Por Jacobe Pintor /
50 anos depois, a controvérsia sobre o significado das revoltas de Maio de 68 segue viva, nom assim o seu legado, dificilmente resgatável das fauces da nova religiom que rende culto ao acontecimento como fato amputado da história, para oferece-lo lustroso e brilhante nos mercados de tendências.
Por um lado, o Paris do Maio de 68 com as suas greves selvagens, ocupaçons de fábricas, a tomada da rua, o estado de sítio, foi sepultado, nom só pola vitória eleitoral de De Gaulle e a repressom selvagem do Estado francês, mas também polos montes de imagens que se tenhem voltado icónicas, referentes da modernidade, símbolos dum mundo novo, mas sempre após a tentativa revolucionária ter fracassado. O relato hegemónico, hoje em crise, vem dizer-nos: lá começou todo e nós estávamos ali para enterrar os fantasmas da segunda guerra mundial, defendendo maior liberdade para os jovens, para as mulheres… O maio do 68 estereotipado pola ideologia reformista, hegemónica até o estalido da crise capitalista, nom passa dumha festa alegre e ingênua, mas que paradoxalmente, num exercício intelectual dumha vaidade superlativa, atribui-se ter propiciado o golpe definitivo aos resquícios do Antigo Regime. Do outro lado da mesma moeda, o pensamento reacionário, responsabiliza o Maio francês como o ponto zero dumha apocalipse que nos sobrevêm. Os filosófos reacionários Luc Ferry e Alain Renaut descrevem Maio de 68 como “o momento essencialmente destruidor das hierarquias, das tradiçons, das normas sociais, do respeito aos símbolos da naçom, precursor do hedonismo e do individualismo das décadas seguintes, do relativismo e do vale-tudo que dilui as fronteiras entre o bem e o mal, da cultura do arrependimento e da autoflagelaçom polos crimes cometidos por França, da existência dos guetos islâmicos…” Mas o pensamento reacionário nom monopoliza o discurso contra o maio de 68, os reacionários passeiam o seu ideário de maos dadas com a velha caste de “guias do povo” que tenhem sequestrada a autonomia da cultura operária sob os muros maciços, hoje som pedras ruinosas, do Partido. Visto da sua perspetiva, maio foi o ponto zero do neoliberalismo, libertando todas as energias e as baixas paixons ao serviço da nova economia. Esta unidade estratégica nom é nova, De Gaulle perguntava-se no 14 de Maio de 68 polas motivaçons da revolta se, os revoltados, já possuíam “jeans, whisky, cabelos compridos, filmes, livros, carros…” Do outro lado, J. Duclos homem de Ordem e de Partido chamava desde a tribuna do PCF a combater os oportunistas de esquerda, que se calhar queriam outra cousa de diferente à vida que De Gaulle lhes atribuía, enquanto o próprio PCF prometia aos jovens operários da Renault a possibilidade de possuir aquelas cousas todas, que tanto assombravam a De Gaulle, se os jovens operários permaneciam fieis aos desígnios do partido. Na verdade, finalmente Duclos e De Gaulle som os verdadeiros protagonistas do Maio de 68, eles sim inaugurárom um tempo novo, um mundo novo construído sobre os fundamentos da “paz social”, no que se envolvêrom sem hesitar muitos autoproclamados líderes da revolta.
Nom é a nossa vontade somar-nos as festas e comemoraçons do 50 aniversário, já ingerimos suficiente comida-lijo envolta em papel de suplemento semanal. Mas sim de restabelecer o Maio de 68 na corrente da história, aquela que liga a Comuna de Paris com a resistência à ocupaçom nazi, a luita pola libertaçom de Argélia com a oposiçom à guerra de Vietnam. Nom por acaso, fórom velhos membros da resistência contra o nazismo quem criárom redes de abastecimento para os revoltados em pleno colapso do Estado, como tem documentado Jaques Baynac no seu ensaio “Maio de 68, a revoluçom da revoluçom”, onde desde a própria experiência testemunha o protagonismo coletivo das gentes do comum.
Mas existe um outro modo de contar maio de 68 além da “revoluçom divertida” consagrada até polos mais repugnantes cans do poder, (procurem o artigo assinado por Blanco Valdés e publicado na Voz sobre o tema). Como em O Bom Povo português referido num artigo anterior do GalizaLivre, a crónica de Maio pode ser contada como o relato dumha morte, mesmo a dum suicídio, assim ocorre no filme Morrer aos trinta anos, de Romain Goupil, um filme documentário que o seu director dedica ao seu companheiro de militáncia, Michel Recanati, nos comités de acçom directa, no partido da Juventude Comunista Revolucionária, e na Liga Comunista, que acabaria por suicidar-se em 1981. “Anne Sylvie, Dominique, Pierre Louis, Michele Recanati, este poderia ser o seu filme”, com esta lista com nomes em branco sobre um fundo negro abre Morrer aos trinta anos, nomes de companheiras e companheiros de militância do próprio Goupil no Maio de 68 que acabárom com a sua vida. Com este início, Morrer aos trinta anos, sabota qualquer espectativa de recorrer a fábula para vender o mito como, por exemplo, si tem feito no filme Sonhadores o cineasta Bernardo Bertolucci, recorrendo à mistificaçom mais desvergonhada de Maio de 68.
