Na madrugada do 27 Setembro de 2010, quatro membros dum piquete éramos detidos nas ruas de Lugo. Várias dúzias de pessoas percorriam o centro da cidade nas primeiras horas da jornada de greve geral nacional contra a primeira fase da vaga de curtes que ainda padecemos. Consignas contra as medidas antisociais, pintadas em bancos e cadeias comerciais, panfletos e cartazes a espalhar as razons da mobilizaçom. Esse era o trabalho dum grupo bastante numeroso de independentistas e anticapitalistas cercado de súpeto por várias patrulhas da polícia espanhola. Sem mediar palavra nem pedir identificaçom, vários dos agressores saírom às pressas dos seus carros, porra em mao, e abalançárom-se polas costas sobre dous de nós, apesar de irmos caminhando e nom tentarmos fuga ou reacçom nenhuma. Em poucos segundos estávamos esmagados, com os braços retortos, algemados, com a cara contra o chao, e recebendo insultos e algumha que outra pancada. Um companheiro e umha companheira que se preocupárom polos seus, e, de maneira valente e solidária, rejeitárom fugir para recriminar aos agentes a sua agressom gratuíta, fôrom detidas também para passar com nós a noite nos calabouços.

Mais dum lustro depois, em Outubro e Novembro de 2017, sentamos no banco dos acusados no Julgado do Penal nº 2 de Lugo e expugemos, grosso modo, a versom dos feitos que desenvolvêmos nas linhas anteriores. Vários dos agressores e os seus cúmplices relatárom, por seu turno, a sua própria visom dos acontecimentos, defendendo que tiveram que deter pola força militantes que se arrepunham violentamente, ante o requerimento de ser identificados, com pontapés e empurrons; ao transcorrerem tantos anos do incidente, vários deles reconhecêrom sinceramente nom recordar com exactitude os acontecimentos e os protagonistas concretos; um dos agentes supostamente ferido na mao pola nossa suposta agressom, que desfrutará agora umha substanciosa indemnizaçom, nem apareceu nem declarou em nenhuma das duas sessons do juízo.

Como o leitor ou leitora supom, a palavra dos activistas nom valeu absolutamente nada. Fomos desouvidos, o tribunal considera a nossa explicaçom contraditória e incongruente, tam contraditória e incongruente como a das testemunhas da defesa ; o juiz dá a razom aos agressores: estes -afirma o texto da sentença- recorrêrom a um uso proporcionado da força para deter-nos e respostar a umha conduta incontrolada e agressiva. É por isto que as quatro pessoas condenadas, anteriormente espancadas, insultadas e encerradas no calabouços, teremos que reunir agora umha elevada soma para compensar os servidores da orde : devemos pagar ao Estado e à polícia supostamente lesionada mais de 3000 euros em conceito de multa e responsabilidade civil, nalgum caso baixo ameaça de pena substitutiva de prisom.

Como o leitor e leitora suporá também, os representantes do Estado, sem excepçom, utilizárom o idioma espanhol na vista oral, e os e as activistas, a língua própria do país; como é costumeiro, algum dos condenados pediu no julgado que a sentença lhe fosse entregada em galego, e como é costumeiro também, o julgado negou-no: amparando-se no Artigo 231 da Lei Orgánica do Poder Judicial, os mais dos juízes espanhóis na Galiza consideram que o nosso dever de conhecer o castelhano se sobrepom à Carta europeia das línguas regionais e minoritárias, e obviamente a denúncias como as que a Mesa pola Normalizaçom formulava nestes dias.

Até aqui os feitos, com a máxima veracidade e rigor da que somos capazes. E contra o uso comum na esquerda e nos movimentos contestatários -agudizado desde a extensom das redes sociais e a ansiedade por fazer-se ouvir na balbúrdia- nom pretendemos trazer aqui nem um relato dramatizador nem a ensaiar nenhum tipo de exagero sensibleiro. O que aconteceu foi um abuso -manifestado em distintas fases-, mas apenas um dos milheiros de abusos aos que o Reino de Espanha nos tem afeito; um desses abusos menores que palidecem diante das tropelias arrepiantes cometidas polos servidores do Estado em tribunais, calabouços, centros de internamento de estrangeiros e módulos penitenciários. Só umha mínima mostra do que estám dispostos a fazer, e do que farám sem duvidar quando a ocasiom lho permitir.

