Em 1856, no décimo aniversário do fuzilamento dos Mártires de Carral, um moço Manuel Murguia publica em La Oliva de Vigo este texto. Nele narra-nos a sua experiência como testemunha direta da Revoluçom Galega de 1846 quando apenas tinha 13 anos. Murguia viveu as últimas resistências dos revolucionários à entrada do exercito espanhol em Compostela de primeira mao. Porém, o relato apresenta ainda mais pontos de interesse. Reparemos em como identifica Galiza com a “Irlanda de Espanha”, modelo independentista após a Eirí Amagh de 1798, mas também pola gram fame irlandesa de 1845 a 1852 quase parelha à galega de 1853. Contodo, o que mais surpreende contra a historiografia espanhola em tam imediato testemunho é a afirmaçom de que os rebeldes queriam ser só galegos.
Era eu cativo, quando um berro de liberdade feriu os meus ouvidos, fijo tremelicar o meu coraçom. E saudei-no como a um irmao e abençoei-no como a um pai. E amei-no, ou, santo nome!
Há umha página na história do meu país natal, da Irlanda de Espanha, do país seica amaldiçoado do Senhor e escarnecido de todos os que nom som os seus filhos. Há, dizemos, umha página triste, umha página de bágoas e de sangue, como o é assemade de glória. Essa página é umha data, essa data um aniversário, esse aniversário um dia de dor e de luto para os verdadeiros galegos.
“Deus e liberdade!”, berrava agrupando-se sob umha bandeira rachada polas balas francesas toda umha mocidade entusiasta. Deus, o único Senhor no céu; Liberdade, a única Soberana na terra. Deus e liberdade, berravam porque tinham fé no coraçom e esperança no porvir! Pobres mártires!
A esperança dourou os seus sonhos de emancipaçom e sorriu-lhes mesmo no dia da sua derrota. Os que se entregárom em Sam Martinho Pinário, ao lhes faltarem aos seus fuzis os últimos cartuchos, criam na vitória e aguardavam, quando nom podiam ter por certa a compaixom dos vencedores.
A lembrança desse dia é um vam sopro que vem remexer quentes cinzas. É umha mao misteriosa que bate no nosso coraçom e abre de volta a mal cicatrizada ferida ganhada naquela luita. É umha voz de dor que sai do fundo da nossa alma e a comove. Um brado que a fai acordar, um “Ergue!” que ecoa nas tombas dos ajustiçados em Carral, como ecoou na de Lázaro.
Ah, se ecoasse também na consciência dos vencedores!Nom haveria hoje bágoas por aquelas tombas, nem lembranças que oprimissem o coraçom com a sua tristeza, nem chao enchoupado no sangue de malpocados, nem aniversários de dor e de luto. Mas umha festa, umha verdadeira festa de flores e de cantigas. E o sol que agacha a sua testa entra as ondas do mar que bate naquelas costas havia banhar com as suas raiolas umhas pobres tombas afastadas, esquecidas se calhar, e sem nome nengum.
“O que fijo foi provocar que se pense mais nele”, dixo-se do nome dumha rainha que o ódio implacável do seu verdugo nom quijo estampar na lousa que a cobria. Nom podemos dizer nós o mesmo? Ignorárom que o nome daqueles valentes ficou no nosso coraçom, que há ser umha história que lhes cantemos aos nossos filhos e que os poetas do nosso país o ham cantar ao som das suas arpas.
Nós vimo-los guindar-se à luita. Nós seguimo-los com o olhar na curta carreira da sua insurreiçom santa e bendita polos bons patrícios. E assim como figemos votos pola sua vitória, vertemos lágrimas o dia da sua desgraça.
Que nom somos nós quem renegamos daquela obra de nossos irmaos. Que nom somos quem, após avivar e aquecer o lume daquele alçamento, viramos a olhada para afastá-la das cinzas às que fôrom reduzidos pola desgraça os restos daquelas tropas que deveciam por arrancar das nossas frentes o padrom da ignomínia com que as cobrem. Por apagar o insulto que nos arrebolam ao rosto, esmacelado de xenreira e de despeito.
