios entre os dois territórios, e os incêndios de que falas são de facto resultado de uma política económica comum na Península Ibérica. A relação entre lutas pode estabelecer-se, da perspectiva de um jornal, começando pela partilha de experiências concretas que se cruzam na sua natureza – no próximo número, por exemplo, iremos abordar lutas contra projetos mineiros tanto na Galiza como em Boticas, em Trás-os-Montes, havendo obviamente uma intenção em quebrar esse isolamento imposto pelas fronteiras e os Estados.

Iniciaram o projeto jornalístico com o país entregado às políticas criminais desenhadas pola Troika, e continuam hoje no Portugal governado pela coligação progressista e de esquerda, tem condicionado a mudança institucional o projeto jornalístico e os movimentos sociais?
De facto, as manifestações contra a Troika foram o contexto no qual nasceu o MAPA e há uma ligação entre esse momento e a necessidade de um projeto de informação crítica. Mas o que aí nos motivou foi a dinâmica nas ruas e esse potencial das ruas permanece independentemente da mudança política. O nosso projeto não se viu nesse sentido condicionado com a mudança do rumo parlamentar e partidário, pois esse não é o nosso rumo. Temos por vezes abordado questões que se relacionam com quadros políticos específicos, nacionais ou internacionais, mas diria que o nosso foco tem sido bastante indiferente à rotatividade simbólica dos partidos e das suas agendas.

Por último, no contexto da revolução de 25 de Abril e sobretudo do PREC que se seguiu, o povo português mostrou a maior capacidade mobilizadora na Europa; as comissões de moradores, as ocupações de terras, a autonomia operária etc. sustentaram a tentativa revolucionária no espaço de mais dum ano. Som os movimentos emancipadores de hoje herdeiros diretos destas experiências ou pelo contrário, obedecem a novas dinâmicas de luta desvinculadas do passado?
Nós diríamos que as dinâmicas de hoje são outras. Apesar de as experiências que herdamos e conhecemos do pós 25 de Abril em Portugal estarem ainda muito presentes, e trazerem especificidades de onde muito se pode aprender, o mundo é hoje muito diferente e a emancipação também ganha outras formas, o que não quer dizer que não haja lugar a determinados modos de organização – como seja uma comissão de moradores ou a ocupação de uma terra. Acreditamos que beber de diferentes experiências é crucial para a nossa capacidade especulativa, mas não acreditamos na réplica nem no ‘movimento’ como algo que atravessa décadas e militantes. Um movimento é sempre situado, é sempre um evento. O MAPA tem tido, no entanto, a preocupação de dar voz à memória dos actores desses movimentos que falas, como foi na crónica a que se publicou à volta do José Afonso, participando num esforço de contrariar o exercício das Histórias oficiais e institucionais que dia-a-dia querem apagar esses tempos da revolução, domesticando e apaziguando a memória. Preferimos claramente a agitação dessa memória, mas para que sirva a novas dinâmicas reinventadas.