Um dos grandes labores com que se enfrentárom os precursores foi o descobrimento das imagens esquecidas da Galiza. Os tópicos que assumimos hoje sobre o nosso país tenhem tal arraigo que nos custa analisá-los como o que realmente som: históricos -nascidos num tempo e num contexto- e também ideológicos -tendem à deformaçom e mascaram interesses. Por isso o encontro dos nossos clássicos com as fontes mais antigas supujo para eles um impacto e umha revelaçom; para qualquer galego ou galega de hoje podem supor ainda um verdadeiro acordar à consciência nacional.

Aquele aldrajado povo de servos do século XIX resplandecia com luz própria a olhos dum Murguia ou dum Vicetto, sem nada que recordasse ao abatimento ou a rendiçom: ‘os kallaikoi, som os que habitam em grande parte as montanhas. Por terem sido difíceis de vencer, dérom o seu nome ao vencedor dos lysitanoi, e hoje os mais dos lysitanoi chamam-se kalaikoi’, escreve Estrabom sobre as nossas origens mais remotas, explicando o alcume de Décimo Júlio Bruto, ‘O Galaico’. No tempo da conformaçom das nacionalidades europeias, no medievo, os retratos apontam ao indómito e belicoso: o caudel dos cristaos, Cid Dias de Vivar, servidor de Afonso VI, era ‘o mais cam de todos os cans galegos’ para um cronista mussulmano. ‘De entre as naçons com as que os mussulmanos estavam em confito, a galega era a mais poderosa. E mesmo quando os francos fixeram também a guerra aos mussulmanos, os galegos constituíam os mais terríveis inimigos.’ Assim escrevia o geógrafo do século XV Muhamad Bin Abd Al Munim Al-Hymyari, quinhentos anos depois de decorrerem os choques. No século XVII, outro estudioso, Mohammed Ahmakari, explicava que ‘naquele tempo, nom ficou nenhum lugar sem dominar por Al-Andalus se exceptuamos o país da Galiza.’ Os cristaos, até certa altura, fam valorizaçons coincidentes : no Códice Calixtino, redigido por um franco, aparecemos como ‘litigiosos e iracundos’ ; Camoes menta os ‘galegos sórdidos, duro bando’ ; O aragonês Zurita, na sua conhecida crónica da doma do Reino da Galiza, elabora um dos últimos retratos do país como terra brava : ‘Eran todas las gentes de aquella nación, no solo con los de fuera, sino entre ellos, muy arriscados y feroces.’

A partir de aqui desaparece quase por completo qualquer alusom a poder ou dignidade galegas. Antonio Nebrija prologa a primeira gramática espanhola adornando o seu escrito com a sentença ‘siempre fue la lengua compañera del imperio’. Mas na sua enumeraçom de novos territórios que se situam baixo o domínio do idioma espanhol -Nápoles, Navarra, Aragom- Galiza já está ausente. Sarmento de Acunha, Conde de Gondomar, um dos poucos galeguistas da Idade Moderna, e um verdadeiro representante dum hipotético poder galego na ‘monarquia católica’, laia-se de que os relatos de façanhas e grandes feitos da fidalguia de nosso permaneçam criando poeira nas gavetas. Conhecemos o que se populariza na Espanha moderna: paisagens ferazes e improdutivas, labregos embrutecidos, carácter trampulheiro e insincero. ‘Antes puto que gallego’, diz o refraneiro castelhano, que também afirma : ‘juraste a un gallego : no pudiste venir a menos.’ ‘Gente sin sociedad, campo infecundo’, escreve-se nos versos do século de ouro. O antropólogo Caro Baroja lembra que, na listagem de tipos étnicos odiados em Castela, só o galego é mais vituperado que o biscainho.

Para sermos estritos, diremos que nom todos os documentos apontam na mesma direcçom. Existem contrapontos. Os olhares dos cronistas foráneos coincidem, por exemplo, em salientar o valor da mulher galega, a sua fortaleza no trabalho, e a capacidade de mando num lar do que os homens emigraram. No debalar da Galiza, a mulher labrega parece actuar como custódia da integridade perdida. E mesmo no panorama mais escuro e na miséria mais insoportável, menta-se a inteligência do nosso paisano e a sua capacidade de trabalho. Outros autores, atendendo à guerra, ainda parecem fazer-se eco do nosso velho estoicismo : ‘Os seus soldados, ainda que carecem de aquele lucido exterior de outras naçons, som excelentes para a infanteiria pola sua subordinaçom, dureza de corpo e hábito de sofrer incomodidades de fome, sede e canseira’, escreveu o ilustrado José Cadalso. E poucos anos depois, assombrado polas mesmas virtudes demonstradas na guerra do francês, o duque de Wellington pedia os espanhóis ‘imitarem os inimitáveis galegos.’

