Por Luís Casado (Carta Maior) /
Ante o alcanço planetário que está a alcançar a extrema direita no Brasil, reproduzimos interessante análise de Luís Casado: o desarraigo da esquerda como um dos elementos explicativos do auge neofascista.
Há uma opção dentro da literatura política que leva direto às pedras preciosas. Em rigor, as semipreciosas, mas que podem fazer uma fortuna. Basta explorar as galerias que conduzem a uma via muito explorada, mas não esgotada: a condenação da esquerda.
O amplo avanço alcançado por Bolsonaro no primeiro turno da eleição presidencial brasileira deu um sinal de partida para um plano de governo ao estilo “vale tudo”. Em meio a um combate cujo resultado terá ecos planetários, um enorme leque de gurus, de divde diversas linhas distintas, se precipitou para lapidar a esquerda com urgência que não deu tempo de um eventual Jesus advertir que a primeira pedra deveria ser lançada por um herói livre de todo pecado.
Herói no seu sentido etimológico, claro. Esse sentido que é usado por Platão em seu Crátilo: “a raça heroica é a raça de oradores e sofistas”. Ou talvez o sentido que afirma possível que a palavra grega %u123ρως (heros = herói) venha da raiz indoeuropeia (proteger), que também derivou em outros verbetes, como “servo” e “servil”, através do latim. Devido à façanha dos heróis aos que faço alusão, não me surpreenderia. Fernando Haddad e o Partido dos Trabalhadores (PT), que enfrentam a dura missão de impedir a chegada do neofascismo ao poder em Brasília, são condenados, antes do segundo turno, por fariseus ansiosos em jogar a culpa no próximo.
Ninguém é capaz de precisar o que se entende hoje por “esquerda”. Desse modo, há quem reprove Fernando Henrique Cardoso e sua neutralidade na disputa Haddad-Bolsonaro, dando a ele um lugar dentro da esquerda que o próprio ex-presidente se recusaria a ocupar.
Para não deixar espaço à ambiguidade, costumo recordar que a noção de “esquerda” nasceu nos primeiros meses da Revolução Francesa, e foi designada por aqueles que sustentavam o discurso de que nada nem ninguém poderia se situar por cima da vontade do povoo soberano.
Nos últimos dias, recebi uma entrevista do renomado político progressista italiano Andrea Ranieri, cujas reflexões a propósito da esquerda são apresentadas com uma espécie de epígrafe:
“Uma esquerda incapaz de compreender a mudança da sociedade (…); o fracasso da ilusão de que bastaria convocar os decepcionados com a esquerda para reconstruir uma (…); a ideia que os ricos resolverão os problemas dos pobres (…)”.
Quase tudo está dito, exceto o fato de que – como costuma acontecer – há quem escape da autoacusação que tão exaustiva e eloquentemente apresenta Ranieri. “Todos são culpados” seria uma fórmula que consagra a impunidade: si todos são (somos) culpados, ninguém é culpado.
Ao se referir às últimas eleições parlamentares italianas, que permitiram a chegada ao poder de uma outrora improvável coalizão que integra neofascistas e a autodenominada “associação libre de cidadãos” do Movimento Cinco Estrelas, Ranieri precisa:
“O resultado destas eleições confirmou o fim da esquerda na Itália, ao menos como a conhecemos até agora. Ficaram em evidência os limites de uma elaboração político-cultural totalmente inadequada e incapaz de ler as novas dinâmicas que estavam se abrindo, e de modo dramático, a autorreferencialidade da esquerda, o desejo desesperado de se auto reproduzir, sem fazer as contas com a mudança,.
Ranieri considera como esquerda partidos como o Liberi e Uguali (“livres e iguais”), uma coleção eclética e multicolorida de remendos que são fruto da cisão de antigas cisões de grupos já divididos. Ou, casos como o do Potere al Popolo (“Poder ao Povo”), cujos membros o descrevem como uma organização “social e política, antiliberal e anticapitalista, comunista, socialista, ecologista, feminista, secular, pacifista, libertária, sulista e de esquerda”. Só falta se declarar LGBTIQAP.
Ranieri afirma que não considera o Partido Democrático como esquerda, e sim como um despojo da aliança entre os partidos Socialista, Comunista e Democrata Cristão italianos (o chamado “compromisso histórico”, de Enrico Berlinguer) que, junto com elementos de sensibilidade sócio liberal e meio ambiental, constituem sua plataforma eleitoral. É o partido levou o país a adotar o neoliberalismo ao estilo europeu. Um neoliberalismo inscrito na Constituição imposta na União Europeia, apesar da rejeição por parte dos franceses e holandeses em seus referendos do ano de 2005.
