Por Ángeles Rodríguez-O SIL (adaptaçom ortográfica do galizalivre) /
Nuns poucos dias, personagens como o Merdeiro, o Urso, os Generais, os Felos, as Pantalhas, os Peliqueiros…voltarám a ocupar a geografia do País, amossando ao mundo as raízes da nossa cultura mais ancestral. Que está por trás de tais rituais imemoriais? Resgatamos entrevista com Emilio Arauxo, filósofo, etnólogo e poeta, e um dos maiores especialistas no Entroido galego..
A gestualidade dos felos, as danças dos boteiros a teatralidade que rodeia o Rei de Covelo…para o escritor Emilio Araúxo (Coles 1946), o Entroido tradicional ourensano emerge como um oásis numha época « que vive umha grande probreza simbólica ». Ele crê que é umha « grande herança », mas com o matiz de se tratar « dumha memória progressiva e de espera, de acolhida, de porvir ». Mália que conhecia esta festa desde neno, compreendeu o seu valor de muito longe da sua terra. Foi namentres se formava em Paris. Lá descobria o livro « A cultura popular na Idade Meia e no Renascimento » de Mijail Bajtin. Nele, o autor russo assinala a existência dumha antiga cultura popular, marcada pola comicidade, que perviviu até hoje através das festas e rituais carnavalescos, com traços senlheiros como o teatro e o jogo. Isso acordou em Araúxo o interesse por explorar o Entroido e, ao seu retorno à Galiza, foi mergulhando nesta festa e, através dela, começou a reviver o mundo da cultura popular. A viagem deste poeta, etnólogo, tradutor, editor e também fotógrafo, polas manifestaçons carnavalescas ourensanas começava nos primórdios dos anos 80. Porém, nom foi até 1987 quando encetou o trabalho do seu arquivo fotográfico. Destaca o Entroido como umha celebraçom « fundamente igualitária » e que, « desde o intre que cria memória, cria tempo, e em jeiras de desamparo, como é malfadadamente a nossa, o Entroido dá ánimo e é umha maneira de resistir ». E entre as referências que Bajtin dá sobre a importáncia do Entroido, Araúxo salienta a de ser « um quadro de leitura essencial para todo o que é a arte em geral, quer literária, quer pictórica ou musical. Por exemplo, Shakespeare ou Cervantes seriam incompreensíveis se nom lhe aplicarmos este quadro de leitura carnavalesco ».
A sua achega a esta festa nom se limita às datas centrais : « tenho umha relaçom de convívio mais extensa, mais ampla com estas aldeias, se calhar noutras jeiras do ano viajo alô e nom só as visito, senom que em ocasions resido alô por temporadas. Entom há um trabalho de campo que sobarda o que é meramente o calendário carnavalesco ». Confessa que foi Xaquín Lorenzo quem lhe descobriu o Carnaval de Vilarinho de Conso, que « para ele era o exemplo mais nídio na Galiza de ritual de festa carnavalesca. Dixo-me de viva voz que era um Entroido onde o ritualismo está muito presente, até o ponto de às vezes, para umha pessoa alheia, é indiscernível situá-lo do lado do profao ou do sagro ». Também fala da sua admiraçom polo Entroido de Covelo (Melom), do que diz « engaiola-me tanto como a leitura ou releitura do capítulo « O grande teatro de Oklahoma » do romance « América » de Franz Kafka. (…)
Como nasce o seu interesse polo Entroido ?
Xorde por acaso através dum mestre meu e filósofo francês, Françoise Regnault, que é especialista no tema de teatro e está muito relacionado com a psicoanálise. Escreveu um livro, « A família das estrugas », no que me revelou Mijail Bajtin.
Nesse texto, Regnault assinala que a obra teatral do grande romancista francês Jean Genet deve ser interpretada dumha forma funda, e será-lo quando se adoptar esse quadro de leitura que é a teoria bajtiana da cultura popular, que tem como cerne essencial a cosmovisom carnavalesca. Esse é o detonante do meu interesse. Foi como se dixéssemos umha espécie de transferência de leitura, quer dizer, que a autoridade desse grande mestre que é Regnault acordou em mim o desejo de explorar esse ámbito. Depois, ao retornar à Galiza, comecei a reviver todo o que é o mundo da cultura popular. Entom vim a correlaçom formidável e bendita entre, por umha banda, a teoria de Regnault e de Bajtin, e o que eu tinha aqui diante de mim como umha grande herança simbólica.
