– A face mais conhecida da produçom teórica de Marx é a política e a econômica. Que outras dimensons da vida e da sociedade Marx discutiu nos seus textos? Qual a atualidade de seu pensamento?
Michael Löwy – A obra de Marx inclui dimensons culturais – seu interesse pela literatura francesa e inglesa é notório – antropológicas, por exemplo, em seus Cadernos Etnológicos, filosóficas (no conjunto de seus escritos de juventude, mas também na parte metodológica do Capital), historiográficas, religiosas (nom só na crítica ao “ópio do povo”) etc. Era um autêntico espírito universal.
A atualidade de seu pensamento é imensa: como dizia Sartre, ele é o horizonte intelectual de nossa época. As tentativas de “superá-lo” só levam a regressons: ao positivismo, ao liberalismo do século XIX, à economia política burguesa etc. Os dous aspectos decisivos desta atualidade som:
1) a análise científica do funcionamento do capitalismo e a sua crítica feroz, como sistema intrinsecamente perverso, baseado na violência, na opressom e na exploraçom da maioria da populaçom;
2) a proposta de uma alternativa radical ao capitalismo, uma sociedade sem classes e sem opressom, igualitária, libertária e democrática: o comunismo.
– Marx era um crítico contumaz da religiom, que para ele era uma forma de opressom e alienaçom. Contudo, que está no centro da crítica à religiom feita por Marx?
Michael Löwy – Muitos identificam a análise da religiom de Marx com a fórmula “a religiom é o ópio do povo” (Contribuiçom à crítica da filosofia do direito de Hegel, 1844). Esta fórmula nom tem nada de propriamente marxista: encontramo-la em Heine, em Moses Hess e vários outros contemporâneos de Marx. Ela é mais bem neo-hegeliana, idealista, definindo a religiom como uma essência filosófica intemporal. O estudo marxista, materialista histórico da religiom começa com a Ideologia alemã (1846) que analisa a religiom como uma das formas da ideologia, a ser interpretada do ponto de vista da luta de classes, em cada momento histórico concreto.
Na verdade, Marx nom se interessou muito pela religiom, foi Engels que dedicou vários trabalhos a essa temática. O mais importante é A guerra dos camponeses (1850), que analisa os conflitos religiosos na Alemanha do século XVI do ponto de vista da luita de classes. Engels interessa-se em especial pola figura do anabatista Thomas Münzer, teólogo revolucionário e inspirador da luita emancipadora dos camponeses.
– Qual foi a apropriaçom, a leitura, de Marx durante a Revoluçom Russa? E agora, um século depois desse episódio, como podemos reler a Revoluçom a partir das inúmeras recepçons que foram surgindo ao pensamento marxiano?
Michael Löwy – E impossível resumir um século de história do marxismo em dous parágrafos… Os revolucionários russos tivérom a inteligência de reler Marx do ponto de vista de uma revoluçom socialista num país da periferia do sistema capitalista, rompendo assim com o pretenso marxismo ortodoxo da Segunda Internacional. Esta perspectiva já fora proposta por Trotsky em 1906, com a sua teoria da “revoluçom permanente”. O problema é que os bolcheviques se afastaram do programa democrático e libertário do comunismo de Marx, para defender, a qualquer preço, o poder revolucionário do Partido.
Esta crítica foi feita já em 1918 por Rosa Luxemburgo, no seu panfleto sobre a Revoluçom Russa: ao mesmo tempo em que fai o elogio dos bolcheviques, de Lenin e de Trotsky, critica o seu autoritarismo e a sua visom pouco democrática do poder.
– Passados pouco mais de 150 anos da publicaçom de O Capital, estamos diante de uma sociedade que hegemonicamente se relaciona com o capitalismo como uma espécie de religiom. Até que ponto o marxismo é a outra face dessa mesma “moeda messiânica” e até que ponto ele apresenta alternativas novas?
Michael Löwy – A crítica do capitalismo como religiom já se encontra nos anos 1920 em escritos de Ernst Bloch e Walter Benjamin. A Teologia da Libertaçom (Assmann, Hinkelammert, Jon Sobrino) desenvolveu brilhantes análises da idolatria do mercado no capitalismo, articulando a crítica dos profetas bíblicos ao culto dos ídolos com a teoria marxista do fetichismo da mercadoria.
