Num momento em que o fascismo espanhol pede sem vergonha –e sem escrúpulos– a expulsom de 52.000 migrantes que moram no Estado Espanhol; quando remata o ano 2018 em que chegarom a Galiza mais de 5 milhons de turistas e a Santiago de Compostela mais de 300 mil peregrinos, batendo um novo registro, achamos que é bom momento para reproduzir um artigo que reflexiona sobre estes dous jeitos de viajar: a migraçom e o turismo.
Nom sejamos ilusos. Por muito variada que nos parecer a oferta das agências de viagem e por muito abigarrados e coloridos que forem os mapas, neste mundo só se pode viajar em duas direcçons: ou contra os outros ou em direcçom a eles. Contra os outros, o que foi dado em chamar Ocidente nom deixa de organizar expediçons militares e cruzeiros de luxo, turnés de negócios e rallys espectaculares, operaçons de bolsa e visitas às Pirámides. A viagem para os outros, polo contrário, é sistematicamente impedida, desacreditada ou desprezada.
Sob o capitalismo globalizador, incompatível com praças abertas, assembleias e ágoras, só há dous “lugares” antropológicos de inscriçom individual: o “corredor”, utopia ultraliberal da circulaçom sem obstáculos, e o “muro”, que revela o seu fracasso. No Corredor giram sem cessar as mercadorias, as armas, a informaçom, o dinheiro, os turistas. No Muro ficam entalados umha e outra vez os pobres, os “terroristas”, os imigrantes. Som estes dous “lugares”, mal porosos, de costas viradas um ao outro, que constroem a sensibilidade e o comportamento de quem está atrapado neles.
Na experiência da viagem -contra os outros ou para eles- som a direcçom da deslocaçom e o meio de transporte, marcas de hierarquia global, que determinam estruturalmente a autoestima do viajante e a percepçom do outro e, portanto, a recepçom em destino. Contra os outros, vamos suavemente e reclamando gratitude e recebendo salvas de palmas; em direcçom aos outros, vai-se atrapalhadamente e pedindo desculpas e recebendo porrada. O turista entra em África como os acordos comerciais e as directivas europeias, do ar e do alto, de aviom ou cruzeiro de luxo, e comporta-se -e é tratado- como se procedesse da sua alma o valor das divisas que leva. O imigrante é obrigado a entrar na Europa a rasto e por buracos, como as ratas e os insectos, e tem que conseguir o perdom, com submissom e baixos salários, pola sua irredutível condiçom animal (e a necessidade que tenhem dele).
Sob o capitalismo globalizador apenas há já duas possíveis deslocaçons no espaço, em direcçons opostas e paralelas: o turismo e a emigraçom. Ainda: já nom há nem raças nem sexos nem feitios; nem espanhóis nem franceses nem senegaleses nem filipinos; só turistas e imigrantes, relaçons entre turistas, relaçons entre imigrantes e surdas trocas desiguais entre turistas e imigrantes. O turista é turista também no país de origem porque ali também se limita a olhar e porque a presença imigrante, incómoda e pruriginosa, eleva-o simbolicamente por cima da sua classe e disolve-o ilusoriamente num grupo nacional revalorizado polo desejo do forasteiro. O imigrante é também imigrante no próprio país porque também ali é objeto de precauçons e suspeitas e está ininterrumptamente separado dos visitantes, sem mais bilhetes nem passagens do que a astúcia ou a mendicidade, por muros e polícias que confirman a perigosa exterioridade dos nativos.
Mas a diferença entre os dous “lugares” -o Corredor e o Muro- desenha oposiçons subjectivas quando menos surpreendentes.
Os turistas som levados, acarretados, dirigidos e entretidos; os imigrantes –como lembrava John Berger- “som os mais empreendedores da sua geraçom”.
Os turistas viajam encerrados em confortáveis “lager”, clientes da própria prisom; os imigrantes, até que som encerrados por existirem, som livres.
Os turistas som consumidores livianos sem raízes, aventados por prazeres superficiais de ordem canibalística (devorar petiscos, souvenirs e imagens); os imigrantes viajam guiados pola saudade (o “doloroso desejo de regressar”) e por isso, no meio das dificuldades, conservam os costumes e os valores de origem. Levam o escorpiom da realidade fincado no corpo.
