Por Jacobe Pintor /
Dizia Francisco Martins, activista do grupo Política Operária, que se Portugal fosse honesta consigo própria, deveria celebrar o 25 de Novembro do 75 em troca do 25 de Abril do 74. Efetivamente o 25 de Novembro, as forças políticas que conformam o (grupo dos nove), desde o reformismo até a extrema direita, com a cumplicidade do sector mais reacionário das forças armadas, conspiram para propiciar o golpe de estado que liquida o processo revolucionário que sucede à queda da ditadura de Salazar presidida por Marcelo Caetano, inaugurando umha nova etapa para Portugal sob o regime de estado liberal e as suas instituiçons de democracia formal que hoje agonizam. Dizia também que umha imagem serve melhor que todos os milhares de documentos que o Partido Comunista de Portugal tem elaborado sobre o processo revolucionário em curso PREC, para entender o fracasso revolucionário em Portugal. Esta imagem, que serve para retratar umha época, bem poderia ser a de Álvaro Cunhal, chefe do PCP, assinando o compromisso de obediência ao novo regime instaurado pola corrente direitista dos militares em troca de conservar a legalidade do partido no novo marco jurídico do Portugal pos-revolucionário, atraiçoando assim as camadas populares portuguesas que a golpe de ocupaçons de terras, fábricas e casas, greves selvagens, autogestom dos serviços públicos, etc. criaram as condiçons precisas para a transformaçom revolucionária mais radical da Europa de pós-guerra. Mas fôrom outras as imagens que servírom para construir umha narrativa dos factos na versom do poder estabelecido, imagens recorrentes e lugares comuns destinados a liquidar da memória colectiva a intensa luita popular e revolucionária em Portugal, e a luita armada contra o imperialismo português além mar, em benefício dumha ficçom que coloca o levantamento militar do 25 de Abril como o facto fundacional dum Estado de direito e liberdades em Portugal.
Mais do que celebrar o 25 de Abril, a nossa proposta é procuramos restaurar da memória essas outras imagens perdidas que componhem um outro retrato de Portugal na altura, e também da luita armada nas suas colónias. Imagens que lhe serviram ao cineasta português Rui Simões em finais de 70 para realizar os dous filmes mais complexos e também mais completos sobre a tentativa revolucionária em Portugal. Rui Simões, seguindo a tradiçom documentalista do cinema militante de 70, tomando como modelo os experimentos de Chris Marker ou Santiago Álvarez entre outros, monta os seus filme misturando imagens de arquivo com gravaçons de rua filmadas no mesmo momento e lugar em que se produze a acçom, tomando assim partido nela, “O filme procura traçar a história entre o 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975, tal como ela foi sentida pela equipa que, ao longo deste processo, foi ao mesmo tempo espectador, ator, participante, mas que, sobretudo, se encontrava totalmente comprometida com o processo revolucionário em curso”, di Simões acerca do seu filme O bom povo português.
No primeiro dos filmes, Deus, Pátria, Autoridade percorre a história moderna de Portugal, desde a instauraçom da república em 1910 até o fracasso revolucionário de 76, seguindo como fio os três dogmas fundacionais do regime fascista português, pronunciados num discurso de Salazar: “Nom discutimos Deus e a virtude. Nom discutimos a Pátria e a Naçom. Nom discutimos a Autoridade e o seu prestígio”. Sob as liçons da montagem dialéctica inaugurada polo cineasta soviético Eisensten, Simões enfrenta um plano a outro que funciona como o seu oposto, ao plano que monstra o luxo e o brilho da aristocracia portuguesa segue-lhe outro de meninos nus deambulando nos bairros de lata, a Assinatura de pacto de governo no palácio segue-lhe a discussom entre operários sobre o modelo de autogestom operária na fábrica… Rui Simões serve-se deste recurso para construir a tese sobre a que levantar o filme, segundo a qual, a história de Portugal nom trata sobre mudanças de regime, senom sobre a luita de classes.
No segundo filme, O bom povo português, seguindo a mesma lógica discursiva, mas centrando-se na revoluçom de Abril e o processo que seguiu, a trama fai-se mais complexa, o filme de tese deixa passo para o filme poético e indagatório, fundem-se a sociologia e a antropologia, as discussons na rua com a análise política, os cantos nas tabernas com os discursos partidistas, a luita urbana com a ocupaçom camponesa, a aterragem em Portugal do embaixador Carduci e os EEUU para preparar a contrarrevoluçom montada a ritmo de Music Hall, Rádio Renascença ocupada polos trabalhadores, Rádio Renascença dinamitada polo governo, a intevençom interrumpida polas forças da reacçom do Capitam Duram Clement na RTP o 25 de Novembro para informar da provocaçom contrarrevolucionária que finaliza com a tv fundida em negro como metáfora do fim do PREC, a imagem de Otelo Saraiva Carvalho derrotado, a ver na tv a Ramalho Eanes vencedor, que encabeçou militarmente o golpe contra o PREC e que posteriormente seria eleito presidente da República, etc. O bom povo português abre o ângulo até o máximo para oferecer umha panorâmica completa do PREC construída através dos sons dos combates na rua, das narraçons dos torturados pola PIDE, dos trabalhos dos camponeses, dos gestos e os rostos dos operários das fábricas, dos guerrilheiros africanos, do cheiro a incenso do fanatismo religioso concentrando-se em Fátima, da eloquência enganosa dos discursos políticos nos estádios, a história épica do povo conduzida e narrada pola voz comprometida do cantor Jose Mario Branco até o desencanto final. Simões recupera para a memória imagens perdidas, imagens significativas como a do nascimento dumha criança com que abre, esperançado, O bom povo português, ou as imagens dum funeral com que se fecha, demolidor, o mesmo filme.