Por Isaac Lourido /
(Notas a um livro de Elias Torres Feijó e Roberto Samartim) Ninguém poderá rebater que a língua foi historicamente, e continua a ser na atualidade, o principal elemento aglutinador de energias ativistas para a construçom nacional. Parece claro também que a nossa particular questione della lingua, à volta de modelos linguísticos e padrons ortográficos, centra um espaço vasto de debates e confrontos, sobretudo entre elites intelectuais e académicas. No entanto, poucas vezes o conhecimento produzido nestes âmbitos fortemente institucionalizados se desviou da erudição filológica ou da produção de materiais focados para o utilitarismo prático ou para divulgação simplificada entre públicos alargados.
A tentativa de ultrapassar os muros da universidade com um conhecimento diferente poderia ser umha das primeiras qualidades do livro Sobre conflito linguístico e planificação cultural na Galiza contemporânea, escrito por Elias J. Torres Feijó e Roberto Samartim e publicado recentemente pola Através Editora. Instalados num paradigma sociológico e sistémico (o próprio da Rede Galabra a que ambos pertencem, muito influído polo pensamento de Pierre Bourdieu e ainda mais pola teoria dos polissistemas de Itamar Even-Zohar), transparece nesta obra umha conceçom clara, e lúcida, do que, grosso modo, poderíamos denominar o funcionamento social.
Sem cedências perante essencialismos ou determinismos históricos, mas também distanciada da sociologia materialista, a análise de Torres Feijó e Samartim configura-se à volta de grupos e redes que se constituem, se oponhem e mudam, de ideias e repertórios elaborados por esses mesmos grupos, de programas socializados com maior ou menor sucesso, de desiguais legitimidades e capacidades para a intervençom social, de conflitos que produzem centros e periferias em tensom… Quer dizer, conjuntos de hipóteses, análises e dados que explicam o dinamismo histórico (de finais do século XIX até a atualidade). Ou também: explicaçons densas e sofisticadas para a compreensom de realidades complexas.
Os cinco artigos de Torres Feijó, relativamente permeáveis ao género ensaístico, estudam de maneira preferencial as relaçons históricas e presentes entre a Galiza e Portugal, fundamentalmente no que di respeito a contactos entre elites culturais, a benefícios (sempre percebidos como insuficientes) que esse relacionamento pode render para o incremento da soberania cultural/política galega ou à diferente conveniência de umhas ou outras estratégias na atualidade. Por contraste com outras aproximaçons ao mesmo assunto, a análise do carismático professor da USC destaca por um conhecimento minucioso de práticas e experiências concretas, e polas consequentes doses de realismo. Dois dos seus artigos, contudo, debruçam-se sobre as caraterísticas do conflito linguístico, sobre o papel da língua na construçom nacional galega ou sobre as estratégias de legitimaçom e coesom social representadas em dois momentos históricos diferentes: o franquismo e o período recente, desde 2004.
É precisamente no período tardo-franquista onde ponhem o seu foco os cinco contributos de Roberto Samartim. Com base num rigoroso trabalho empírico e relacional, radiografam com extrema precisom os conflitos entre grupos, instituiçons (Galaxia, RAG, ILG…) e programas de intervençom, assim como as tensons entre campo cultural e campo do poder que explicam o reconhecimento institucional conseguido por umhas opçons e a discriminaçom de outras. Tanto nos trabalhos em que aborda a configuraçom do modelo de língua quanto naquele em que estuda o Dia das Letras, a perspetiva do professor da UDC desborda a simples descriçom histórica e constitui-se numha lúcida referência para compreender o rumo da cultura galega atual. Umha perspetiva que tem um enquadramento mais alargado no seu também recente livro Mudança política e sistemas culturais em transiçom (Laiovento, 2017) e que para o conflito linguístico encontra um bom complemento nas obras de Mário Herrero Valeiro.
A natureza mormente académica do livro e o seu caráter compilatório provocam que nom encontremos propostas claras de planificaçom linguística e cultural, além do posicionamento reintegracionista assumido polos autores. Há nos trabalhos de Torres Feijó, no entanto, algumhas ideias que parecem tracejar um conjunto de possibilidades relativamente inéditas. Desse conjunto podemos destacar um modelo de normalizaçom que relativiza a importância do uso efetivo da língua e que dá mais importância ao apreço e valorizaçom enquanto elemento patrimonial e identiário, junto com outros materiais, numha estratégia que pretende oferecer maiores possibilidades de adesom às geraçons mais novas.
Porém, nessa e noutras propostas encontramos umha certa indefiniçom conceitual, e por extensom ideológica, que nos impede concretizar a agência, o objeto e objetivo desse eventual rumo planificador. Se de certa maneira a exigência da iniciativa está orientada para a institucionalidade oficial e as elites galeguistas, o objetivo recorrentemente enunciado como “melhorar a qualidade de vida das pessoas” corre o perigo de umha fácil apropriaçom por setores nunca devotados a umha transformaçom social realmente antagonista. Fica a mesma sensaçom após verificar o uso sistemático de umha terminologia também relativamente difusa (ideias, materiais, elementos, instrumentos…) para a qual nem sempre conseguimos encontrar referentes tangíveis no campo da açom sociocultural.