Claro que os matizes nom dérom rebatido o tópico central : o do rebaixamento moral, o engano e o servilismo. Trás séculos de processo assimilador, e com os nossos compatriotas trabalhando como segadores em Castela, como criadas em Madrid ou como escravos nas plantaçons cubanas :o galego trabalha por dous negros’. A imagem do ‘paio’ ou ‘galeguinho’ fixera-se já um motivo da cultura espanhola no refraneiro, nas piadas, nos folhetins, no teatro e no ensaio. Recriado polo povo e polas elites a partes iguais, os primeiros grandes teóricos do nacionalismo espanhol utilizárom-no a vontade : Ortega y Gasset via a Galiza ‘terra pobre, habitada por almas rendidas, suspicazes e sem confiança em si mesmas’, dominada por umha entrega inerte à vontade alheia. E o bilbaíno Unamuno -defensor declarado da morte do idioma galego ‘por suicídio’- explicava a nossa propensom ao humorismo polo sentido de debilidade: ‘A burla é umha das maneiras que tenhem de rebelar-se, de atacar e de defender-se os que se sentem febles, forem-no ou nom ; a burla galega é um consolo e umha defesa.’

Que havia de verdade no tópico ? As generalizaçons som tam aventuradas, lindam tam facilmente com o juízo injusto, que exigem sempre um exercício de prudência. Como sabemos, a história social da Galiza deita claro-escuros muito contrastados no comportamento colectivo. Houvo um Reino que decaiu até desaparecer ; elites demissionárias que castelhanizavam apelidos e liscavam para Espanha ; silêncios e cumplicidades, servilismo e submissom; mas também estoupidos e liçons exemplares de movimentaçom compromisso militante. Quiçá se ponhemos o nosso foco no povo, e nom só nas elites, esclareçamos este equívoco aparente. Poucos campos semánticos mais ricos do nosso vocabulário popular que aquele que descreve -e desqualifica- a pouca integridade de carácter e a hesitaçom na conduta. A Galiza tradicional censurava as atitudes dos chainhas, medonhas, cricas, coitados, remendafoles, xancinhos, cagalheiros, mexamorninhos, apoucados, pousafoles, minhajoias, achousados, petapoucos, malpocados, cucainas ou cagarolas. A língua dá ideia de que a submissom estava extendida e, em certa medida, dominava. Mas tampouco estava bem vista nem livre de condena.

A primeiros do século XX, o viageiro inglês Aubrey G. Bell visitava a nossa Terra e, entre outras observaçons, consignava o carácter do galeguismo político nascente : ‘o partido separatista galego nom é nem mui forte nem mui nacionalista’. Umha carga de indecisom, dúvida e perguiça carrega desde as origens umha parte importante do nosso movimento, das siglas e das pessoas que o formam. Mas os patriotas mais agudos detectárom a eiva: sabiam que a restauraçom do ánimo, dumha moral inteira, resultava tam premente como a elaboraçom dum completo programa. Pondal foi o defensor magistral da ética estoica, de libertaçom nacional, que devia inspirar-nos até a vitória. Passadas as décadas e com o país em andamento, várias obras conhecidas da nossa literatura retratatárom com carragem o galego postrado e decadente; na emigraçom, som os ‘ananos’ de Celso Emílio, e contra os que livravam batalha frontal os arredistas d’A Fouce ; nos agros, os Fuco Bujám atafegados e oprimidos: aprende a andar ergueito/ aprende a falar forte/aprende de tal jeito/que nunca mais esqueças o teu norte, arenga o autor de Cela Nova ao campesino maltratado. E quiçá nenhuma recriaçom mais aceda das classes médias urbanas e vilegas, engordadas polo caciquismo, que o Pedrinho que Castelao situou n’Os dous de sempre, aquele homem escravo do ventre e apodrecido por umha vida sem estímulo : o que nom tirava pedras porque temia escordar o braço, e ao que lhe arrepiava a ideia de meter o corpo quente na auga fria do mar ; um Dom Pedro enchufado no concelho polo cacique local, um homem com medo a todo, um homem engrunhado como umha caracola, um homem sem vontade, que passava os dias nas oficinas destragando papel de barba com os olhos chantados na esfera do relógio de péndulo, esperando a hora de jantar.

Os nossos melhores pensadores -sendo ou nom cientes disso- fôrom pensadores anticoloniais e, de modo mui semelhante a um Franz Fanon, um Malcom X ou um Padraic Pearse, entendêrom que a superaçom do nosso estatus começava, decisivamente, polo abandono das rémoras dumha personalidade fanada. Descobrir a fereza do passado era o primeiro passo para aumentar a nossa energia minguante do presente. Ainda que de maneira mui interessada se cifre o nosso futuro político no achádego dumha fórmula infalível, numha espécie de prodígio da inteligência destilado por um cônclave de listos, a questom da acçom, e das exigências de carácter que conleva, continua a aparecer como reto incontornável. Por isso o Estado espanhol leva quatro décadas perseguindo até a aniquilaçom as organizaçons e pessoas dispostas a assumi-la.