Morrer aos 30 anos funciona em vários níveis de leitura que se entrecruzam no fio narrativo. Por um lado é a crónica da revolta em primeira pessoa sob influência do cinema militante, que alcança o seu apogeu na altura de Maio de 68, Goupil esquadrinha através das imagens o conflito geracional encarnado polo seu pai militante do PC e a sua atividade na esquerda extraparlamentar, a luita polo controlo e a direcçom no movimento estudantil, a greve de 13 de Maio que levou a milhons de operários franceses tomar a rua e ocupar as fábricas, a crítica à política contra-revolucionária do PC e a autocrítica às luitas intestinas e sectárias das distintas facçons militantes cindidas das batalhas nas barricadas. Por outro lado, o filme funciona como retrato pessoal de Goupil e os seus amigos através do cinema amador: as aventuras da malta, a boémia e a vadiagem, narradas sob o influxo da Nouvelle Vague, e finalmente está o retrato pessoal de Michel Recanati, encarregado pola JCR da proteçom dos líderes das Panteras Negras na sua visita a França, o seu ascenso à cúpula da JCR, a sua responsabilidade no recrudescimento do combate direto, o seu compromisso no maio de 69 com a decissom da Liga Comunista para empreender a luta armada, os planos para viajar a América Latina para receber adestramento militar, a organizaçom dos violentos combates em Paris no 21 de Junho de 73, que deixam centos de polícias feridos e que desencadeia a ofensiva repressiva do estado francês, com o desmantelamento da organizaçom e a prisom para os líderes da Liga Comunista. Recanati passa entom para a clandestinidade e refugia-se no estrangeiro, posteriormente será feito prisioneiro e traído pola Liga que o converte no responsável da deriva esquerdista do partido. Facto, este último, que vem representar na realidade, umha peça teatral que Jeam Paul Sartre escreveu para fiçom em 1945, “As maos sujas”, onde relata a condena do partido a um militante que executa a um dos seus dirigentes, defensor dumha aliança tática com a burguesia para combater o nazismo, após o próprio partido ter-lhe encomendado a execuçom deste dirigente. A condena da Liga deixa Recanati nu frente aos fantasmas pessoais, suas obsesons, seus transtornos, introduzindo no relato de guerra o retrato íntimo e pessoal do militante da Liga Comunista.
Goupil emprega o material gravado por ele mesmo na altura, manifestaçons contra a guerra de Vietname, assembleias nas faculdades, a vida quotidiana dos militantes, as barricadas em Paris, as entrevistas e as testemunhas, para construir a crónica dum fracasso que levou a Recanati e tantos outros a inverter a máxima da “revoluçom ou morte” para a fórmula “morte ou reformismo”. Hoje os livros de história, de direita a esquerda, só recolhem a segunda das escolhas, agitando triunfalistas a lista dos nomes ilustres da revoluçom que se passárom para o outro lado da barricada, mas fôrom muitos os que, como Recanati, escolhérom a primeira, se nom foi a morte física, o suicídio, como no caso do protagonista de Morrer aos trinta anos, foi o isolamento, a enagenaçom, a drogadiçom e outras formas de morte social que configuram a cara oculta da “paz social” e a má conciência do “estado de bem-estar”. Outros nem tivérom oportunidade de escolha, como os três mortos à maos da polícia de choque nos primeiros enfrentamentos na rua. O filme de Goupil é um retrato brutal, que serve de antídoto às leituras melancólicas e autocomplacentes da rebeliom alegre e juvenil de Maio de 68, e até um exemplo de como o cinema pode virar-se contra o seu próprio autor (Goupil é hoje um renegado que tem virado para posiçons direitistas).
50 anos depois, continuamos a nom perceber muito bem o significado de Maio de 68, mas temos algumha certeza do que aconteceu: “nesta sociedade em que o suicídio progride como sabemos, os especialistas tiveram de reconhecer, com um certo despeito, que em maio de 1968 ele diminuíra quase para zero. Essa primavera alcançou também um belo céu, sem precisamente se ter lançado ao seu assalto, porque alguns carros se incendiaram e a todos os outros faltou gasolina para poluírem. Quando chove, quando sobre Paris pairam falsas nuvens, convém nunca esquecer que isso acontece por culpa do governo. A produçom industrial alienada causa o mau tempo, a revoluçom, o bom”. Deixou escrito Guy Debord antes de tirar a sua própria vida.