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Um novo pensamento crítico sobre o cárcere parece estar a infiltrar umha parte dos nossos movimentos sociais. Apesar de nom estar ainda claramente formalizado e representado socialmente, temos indícios que apontam para um crescente questionamento do sistema carcerário como instituiçom global, e nom apenas como parte do aparelho repressivo de um estado concreto.

Durante as mobilizaçons feministas no caso da dita “Manada”, umha parte do movimento ativou umha posiçom parcialmente divergente da maioritária, sem ser desleal a esta. Perante a tentaçom de reclamar maior “dureza” e “exemplaridade” nas condenas, de acordo com um sentido comum certamente estendido em todas as camadas sociais, esta parte recusou pedir justiça ao sistema judicial espanhol, enunciou a necessidade de umha justiça feminista própria e renegou explicitamente da prisom como recurso punitivo. Lemas como “Nem prisom nem impunidade” e o clássico “Nenhumha agressom sem resposta” sintetizam o sentido desta corrente, ao que parece ainda minoritária.

No âmbito independentista, a luta anti-repressiva tem vindo também, com outras maneiras e procederes, a aproximar-se deste novo pensamento ainda em construçom. Sendo como é o movimento social e político galego mais castigado polo açom judicial do estado, consignas como a de “Abaixo os muros das prisons” conseguírom nos últimos tempos encontrar o seu espaço ao lado de outras mais consolidadas e habituais, sem isso estranhar ou incomodar ninguém. Com maior vigor e transcendência, a denúncia dos abusos e violaçons sistemáticas da lei soubo incorporar argumentos e reflexons nom só devotados ao confronto nacional, mas também atentos à vigilância sobre os direitos fundamentais das pessoas injustamente retidas. Textos publicados por Eduardo Vigo ou Ernesto Castro, neste mesmo portal, assim o confirmam.

Precisamente, a incompatibilidade entre sistema carcerário e direitos fundamentais (embora estes sejam assimilados, praticamente, ao quadro dos “direitos humanos”), constitue a tese de partida da proposta abolicionista promovida, entre outras, polo professor da Universitat de Barcelona Iñaki Rivera Beiras, a quem pudemos ouvir há poucos meses na Galiza convidado por Esculca. Através de diferentes açons académicas e ativistas no âmbito do direito penal, articuladas genericamente arredor da ideia de “descarcelaçom”, Rivera Beiras propom umha reduçom progressiva tanto dos delitos contidos no código penal espanhol como do encarceramento como estratégia punitiva, até a erradicaçom completa do cárcere como instituiçom. Plenamente consciente das dificuldades da iniciativa, que nom da sua impossibilidade, o autor indica os dous motores que a poderiam fazer possível: a açom ativista continuada e coordenada (embora concebida no âmbito alargado da “sociedade civil” e do “diálogo”) e o uso de estratégias legais mais audazes, especialmente no âmbito do direito internacional.

Propostas deste tipo, com grande peso histórico nos movimentos anti-autoritários mas que, em geral, costumam deixar demasiados cabos sem atar, vírom-se muito reforçadas na sua plausibilidade pola sentença ditada em 2013 polo Tribunal Europeu de Direitos Humanos para o caso “Torregliani e altri contra Itália”. A sentença obrigou o estado italiano à libertaçom (que nom à exculpaçom) de mais de 14.000 pessoas presas e ao cumprimento de um plano de açom organizado em quatro áreas: modificaçom de normativas para impedir os encarceramentos maciços, promoçom dos regimes abertos, intervençons no desenho arquitetónico dos cárceres e habilitaçom de um sistema para previr e compensar os delitos contra os direitos das pessoas presas.

Com muitas críticas que a esta e outras propostas lhes poderiam ser feitas, o certo é que se trata de um espaço de pensamento que ousa questionar piares do nosso sentido comum e da maneira de entendermos o funcionamento social. Para alargados setores da esquerda nem sequer constituem objeto de interesse e nunca encontramos o seu eco, claro, no programa eleitoral deste ou aqueloutro partido. Há, no entanto, um caminho aberto e umha direçom que por enquanto só conseguimos imaginar mas que, nom é pouco, ataca frontalmente umha das várias formas da barbárie humana.