Se o Partido Democrático – que foi governo com Mateo Renzi e obteve 40% nas eleições retrasadas, para depois cair a 18% após sua crise – não é a esquerda, é possível entender a ira de Ranieri, visto que o que ele considera esquerda – Liberi e Uguali e Potere al Popolo – obtiveram 3% e 2% respectivamente.
Os partidos políticos, a fragilidade de suas estruturas e sua forte tendência a desaparecer estão diretamente relacionados com seu carácter hidropônico: não têm raízes na estrutura social, ou as perderam. Não são portadores dos interesses objetivos de nenhum setor social significativo e sua reflexão programática se resume, como diz Ranieri, “à ideia de que os ricos resolverão os problemas dos pobres”.
O presidente francês, Emmanuel Macron, defende abertamente essa posição: acabou com o imposto sobre as fortunas, porque “devemos dar dinheiro aos ricos para que invistam mais, na esperança de um lucro maior”, e de quebra, como resultado mágico, gerar alguns empregos. Sob outros céus, o progressismo chileno defende que a melhor distribuição dos recursos se dá através do mercado. Nesse caso, mercado é sinônimo de “comunidade financeira”, grandes capitais, privilegiados e poderosos.
Deixar para trás as ruínas e os escombros de uma esquerda incapaz exige um esforço de reflexão para o qual Ranieri contribui com algumas ideias. Para começar, ele sugere revisar conceitos, rediscutir expressões como “progresso”, “governabilidade” e “reformismo”.
O “progresso” que declina no “progressismo” se revela um perigo fatal para a sobrevivência da espécie humana. O “progresso”, diz Ranieri, é um íncubo. Bastaria que o progresso do automóvel privado chegasse aos bilhões de chineses e indianos que ainda não os têm para se sobrecarregar definitivamente o planeta. Todos temos telefones “inteligentes”, graças aos quais destruímos as relações humanas cada dia mais. Ser “progressista” não é necessariamente uma garantia de algo positivo, e pode nos identificar progressivamente com a tumba coletiva que receberá a Humanidade toda.
A “governabilidade” é outra estafa. O científico francês Henri Laborit havia abordado o tema em seu libro “Elogio da fuga”: “as sociedades liberais conseguiram convencer o indivíduo de que a liberdade se encontra na obediência às regras de hierarquia do momento e à institucionalização das regras convenientes para a elevação dessas hierarquias”.
A verdade, segundo Laborit, é que nos submetemos a uma dominação que não quer dizer seu nome, e somos servis demais para desafiar as desigualdades. E não sabemos nos livrar dessa submissão.
O “reformismo”, oposto ao radicalismo – condenado como a fórmula do tudo ou nada –, já mostrou até onde pode chegar. Passo a passo, como diz a canção, defendendo “aquilo que pudemos avançar”, foi se acomodando ao permitido, sem entender o que o permitido é a conservação do status quo. Desse modo, os revolucionários se tornam conservadores, e passam a se opor a quem quiser fazer algo diferente do autorizado.
Graças a outra velha reflexão, de mais de um século, sabemos que setores da classe média cuja única aspiração é ascender à classe média alta, sempre se colocarão do lado dos poderosos e serão inimigos jurados dos miseráveis. “Reformismo” é o que praticou Gerhardt Schröeder para aniquilar a legislação trabalhista na Alemanha. E Tony Blair, para debilitar definitivamente o sindicalismo inglês. No Chile, é a prática dos herdeiros da ditadura, essa turma chamada Concertação, que tem medo da mudança que vem da voz dos explorados.
Ranieri tem razão: “os setores mais radicais estão indo para outro lado”. Para onde?
Não se vão. Ficam. Na defesa dos interesses das “amplas maiorias”, como gostava de dizer Salvador Allende. A defesa do povo, palavra tão pequena e tão desgastada.
Olhando aquilo que tem mudado, percebemos claramente o que NÃO mudou: a exploração do povo por parte de um punhado de privilegiados, que acumulam o produto do trabalho de todos. O rumo não mudou, nem a voracidade dos possuidores.
Ao chegar a este ponto, como não recordar os versos do poeta espanhol Miguel Hernández, que morreu combatendo o mundo como estava, para transformá-lo num mundo como deveria ser?
Sangue que não se transborda,
juventude que não se atreve,
nem é sangre nem é juventude,
nem reluzem nem florescem.
Corpos que nascem vencidos,
vencidos e cinzentos morrem:
vêm com a idade de um século,
e já são velhos quando vêm.
O neofascismo não passará. Terá que enfrentar aqueles que venceram uma e outra vez ao largo da História.