“Nom queremos ser mais que galegos”, dixo-se daquela. E os que o dixérom dam-lhe ao silêncio as suas palavras e nom possuem apenas umha para lhes lembrar aos vencedores de hoje aqueles tempos em que eram vencidos.
Deu-se o grito de liberdade, tremeleárom as bandeiras revolucionárias, cintilárom ao seu redor os fuzis dos insurretos, ressoárom os hinos que os levariam à vitória, espalhou-se dumha beira à outra da província o lume da santa rebeliom. E parecia que um anjo guiava aquelas entusiastas legions. A sua primeira batalha foi a sua primeira vitória. Traidor sorriso da fortuna que os parecia arrufar para os desleixar depois no malfadado dia da derrota.
Era eu cativo quando esse berro de liberdade feriu os meus ouvidos e me estarreceu o coraçom. Eu seguia-os com o pensamento por onde marchavam. Eu orava pola sua sorte como um pobre orfo ora sobre a tomba de seus pais. “Senhor” -clamava- “dá-lhes um raio de luz e guia-os para a vitória, como guiavas o povo de Israel contra os seus opressores. Nom os abandones, Senhor.”
Eu vim-nos generosos o dia do seu triunfo e vim-nos altivos o dia da sua desgraça, porque as suas almas eram almas de heróis. Assistim com o coraçom oprimido pola incerteza à última batalha. Eu vim erguer-se a bandeira branca da paz sobre os cadáveres dos vencidos e dos vencedores. Eu ouvim o cantar do inimigo entoado sobre o sangue dos meus irmaos, nos seus mesmo lares desertos já, e sentim-no perder-se entre as engurras do vento das minhas montanhas. Eu vim todo isto, mas nom pudem secar as suas bágoas, deitadas no estreito recinto dumha prisom onde aguardavam como bálsamo de paz a morte dos mártires.
Por isso quando deixárom os calabouços e se despedírom, com o coraçom cheio de amargura, daquela cidade cujas torres se erguiam às suas costas, para nom as voltar a ver jamais, os seus rostos iam serenos ainda que tristes. Parecia que lhe diziam à liberdade pola que morriam o que os gladiadores no circo romano: “DIVI, MORITURI TE SALUTAM!”
Alá, numha pobre e miserável aldeia era onde os aguardava a morte. Único triunfo, único loureiro que as maos dos seus inimigos colocavam nas suas frentes esbrancuxadas.
Eu percorrim depois aquele vieiro, aquel longo caminho do seu calvário, regado talvez com o seu pranto. Percorrim-no com a alma triste, com o coraçom apertado, como Mr. De Lamartine percorria em Terra Santa os lugares dos que nos falam as sagradas escrituras. A pequena igreja de Santo Estevo de Paleu, cuja torre de negro granito salienta como umha sombra sobre o azul do céu. Aquele pobre pastor dono de tam reduzida mas santa vivenda, aqueles lugares, aquela gente singela que nom compreendia tam cruento sacrifício consumado na ara da liberdade. Aquele vento que levou os seus derradeiros salaios, aquela natureza que morria para quem os acompanhava na sua morte, aquele sol que se afundia nas montanhas, aqueles homens que apuravam a sua expiaçom e os sobrevivem. Eles apenas sabem como morrérom aqueles infelizes ,que se algum erro cometérom, abofé que nom foi o de nom defender a sua pátria.
Hoje querem-lhes erguer um monumento! Um monumento! Perguntai-lhes a quem os chorou no seu infortúnio. Perguntai-lhes se lhes cumpre! Nom, ham-vos dizer: “o seu monumento está aqui” e ham-vos sinalar o coraçom. Homens que os levastes a umha tomba senlheira, deixai-os. Nom irám ali os seus inimigos profanar o seu leito de morte. Os seus irmaos ham saber seguir o esguéreo vieiro polo que eles caminhárom ao suplício e regá-lo com bágoas de verdadeira dor.
Mártires de 1846, Deus e liberdade.