Os turistas visitam; os imigrantes viajam. Os turistas estám sempre chegando a si mesmos; os imigrantes progridem e arriscam. “Para ir de Palermo à Tunísia” -resume de forma lacerante Gabriele del Grande- “bastam 47 euros, dez horas e um bilhete de identidade; a viagem contrária pode custar 2000 euros, anos de deserto e, às vezes, a morte”. Os turistas som, pois, borregos; os imigrantes aventureiros.
Os turistas, porque tenhem papéis, nom som “pessoas” senom puras personificaçons dum Estado soberano que avala o seu passaporte e moeda; os imigrantes sem papéis (porque se desfigérom dos originários e nom recebem outros em destino), abandonados polos seus Estados infrasoberanos, corpos completamente à intemperie, som indivíduos puros. Os turistas som abstracçons colectivas; os imigrantes, concreçons individuais.
Os turistas, por isso mesmo, som locais, nacionais, para-humanos; os imigrantes som o homem nu e total. A condiçom universal que Marx atribuía ao proletariado é encarnada hoje, e polas mesmas razons, polos imigrantes.
Os turistas, portanto, som um pouco cómicos; os imigrantes som épicos.
A viagem contra os outros -através das leis migratorias e os jornais, dos shoppings e a televisom- está tam assente na nossa experiência que somos incapazes inclusive de reconhecer a incoerência do nosso rejeitamento. Umha sociedade que cultiva os refinamentos da compaixom, que inventou o colonialismo e a literatura de viagens, que continua a lembrar Marco Pólo, Stanley e Peary, que admira os relatos de superaçom e se deixa fascinar polas pequenas epopeias dos nossos jornais… porque é que nom se comove perante as peripécias destes aventureiros modernos -os únicos que ficam já- capazes de percorrer várias vezes o continente africano, escapar de prisons, sobreviver ao deserto, combater a agitaçom das ondas, para dar de comer umhas crianças que ficam longe ou casar umha irmá sem recursos? Umha sociedade que joga em bolsa, que elogia o risco e a competitividade, que engrandece o individualismo e condena a intervençom do Estado, porque é que nom admira esta expressom máxima -trágica e heroica- da “iniciativa privada” enfrentada a todos os obstáculos, sobreposta a todas as travas, libertada de todo o proteccionismo estatal? Umha sociedade que descobriu e diz defender os direitos humanos, que valoriza literária e cinematograficamente os rebeldes e os justiceiros, que aprova as “intervençons humanitárias” em favor da democracia, porque nom reverencia com respeito estes milhares de africanos que, arrostrando todos os perigos, jogando a vida e às vezes perdendo-a, percorrem distáncias quase infinitas para entrar na Europa e reivindicar aliás a Declaraçom dos DDHH da ONU e a igualdade natural entre os seres humanos? De facto acontece, como sabemos, todo o contrário. As virtudes dos imigrantes convertem-se paradoxalmente em vantagens para os nossos mercados e punhais para eles. Que sejam empreendedores, obstinados e aventureiros, que sintam saudades e tenham raízes garante a “selecçom natural” da nossa mao de obra semi-escrava, assegura nos países de origem a reproduçom dum exército imigrante de reserva mantido polas remessas do exterior (sem despesas sociais para os Estados africanos dependentes e corruptos) e conjura o perigo de revoluçons e mudança políticos “desestabilizadores” no Terceiro Mundo. Que sejam indivíduos puros e homens nus deixa-os completamente desprotegidos e expostos a toda a classe de atropelos e violências: precisamente porque som só humanos carecem de todo o direito.
O resultado é este: numha direcçom há 160 milhons de imigrantes em todo o mundo que deixárom os países de origem para levantar casas, trabalhar nas colheitas e tomar conta de idosos, e nós recebemo-los a paus. Em direcçom contrária, há 600 milhons de turistas -quase sempre os mesmos- que todos os anos vam fotografar fotografias, reforçar dependências neocoloniais e desbaratar recursos económicos e culturais e exigem e obtenhem em troca reconhecimento e protecçom. Os construtores afogam no mar; os destruidores vam aos países de origem das vítimas para o celebrar.
* Artigo recolhido no livro “Todas as guerras” editado pola da Escola Popular Galega.