Por P. Fernandes Pastoriça e J. Paços /

A amputaçom da memória institucional galega deita enormes sombras sobre o nosso passado ; esta peja, somada à hegemonia do discurso pinheirista sobre umha “naçom sentimental” (Helena Miguélez), fai impensável imaginar um povo fero, organizado por aristocracias guerreiras, e capaz de afirmar-se ante vizinhos belicosos. Mas na realidade, existiu umha outra Galiza. E ninguém a simboliza melhor que Ordonho II, um monarca que constituiu um núcleo de poder no noroeste peninsular e colocou umha muralha contra o califato cordovês; afamado por brandir a espada nos primeiros momentos do Reino medieval, foi um dos monarcas mais aclamados polos cronistas da época.

O próprio Castelao contrapunha dous espíritos nacionais: “a lírica galego-portuguesa” frente a “épica castelhana”, mas neste ponto estava trabucado; porque ainda que o nosso país produziu sobretodo umha literatura amorosa de grande altura, o Reino da Galiza salientou também nos feitos de armas. Nom por acaso Rui Diaz de Vivar, O Cid,  é, nas fontes árabes “o mais cam de todos os cans galegos”.

O seu nome quer dizer “espada do gigante”, segundo nos lembra Juan Luis Puente López no seu leonesista (e malintencionado, por invisibilizador da Galiza) “Historia de los reyes y reinas de León” No século XI era conhecido como “O guerreador”, e para os árabes era “o tirano Ordonho, rei dos galegos, a quem Deus amaldiçoe”. Nos reinos cristaos fazia-se chamar “Christi belligerum” (combatente de Cristo).

Porém, e contra o que diz o mito castelanista da Reconquista, forjado por Menéndez Pidal e Sánchez Albornoz, nom foi um monarca em permanente desputa contra o mundo mussulmano. Devemos entender que a Gallaecia e a Spania (respectivamente, cristaos e mahometanos) conviviam num espaço geográfico fronteiriço que intercambiava saberes, modas, matrimónios e até populaçons. Existiam mosteiros com documentos árabes, a arquitectura cristá tomava motivos dos monumentos cordoveses, e até alguns monarcas de nosso enfeitavam-se com roupas mussulmanas, que eram signo de distinçom e finura.

Devemos falar de convívio conflituoso entre galaicos e árabes; longas jeiras de paz rotas por enfrentamentos feros, em alianças cambiantes. E isto explica que o rei que nos ocupa nom se formara na Galiza: seu pai, Afonso III, enviou-no a Saragoça, onde se educou com a família mussulmana dos Beni Casi, aliada com os cristaos na sua rivalidade com Córdova.

De volta à Galiza, contrai matrimónio com Elvira Menendes, filha dos dous mais poderosos aristocratas do oeste do Reino: Hermenegildo Guterres e Elvira Gatonis. A eles deve-se a fundaçom do mosteiro de Cela Nova, que antecipa a organizaçom territorial do país em grandes exploraçons agrárias baixo direcçom religiosa.

Poucos reis concitam tanto consenso nas fontes como Ordonho II, merecedor de louvanças repetidas : “actividade incansável, acompanhada de carácter precavido e prudentíssimo na guerra, justo e misericordioso com os súbditos, famoso pola sua honestidade em assuntos de governo“.

Porém, os testemunhos também o descrevem como audaz e ambicioso : ainda em vida do seu pai lançou campanhas bélicas fora da Galiza: em 888 enfrentou-se às tropas basconas de Jaun Zaurun em Astigorriaga ; e já começado o século X, ataca Sevilha e Viseu. Em 912 toma Évora, passando por riba das suas muralhas. Os cronistas da época registárom um sinistro espectáculo: “os cadáveres estavam amoreados os uns sobre os outros, superando a altura dum homem”. Polo medo a Ordonho Adefonsiz, várias cidades árabes do sul peninsular terám que amuralhar-se.

Elites e riquezas.

Seja como for, Ordonho II pareceu gozar do apoio consensuado dos mais poderosos galegos da altura : umha convençom em Lugo, presidida polo bispo Recaredo, reúne a oligarquia, que se pom abertamente ao serviço do novo rei.

Com os saqueios das suas campanhas militares, Ordonho II honra Compostela ; a capital religiosa vê incrementar o seu tesouro. Da sua incursom em Regel, o rei traz dúzias de peças de materiais preciosos e um botim de prisioneiros capturados.

Ordonho II, rei.

Com tais credenciais, Ordonho acede ao trono trás o passamento do seu irmao Garcia em 914. Em Maio começavam as campanhas militares naquela altura, aproveitando as bondades climáticas : e precisamente nesse Verao Ordonho cavalgara cara Medellín (Extremadura) para continuar a afirmar o poder galaico até terras do sul. Submetendo Badalhouce e Mérida, o monarca inicia a política de cobro de tributos às cidades dominadas, habitualmente através de emisários judeus.

Pola vez primeira desde a chegada dos árabes, o Reino da Galiza começa a ser visto com preocupaçom no sul, pois a agressividade de Ordonho nom passa desapercebida. Os “trinta asnos” do caudel Paio (assim chamam as fontes árabes os líderes militares do norte nos séculos VIII e IX) transformarám-se num poderoso exército profissional assente num reino nucleado por Compostela-Leom. Em 917, os mussulmanos estám decididos a desputar os territórios do Douro aos galegos (zona de transiçom escassamente povoada). Neste contexto formam umha poderosa coaliçom militar com árabes e mauritanos que se enfrenta ao Reino da Galiza em San Esteban de Gormaz, na chamada batalha de Castromuro. Alô som derrotados. Pouco depois, e junto com o rei navarro Sancho Garcés, Ordonho II livra o sul de Euskal Herria de presença mussulmana, conquistando praças como Tutera.

Haverá que aguardar até a batalha de Mutónia (num ponto indefinido entre Sória e Segóvia) para ver umha derrota galaica, desta volta a maos de Abd-al-ramám III, fundador do califato de Córdova. À sua estratégia militar deve-se a total desfeita das tropas galaico-navarras em Burgos e Navarra. As crónicas dim que aprisionou e fijo executar até 500 prisioneiros cristaos.

Morte e herança.

Finado em 924, com 53 anos (umha idade provecta para a época, e mais se considerarmos que Ordonho II foi um profissional da guerra), foi soterrado em Leom, cidade que contribuiu para assentar como capital política ; alô fora ungido rei com a presença dos bispos do próprio Leom, Samora, Astorga, Mondonhedo, Compostela, Lugo, Tui, Porto, Lamego, Viseu e Coimbra. Fundador de mosteiros e autor de muitas doaçons repovoadoras, Ordonho II foi o monarca que levou o Reino galego mui além dumha restrita faixa territorial quase cantábrica, para situá-lo como um grande poder do noroeste, frente a frente do califato de Córdova, numha relaçom de mútuo temor e respeito, e apoiando-se na aliança com Navarra. O “senhor da guerra” foi também, portanto, um actor político de enorme magnitude.