O marxismo nada tem a ver com esta “moeda”, que nom é messiânica, mas sim um imenso ritual ao redor do Bezerro de Ouro. Será o marxismo uma teoria messiânica? Nos escritos de Walter Benjamin propom-se uma leitura do materialismo histórico em perspectiva messiânica.
– Quais os limites e as possibilidades de compreensom do pensamento de Marx nas sociedades contemporâneas que parecem ser mais complexas e difíceis de compreender que as primitivas sociedades industriais do século XIX?
Michael Löwy – Obviamente as sociedades capitalistas contemporâneas som muito diferentes das do século XIX, mas ainda funcionam segundo a lógica implacável do capital estudada por Marx: a acumulaçom do capital e a extraçom do lucro como critério único e exclusivo da atividade econômica. Mas, sem dúvidas, som necessárias novas análises para dar conta das caraterísticas específicas do capitalismo atual. Felizmente existem muitos trabalhos de autores marxistas modernos, que desenvolvem análises inovadoras neste terreno, desde Ernest Mandel até David Harvey, István Mészáros ou Immanuel Wallerstein – sem falar dos inúmeros estudiosos latino-americanos e brasileiros.
– Como os novos estudos sobre Marx revelam um autor muito mais heterodoxo do que sugere a leitura ortodoxa, via de regra de esquerda, de seus escritos?
Michael Löwy – Graças aos trabalhos de John Bellamy Foster, Paul Burkett, Ian Angus e Kohei Saito, descobriu-se toda uma dimensom ecológica da obra de Marx, que fora totalmente ignorada pelas leituras da esquerda tradicional. Os escritos pioneiros de Teodor Shanin sobre Marx e a Rússia abriram novas perspectivas, e o mesmo vale para Kevin Anderson em seu brilhante livro sobre Marx e os povos nom europeus. Som apenas alguns exemplos de muitas leituras “heterodoxas” de Marx.
– O livro de Marcello Musto O velho Marx: umha biografia de seus últimos anos (1881-1893) joga luz sobre um período da vida de Marx menos conhecido. Que essas novas informaçons revelam sobre ele? Ele chegou a repensar seus próprios conceitos e idiossincrasias?
Michael Löwy – Marcello Musto é o primeiro a analisar com profundidade o “Último Marx” (1881-1883), descobrindo as fascinantes pistas que abriu, nestes derradeiros anos, o grande adversário do capitalismo.
O quadro que vam desenhando estes escritos – certo, inacabados, e nom sistemáticos – é de um Marx extraordinariamente “heterodoxo”, isto é, pouco conforme com o marxismo pseudo-ortodoxo – por exemplo estalinista – que tanto estrago fijo no curso do século XX. Um Marx que critica impiedosamente o economicismo, a ideologia do progresso linear, o evolucionismo, o fatalismo histórico, o determinismo mecânico. O exemplo mais impressionante desta reflexom som os últimos escritos sobre a Rússia, examinando a possibilidade para este país de escapar dos horrores do capitalismo. A morte interrompeu um extraordinário processo de reelaboraçom, de reformulaçom, de reinvençom do materialismo histórico e da teoria da revoluçom.
– Deseja acrescentar algo?
Michael Löwy – A obra de Marx é indispensável para pensar o mundo de hoje e buscar sua transformaçom. Mas o marxismo nom se limita a Marx. Nom se pode ignorar a riqueza do marxismo do século XX, em toda sua diversidade e suas contradiçons: Lenin, Rosa Luxemburgo, Trotsky, Gramsci, José Carlos Mariategui [27] , Georg Lukács [28] , Ernst Bloch, Walter Benjamin e tantos outros que contribuíram para entender os fenômenos do século XX: imperialismo, fascismo, estalinismo…
Na verdade, o marxismo só tem sentido como um pensamento aberto, em constante evoluçom, buscando dar conta dos novos problemas e das novas perspectivas para a revoluçom.
*Publicado inicialmente na revista IHU ON-LINE