Por Brais Loureiro /
Na lembrança estám as instituiçons caritativas tradicionais onde as mulheres dos homens poderosos, numha perfeita divisom do trabalho moral, faziam um trabalho de lavagem de cara onde davam com umha mao o que os seus homens tiravam com a outra do corpo dos dominados. Longe daquilo, na actualidade o desmantelamento da viveza das luitas políticas e do Estado do Bem-Estar, última ficha do efeito dominó da queda do muro de Berlim, vem acompanhada da inflaçom de siglas de ONG. Enfrentadas com a militáncia no mercado do compromisso e a ética, fôrom sempre alvo da análise política.
Que é umha ONG?
Qualquer intento de esboçar umha definiçom do que é umha ONG resulta problemático pola própria indefiniçom da denominaçom e polas diversas singularidades -às vezes contrapostas- que cabem nela. Junto à suposta independência governamental, é fundamental ressaltar o carácter nom lucrativo (no mundo anglo-saxom, o apelativo «non profit organization» em ocasions utiliza-se como um equivalente), que o distingue doutras organizaçons que nascem da iniciativa privada, como as empresas, cuja motivaçom é a obtençom de benefícios económicos. A falta de afám de lucro, unida ao facto de que nom se arrisque capital próprio -senom o dos doantes-, leva a alguns a sugerir, em tom irónico, que as ONG puderam ser vistas como empresas que nom assumem riscos ou que, polo menos, os transferem a quem pretendem ajudar com as suas actuaçons.
A progressiva implantaçom social nos últimos anos, das ONG, e a sua crescente visibilidade na opiniom pública, nom pode desvincular-se do fenómeno da paulatina consolidaçom na nossa sociedade do que é chamado o Terceiro Sector. Como no caso das ONG, também resulta difícil improvisar umha definiçom do mesmo. Embora haja quem o identifiquem com o que denominam «sector voluntário», de facto o habitual é defini-lo em termos de exclusom: em efeito, trata-se dum sector que nom pertence à esfera do público nem depende das administraçons públicas, do que se deduze que nasce da iniciativa privada; e trata-se dum sector nom lucrativo («non-profit motivated»), do que se infere que o carácter voluntarista é -a pesar de que a significativa profissionalizaçom que está afectando a numerosas organizaçons pudera desmenti-lo- um elemento constitutivo.
A crise do Estado do Bem-Estar
As razons que explicam a eclosom das ONG seriam semelhantes às que dariam conta da extensom do Terceiro Sector em geral. Salvando as singularidades, nom pode chegar-se a entender o seu «boom» sem situar o facto -tal como se adiantou- no marco da crise do Estado do Bem-Estar (um construto que é à vez artifício e conquista social), que se manifesta na renúncia por parte deste a garantir o cumprimento das responsabilidades sociais que tinha encomendadas e que lhe proporcionavam a sua legitimidade -deixando à populaçom a mercê das leis de mercado- e, no caso concreto do Terceiro Mundo, no marco dumha simples desestatalizaçom, com a conseguinte necessidade de buscar alternativas que cubram o vazio deixado.
Muito se escreveu acerca da natureza da crise do Estado do Bem-Estar. Embora as mais das vezes é explicada, do pensamento dominante, em termos fiscais e produtivistas (repite-se que nom podem atender-se uns custos sociais que se julgam desmedidos sem pôr em perigo a economia produtiva), também o é em termos ideológicos e de legitimaçom política, advogando a conveniência do «Estado mínimo». Para certos autores, o problema radica em que o próprio Estado em boa medida viu-se sobrepassado polas expectativas e demandas que a sua própria acçom gerou. Outros, à sua vez, nom podem deixar de vincular a crise do Estado do Bem-Estar a toda umha problemática mais larga que se inscreve na esfera do que se dou em chamar a globalizaçom, que converte em cada vez mais irrelevante o papel dum Estado que cede a sua soberania: embora a lógica do capital precise ampliar os limites do nacional e abarcar o conjunto do espaço mundial para a reproduçom do sistema, porém é incapaz de superar a contradiçom entre a gestom dum espaço económico mundializado e a sua gestom política e social.
