Por José Manuel Lopes Gomes /
Poucas celebraçons de alcanço mais universal que o solstício de Verao, cuja existência está testemunhada em inúmeras civilizaçons de todas as latitudes ; e poucas celebraçons, complementariamente, que representem com maior riqueza a singularidade cultural galega. O lume novo da nossa Terra é a versom autóctone dum festejo do solstício próprio de toda a Europa atlántica. Em tempos de revoluçom tecnológica e absoluto desprezo da natureza, o lume novo pervive com umha força surpreendente.
A Galiza vive esta noite umha e muitas versons da festa do solstício : o comunitário e tradicional, onde a vizinhança da aldeia ou da paróquia celebra o convívio arredor do lume e umha grelha de sardinhas ; o associativo, no que colectivos de luita e reivindicaçom chamam a um lazer distinto e aproveitam para angariar fundos para as suas actividades ; ou o massificado e ‘modernizado’, com as cacharelas que inçam as praias da Corunha as toneladas de lixo que se amoream nos confins do espaço urbano. Seja como for, só tradiçons com um arraigo tam extraordinário na entranha dum povo logram sobreviver milénios e enormes mudanças culturais.
Cristianizada como Sam Joám, a Galiza e o comum da Europa agrária celebravam a êxtase da vida na jornada mais longa do ano, a anunciar a fartura produtiva do Verao, e a um tempo, o debalar que já se intui em todo clímax : a preparaçom para futuros dias mais curtos, progressivamente mais frios, que dificultavam a sobrevivência e exigiam o seguimento estrito de certas pautas de vida e de consumo. No Sam Joám tradicional revela-se todo esse entramado simbólico tecido polas galegas e galegos arredor do lume, a auga, a vegetaçom, o Mal que assoma e o Bem que o vence.
As cacharelas, cachelas, lumeiradas, lumieiras, fogueiras ou fogaças homeajavam o sol que começa o seu debalo ; tinham (e para alguns ainda tenhem) valor purificador dos maus espíritos e dos riscos associados a um novo ciclo produtivo, sempre cheio de incertidume. E serviam para reforçar todo aquilo associado ao Bem, numha noite em que a sociedade tradicional acreditava em que o Mal se reforçava e saía a fazer todo o dano possível. Eis a associaçom desta noite com o poder dos meigalhos e o mal de olho, e as defesas populares que se erguiam em forma de cifras mágicas, mananciais ou lavagem com as ervas de Sam Joám.
Espaço popular
A celebraçom do Sam Joám também dá ideia da grande importáncia dos lugares do comum para as sociedades agrárias : praças, encruzilhadas, praias, eram o lugar escolhido para o encontro de todo o povo, na clássica funçom antropológica das festas, que limam ou amolecem as tensons larvadas entre a vizinhança durante o ano. Também na Galiza urbana, nomeadamente nos bairros de cultura obreira, as cacharelas tinham um valor especial para afiançar laços solidários. O encontro era colectivo, como totalmente colectiva era a preparaçom do festejo. Muitos destes traços continuam vivos a dia de hoje, ainda que o lazer mercantilizado e oferecido como ‘serviço’ (institucional ou empresarial) ganhasse espaço devagar.
Riqueza comarcal
A pluralidade comarcal galega é tam marcada, que cumpriria um logo texto etnográfico para dar conta das muitas plasmaçons da celebraçom do solstício por bisbarras. Nalgumhas zonas do noroeste, a cabeça dum animal espetado num pau de loureiro presidia a lumieira ; noutras aproveitava-se a borralha da cacharela para rituais curativos, nomeadamente das crianças ; o lume do Sam Joám protegia aliás em muitas zonas as colheitas de centeo ou milho se se acompanhava de cantigas rituais e de lume de lenha verde (daí o nome ‘fumaços’, polo tipo de fumo que soltava).
Lume e auga
E ainda que estamos na festa do sol, a luz e o lume, a auga tinha também um papel de privilégio. O dia 24 era cita obrigada acodir a fontes ou mananciais, especialmente aqueles próximos a certos santuários. A auga e o lume pareciam fundir-se nesse momento que o galego recolhe na expressom tradicional ‘a flor da auga’ : o momento no que o primeiro raio de sol da manhá dá na tona dum rio, e que permitia beneficiar-se dum eflúvio beneficioso que protege dos meigalhos.
Solstício e mundo celta
Quem quiger encaixar as celebraçons específicas galegas no espaço mais amplo do celtismo, pode recorrer às ensinanças da associaçom Durvate, que com toda pontualidade, com motivo de cada celebraçom e rito popular publica no seu web os vencelhos galaicos com toda a faixa atlántica. Lembra a associaçom que a data punha fim aos Maios (Beltaine) e nos encaminhava cara a metade escura do ano (Giamos). Durvate alerta da crescente banalizaçom que está a viver a festa (como todas as outras, privada de significado transcendente e associada ao consumo desmedido de álcol) e chama a conhecer o seu sentido primordial.