Da mesma maneira, tampouco imos seguir o argumentário da esquerda em busca de compreensom : nom, nom cremos que o apoio político se ganhe desde o vitimismo nem desde o retrato de idealistas coitados, sós ante o perigo e arrapanhando com resignaçom todos os golpes; tampouco pensamos que a disposiçom dumha pessoa a lhe romperem a cara sem respostar, como hoje dita a moda do politicamente correcto, seja condiçom sine qua non para merecer apoio solidário; e igualmente, nom achamos que a autodefesa frente umha agressom reste razons nem legitimidade moral; nom, nom luitamos para merecer comiseraçom, senom apoio; e este só se consegue desde a claridade e a firmeza no dizer e no fazer. Por isso nom imos recorrer ao relato do grupo de ingénuos que pensavam exercer os seus direitos confiando em certa laxitude legal que reina nas greves gerais, e que de súpeto topárom com umha quadrilha de polícias violentos que os golpeárom selvagemente sem motivo. Os direitos e as liberdades desfrutam-se neste Regime em relaçom proporcional ao grau de adesom ao poder, e por isso, qualquer questionamento autêntico, nom declarativo, supom adentrar-se irremisivelmente numha espécie de limbo de direitos suspendidos que multiplica a nossa vulnerabilidade. Éramos cientes daquela como somos cientes hoje, e por isso nom nos lamentamos. Trata-se, simplesmente, do terreno de jogo no que toca livrar batalha.

Que nos podem entom transmitir logo acontecimentos como estes, se nom queremos limitar-nos a laiar-nos e a engrossar umha inútil lista de agrávios? Cremos que, na medida em que dam prova do modo de actuar do nosso inimigo histórico, podem ajudar-nos a conhecer o terreno que transitamos.

Naquela noite, os representantes do poder, na sua obriga de manter a orde com a maior proporcionalidade (por utilizarmos a linguagem asséptica da que tanto gostam) bem puidérom decidir identificar-nos pola rua: abrir-nos umha causa, chamar-nos a declarar passados uns dias aos julgados, e carregar-nos com pesadas sançons -dessas que se apoiam no caixom de xastre de ‘desordes públicas’; de feito, utilizando apenas o paradigma da repressom surda e higiénica dos Estados policiais do século XXI, os danos que causam as multas em economias precárias dissuadem muita gente de continuar no compromisso. Do mesmo modo, e depois de exibir em vistas orais e papeis carimbados a superioridade notória do espanhol sobre a língua do país, os que mandam poderiam conceder graciosamente o direito a recebermos umha sentença seródia em galego, demonstrando que mesmo nós, a minoria reivindicativa dos indígenas, temos concedidas reservas se estamos dispostos a passar por pequenos trámites burocráticos.

Mas nom foi assim, porque no Reino de Espanha quase nunca é assim ; a razom é que nom aturamos um poder, digamo-lo por estas palavras, pragmático e realista, homologável aos seus sócios democratas formais da Europa avançada: no canto de identificaçom, agressom automática; no canto de diálogo, insulto gratuito; no canto de retençom, detençom ; no canto de citaçom, calabouço; no canto de juízo rápido, sete anos de espera; e, sobre umha condena falta de rigor, injusta, e dura de pagar para economias modestas, a aldragem deliberada de negar-se a respeitar o nosso idioma e confirmar a estrangeiria na própria Terra.

Como a psicologia nos tem ensinado, por trás da agressividade e da violência excedente agocha-se sempre o medo; o poder espanhol, baseado numha identidade nacional questionada, temerosa, aprensiva, foi e é por isso um poder proclive à violência; antes preocupado por exibir-se que por solventar qualquer conflito, interpreta qualquer pontualizaçom como desafio, qualquer sugestom como falta de respeito, e qualquer reto popular organizado como declaraçom de guerra. É por isso que, como os abusons de livro, ante as mostras de fraqueza nom se relaxa, senom que se incha e redobla a sua pressom, as exigências da sua tirania. Só se pode compreender o trato histórico de Espanha a Galiza levando em conta o auto-encolhimento que praticou parte do nosso povo, nomeadamente as elites acomplexadas.

Em pequenos casos como este, por intranscendentes que semelhem, podemos ler cuidadosamente a psicologia que anima os nossos opressores: a psicologia do matom. Qualquer tentativa de calmá-lo fazendo exibiçom de febleza e doçura, vai-no empoleirar na sua impunidade; e qualquer pretensom de fazer avançar a causa da Galiza sem colocar num primeiro plano as dinámicas colectivas planificadas e organizadas, com disposiçom moral a um percurso exigente, ficará no terreno da pura palavrada. Teremos direitos quando, com toda a tenacidade e atençom que a tarefa exige, estejamos realmente decididos a arrancar-lhos.