Recuperamos um fragmento da entrevista que Slavoj Žižek concedeu na Universidade de Bos Aires quando era candidato à Presidência de Eslovénia.
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Entrevistador: Qual seria o ideal humano que corresponde à nossa democracia liberal e à sua cultura pós-moderna? E que é o que se pretende com esse ideal?
Slavoj Žižek: Está mui de moda dizer que a desintegraçom do comunismo em 1989 significou o fim da utopia e o ingresso a um mundo “pós-ideológico”. Porém, os anos 90 sinalárom o surgimento dumha autêntica utopia. Com o capitalismo liberal já tinham a fórmula. Todo o que necessitavam entom era difundir umha atitude pós-moderna: nada de identidades fixas. Essa foi a utopia. Se o 11 de Setembro de 2001 tem um significado simbólico é justamente o demarcar o fim desta utopia. De jeito que, para mim, a verdadeira utopia foi a dos anos 90. Tínhamos toda as respostas. Devíamos esquecer a revoluçom porque vivíamos no melhor mundo possível. O que nos fazia falta era mais toleráncia, multiculturalismo, liberdade sexual… Isto terminou o 11 de Setembro. Mas há outro aspecto importante. Muitos esquerdistas, baixo a influência do pós-modernismo, pensam que estes valores –multiplicidade, liberdade para escolher e reinventar-nos a nós mesmos- constituem atitudes subversivas e revolucionárias, como se o poder defendesse ainda valores conservadores.
Entrevistador: E nom é verdade?
Slavoj Žižek: Nom. Para dizê-lo de umha maneira passada de moda, todos esses valores pós-modernos som os da ideologia dominante: esquece os velhos objectivos políticos, agora és livre de dedicar a tua vida ao só propósito de realizar-te a outro nível, desde encher-te de dinheiro até fazer o amor mais seguido, mas também num sentido espiritual. Olhemos um pouco face o campo da arte: Onde ficárom aqueles bons tempos nos que a arte oficial era conservador e a vanguarda se dedicava a provocar à gente? Na colecçom Saatchi de Londres, que integra o circuito cultural estabelecido, podem-se ver obras perturbadoras como vídeos de colonoscopias, merda, o que se nos ocorra. O meu exemplo preferido é o dessa pequena cidade dos EUA, cujo nome nom recordo, onde domina umha esquerda que defende essa ideia de potenciar todo tipo de desejos pessoais. É que acaso os necrófilos nom som vítimas dumha clara marginaçom? Nom é o nosso dever como sociedade facilitar-lhes certos corpos para o seu prazer? Esta é umha falsa permissividade na minha opiniom. Falsa em dous níveis. Primeiro, resulta evidente que na nossa vida pessoal somos livres de fazer o que nos dê a ganha, mas que decisons som as que realmente importam?
Entrevistador: E quais som?
Slavoj Žižek: Por exemplo, se tratamos de nacionalizar um banco descarregarám sobre nós os piores insultos: populistas, comunistas, é dizer que nom serám tam permissivos nesse plano. Segundo, nom há acaso nesta suposta permissividade um mandato oculto proveniente do que em psicanálise chamamos o “super ego”? Trata-se dumha verdadeira obrigaçom: “deves gozar!”. Impom-se o goze, porque do contrário sentimo-nos culpáveis. É como umha moral kantiana à inversa. Noutros tempos a obrigaçom moral era levar umha vida “decente”. Se atraiçoavas à tua esposa, sentias-te culpável por buscar o prazer. Agora trata-se do contrário, se nom buscar o prazer, se nom estás disposto a gozar, sentes-te culpável. E nom estou a falar dumha hipótese abstracta. Encontro-me todo o tempo com psicanalistas que me dim que essa é a razom pola qual a gente acude à consulta. Sentem-se culpáveis de nom gozar o suficiente. O grande paradoxo é que o dever dos nossos dias nom impom a obediência e o sacrifício, senom mais bem o goze a boa vida. E quiçá se trate dum mandato muito mais cruel. Provavelmente o discurso psicanalítico é o único que hoje propom a máxima: “gozar nom é obrigatório, está-te permitido nom gozar”. O paradoxo da sociedade permissiva é que nos regula como nunca antes. Eu nom confio nessa ideia liberal segundo a qual o Estado foi superado polo mercado, polas grandes companhias. Nunca antes o aparelho estatal foi mais forte nem tivo um controlo mais absoluto sobre a sua própria populaçom que o dos EUA hoje. Nom gido que sejam tam mau como o estalinismo, senom que dispom de novas tecnologias. Sabe qual era o problema do estalinismo? Aplicava um terror cego porque o grande trauma dos dirigentes era que nom sabiam o que se estava a passar, nom podiam controlar todo. De aí a demanda por encontrar traidores e fazer purgas todo o tempo. Achavam-se em panico permanente; nos anos 1930 encontravam-se em meio do caos total e por isso aplicavam o terror arbitrário. Nom há necessidade de algo assim nos EUA, porque sabem o que está a passar. Encontro um pouco ridículo todo esse discurso sobre a desapariçom do Estado. Desde logo que desaparecem alguns serviços, como o de saúde por exemplo, mas o aparelho repressivo, a inteligência e a polícia som mais fortes que nunca.