O contexto no que aparecem as ONG ou, polo menos, no que emergem como fenómeno social e mediático, corresponde, assim pois, ao dum presente caracterizado pola globalizaçom, pola desregularizaçom da economia (o livre mercado aparece como única referência), polo ascenso das desigualdades até um ponto nunca visto em épocas históricas anteriores e polas problemáticas emergentes (revoluçom tecnológica, meio ambiente, questons de género…) e as novas demandas sociais que surgem e que exigem soluçom.
Criadas para conter o mal-estar
Por outra parte, nom pode esquecer-se que as ONG nom empeçárom a ter o protagonismo internacional com o que contam hoje em dia até o momento no que o Banco Mundial decidiu convocá-las, em 1982, para estudar o papel que deveriam desempenhar no contexto da política neoliberal que se ia aplicar, a escala global, nos anos seguintes e que afectaria à maior parte dos países. Evidentemente, nom som razons humanitárias ou de índole solidária as que empurram ao Banco Mundial ou a outras instituiçons multilaterais políticas ou financeiras, assim como a governos nacionais, a promover e a dotar de recursos às ONG, senom mais bem a consideraçom de que estas som um instrumento adequado para desenvolver um labor assistencial que sirva para amortiguar o mal-estar social da populaçom prejudicada pola implantaçom daquelas directrizes económicas. A eficácia supostamente contrastada destas organizaçons em mobilizar recursos com rapidez e chegar a sectores da populaçom inacessíveis para o Estado, o alto índice de motivaçom do pessoal que trabalha nelas, unida ao custo reduzido das suas actividades e o elevado grau de integraçom das comunidades nas que desenvolvem o seu labor, reafirmariam a impressom de que som particularmente aptas para estes mesteres e, especialmente, para canalizar a ajuda de emergência.
Em tal sentido, ainda a pesar dos recortes paulatinos nos gastos sociais nas duas últimas décadas, paradoxalmente aumentou o número de ONG e as subvençons que recebem, assim como a sua influência social, brandindo uns e outros o argumento que se presume incontestável -embora esteja por demonstrar- das ventagens comparativas daquelas em relaçom ao Estado.
Em contra dessa ideia dominante, nom existe nengumha certeza de que a maioria das ONG sejam mais efectivas que o sector público, nem sequer, embora poda resultar chocante, na reduçom de custos. Por outra parte, em qualquer caso o Estado é por princípio -polo menos na teoria- responsável perante os seus financiadores, que som quem em última instáncia determinam o tipo de intervençom. Esta dependência aumenta a sua vulnerabilidade, chegando a gerar um certo tipo de autocensura que as leva a obviar determinadas crítica políticas.
É preciso destacar também as ambigüidades e contradiçons do labor assistencial, que é complementário dos programas de ajuste estrutural. As ONG e a cooperaçom internacional em geral contribuem à reproduçom da ordem capitalista. Interpretam o apoio que recebem de governos e organismos internacionais como um intento de conter o conflito social: suministrando a umha parte da populaçom que recebe as consequências negativas do ajuste umha porçom dos recursos substraídos (as ONG nom achegam novos serviços, senom que no melhor dos casos reponhem-nos), pretenderia-se amortiguar eventuais convulsons sociais e diminuir o potencial daqueles movimentos que desafiem o sistema.
A modo de corolário, a maioria das ONG –em palavras de James Petras- nom seriam mais que «auxiliares de governos», que serviriam «para a despolitizaçom da luita e aplicar soluçons superficiais a grupos limitados, todo isso a costa de possíveis transformaçons sociais». Há que relacionar o apogeu das ONG com o fracasso e descrédito da acçom política. A obra caritativa substituiu o labor político do Estado e o humanitário acarreta o risco de acabar prescindindo da política, de ocupar o seu lugar. Na realidade, o discurso dos valores permite desviar a atençom das causas profundas da pobreza e despolitizar os problemas assim como as soluçons. O humanitarismo, mais que planejar umha «ética da justiça», limita-se a pôr em prática umha «ética da compaixom» que penso que nom deixa de ser umha ética de mínimos dado que parece que já nom nos está permitido imaginar a ideia dumha eventual queda do capitalismo nem questionar a homogeneidade do sistema.