Um olho de vidro

Infelizmente já falecido, Zygmunt Bauman em A modernidade líquida dizia-nos que as fronteiras que divide o nós do eles estão perfeitamente assinaladas e são muito débeis, já que o certificado de “pertença” apenas contém uma divisão. A Génese do nacionalismo espanhol sempre foi o conflito desesperado de dividir o nós do eles, atribuindo aos movimentos que lutavam por preservar ou atingir as próprias soberanias populares (política, económica, estética, alimentar…) o que o espanholismo sempre praticou: um nacionalismo essencialista onde a pertença é «destino no universal» e não uma eleição ou projeto de vida pelo que quem não aceita a imposição ou tem uma identidade que questiona o relato nacional único é asinha convertido num traidor, num terrorista ou num golpista.


O alimento desta ideologia brutal e primária é o ódio e a sua faísca a ignorância. O medo empobrece, tanto que por medo a serem livres sentem orgulho da sua condição os escravos. Na Política Aristóteles falando da «boa polis» impugnava o sonho platónico da soa verdade, do único parâmetro de justiça e correção aplicável a todos: «Haverá um momento em que a pólis, graças ao progresso da unidade, cessará de ser uma pólis; mas, no entanto, aproximar-se-á à perda da sua essência, e por isso será uma pólis pior. É como se um convertera a harmonia em uníssono ou reduzira uma canção a um único compasso».


Como Aristóteles entendemos –frente ao relato único herdado do franquismo que nos diz quê língua é que devemos falar, quê é que se pode pensar e quê é que é heresia, quê e quando podemos votar, etc. – que a sociedade civilizada se reja polo logos e não polo mito, sendo plural, diversa e exigindo a gestão dessa pluralidade, a negociação e a conciliação de interesses e não a ditadura das camarilhas. O pluralismo, também no movimento decolonial galego, não é algo anómalo que deva ser apagado, mas é a força e a riqueza que amplia os horizontes humanos, enriquecendo-nos coletivamente e multiplicando as possibilidades de termos unha vida melhor que as que oferecem o chauvinismo e o patriotismo do trapo que logo hipoteca a soberania no BCE, a Comissão europeia ou o FMI. Sem pluralismo e sem convivência impõe-se o darwinismo social e anula-se qualquer hipótese de atingirmos a configuração dum bloco histórico e duma hegemonia alternativas ao capitalismo, cujo paradigma é converter os centros do sistema-mundo em núcleos dum apartheid global na sequencia do ensaio bem sucedido do Estado de Israel.


A verdadeira unidade na diversidade é que a nasce do debate, da negociação e da concessão entre valores, preferências e modos de vida diferentes, mas realmente existentes na polis e, sobre tudo, os próprios do demos diverso que deve sustentar a construção da República. Eis o modelo de unidade republicano: unha criação democrática que nasce do encontro e o diálogo na ágora e não de apriorismos e imposições mediante o exercício da violência física e simbólica.


A antítese do republicanismo é o separatismo dos ricos: áreas residenciais isoladas e baladas, verdadeiramente extraterritoriais e xebradas do resto da sociedade, com câmaras de vigilância e guardas armados, que proliferam nas zonas adinheiradas da Globalização capitalista atual: dualização das sociedades, configuração de estados penais e acumulação por desposesão. Nesse violento e perigoso mundo implacável e hobbesiano (Homo homini lupus) as periferias como a nossa são simplesmente territórios de conquista dos que tirar os recursos deixando miséria para os indígenas. E é precisamente neste quadro onde devemos situar os reptos do soberanismo. Se não formos capazes de realizar as tarefas urgentes e construir as ferramentas certas apenas restará que paguemos a fatura.