UM OLHO DE VIDRO

Em latim a palavra para infância (INFANS, prefixo de negação IN- mais verbo FOR, “dizer em público”) significava «o que não fala em público». Por outras palavras, eram infantes aqueles que não tinham voz nos assuntos públicos. Em grego idiota (ἰδιώτης, de idio próprio e o sufixo de agente –tes) começou usando-se para o cidadão individualista e egoísta e passou ao latim serôdio com a aceção de pessoa ignorante. O idiota era aquele que não tinha ideias próprias, que não se ocupava dos próprios assuntos e, que, ainda sendo cidadão, se comportava como se fosse escravo. Esses assuntos dos cidadãos livres eram os da πόλις (pólis) e a política (πολιτικά) era todo aquilo que afetava à cidade e, portanto, à própria vida.

Político (πολιτικός) deriva de politeia (πολιτεία), que é como chamavam os gregos a teoria da pólis (cidade), intimamente ligada com o termo homérico de paideia (παιδεία), o sistema de educação e formação ética da Grécia para formar o cidadão integral que for bom para a sociedade, pois pedagogia significava conduzir o neno da mão pelo caminho da vida. A República de Platão no original era Πολιτεία (politeia) e Aristóteles afirmou que o homem era um ζῷον πoλιτικόν, ou seja um «animal cívico» que apenas pode realizar-se plenamente na sociedade vivendo com outras pessoas desde o exercício do civismo.

E cá estamos séculos depois com os partidos políticos ao serviço da oligarquia fazendo e desfazendo até em minoria, conduzindo a Humanidade e a Biosfera ao abismo, infantilizando as sociedades e reduzindo a democracia a um simulacro. A voz latina SIMULACRUM significava a representação figurada de algo ou até um manequim (do holandês maneken, homem pequeno) em que se encerrava os homens para queimá-los vivos em honra aos deuses. Não é hoje a política institucional o corsé pós-moderno da globalização predatória que nos come vivos e nos sacrifica no altar do deus-mercado que está por cima tudo?

Uma política sine ethica, antitése da Política, privatizada e mercantilizada onde a cidadania se converteu em súbdita enquanto no Reino uma atmosfera abafante exalta a ignorância e premia a calunia e os fake, o amiguismo e o espólio. Um alto cargo de Esperanza Aguirre tinha 146 lingotes de ouro em Suíça. O fiscal-chefe de anti-corrupção, colocado pelo PP a dedo, era o raposo do galinheiro com contas em paraísos fiscais. A justiça ao serviço do Regimem e a monarquia negociando em Arábia Saudita dá lições de Direitos Humanos. Cada semana o bulheiro zarrapica mais e mais e injeta apatia no corpo social reforçando os aprendizes de bruxo: juízes, empresários, fiscais, políticos, funcionários, caciques, bispos e sátrapas de diversa caste… todo o aparado jurídico-político apodrecido sem cataplasma nem remédio possível: uma engrenagem feita para saquear o público e converter a auga em vinho, os impostos em benefícios particulares, a obra pública em mordidas e lucros privados… e aos idiotas dizem-nos que «vivemos por cima das nossas possibilidades».

O Estado como braço armado duma gigantesca máfia, a do regimem do 78, que opera com total impunidade e completa a colonização ultraliberal das mentes. Que pode sair mal? De pais a netos, de cunhados a irmãos, de colegas a compiyoguis medra o que Beiras denominou como «franquismo sem Franco». Como nos lembrava o Celso Emílio no poema “Requiem” «Vendiche vento, vendiche leria,/ todo o vendiche, menos decencia./ Todo ten precio, todo se compra,/ todo se vende, menos vergonza.».

Isto acontece, bem é certo, porque somos uma sociedade politicamente de INFANS e ἰδιώτης sem voz no público nem resposta, sem ideias alternativas, que apenas podem construir-se mobilizando-se e organizando-se desde abaixo, e onde a máxima preocupação é, como intitulamos os Liviao de Marrao um disco Que cada cão lamba a sua caralha, esquecendo que nesse cenário é o pequeno o que lambe a de todos.