É umha herança que redescobria longe da Galiza e através de autores estrangeiros.
Si, para chegar a isto houvem de passar por mestres, por livros…é curiossíssimo, isto é umha lei que nos vem da filosofia e da poesia alemá, que diz que por vezes ao mais próximo chega-se polo mais arredado. Eu para descobrir mesmamente o que tinha aqui diante dos olhos e que desde cativo levava vendo acotio, pois tivem que passar pola França, por um filósofo francês, e logo por um autor russo. É assombroso, mas é assim.
Também é certo que umha descoberta de fora permite obter umha melhor análise de conjunto…
Si, nom há dúvida de que cumpre essa distáncia, mas nom é umha distáncia meramente topológica, espacial, senom que é umha distáncia que supom um trabalho de leitura. Entom, ao eu falar de herança é nesse sentido, um trabalho de leitura, de reflexom. A noçom de herança eu refiro-a a outro mestre, Jacques Derrida.
Qual é a importáncia que tem para você o Entroido num mundo como o actual ?
Se quigermos dar um diagnóstico do nosso tempo, um dos imediatos iria ser o de que é umha época na que se vive numha grande pobreza simbólica, numha desimbolizaçom. E mesmamente o que topamos no Entroido é umha espécie de reserva do simbolismo, que se vai converter numha herança, numha memória. Mas nom numha memória meramente nostálgica, senom progressiva, mais de futuro, de porvir. Numha memória que, dalgum modo, sem antecipar, quase antecipa, ou alo menos está numha situaçom de acolhida do porvir. Alain Badiou (filósofo, dramaturgo e novelista francês), diz que forma rotunda, e para mim muito clara, que ao perdermos a dimensom simbólica, dalgumha maneira, o corpo das pessoas vira numha espécie de refugalho. Eu diria que um dos elementos que cumpre pôr em valor do Entroido é esta forma que tem de resimbolizar e que é um deserto de símbolo e de tempo, porque a nossa também é umha época dum tempo sem tempo. E o Entroido, com todo o que implica de marca, de inscriçom, de novidade, pois também é criador de tempo.
Mircea Eliade falava desse tempo festivo no livro « O mito do eterno retorno »…
Si, mas aqui cumpre matizar esta questom porque há umha moreia de polémicas por volta do Entroido, sobre se é umha pura repetiçom codificada sem maior alcanço, ou se tem umha virtualidade subversiva e algumha positividade dinámica. Nesse sentido, desde a minha experiência pessoal, eu vim que o Entroido ia além dumha repetiçom codificada, rígida e médio morta. Com certa frequência beira o que poderíamos chamar a dimensom artística. Tenho assistido em diferentes Entroidos a manifestaçons de arte, por exemplo através da dança. Pense no foliom de Mormentelos (Vilarinho de Conso). Eu diria que nele há arte vencelhada à dança. E no registo artístico estám as comidas carnavalescas que por fortuna ainda existem nalgumhas aldeias galegas, por exemplo em Palheirós (Maceda) ou os jantares que já esmorecêrom, mas que tivérom grande vigor em Vila Verde, no Ribeiro, e que animava um grande homem que era Dionísio Amaro. Neles também houvo momentos de grande emoçom, que por vezes se achegavam ao que é um efeito da arte. Entom se há efeito artístico, há também de algum modo criaçom ou doaçom de verdade, e isto pom em causa a crença de o Entroido reduzir-se a umha espécie de puro cenário codificado e sem maior horizonte.
Em que media som singulares no quadro europeu as manifestaçons carnavalescas que se conservam na província de Ourense?
Em cada lugar cada Entroido está revestido dumha singularidade surprendente. Quando partilho com amigos estrangeiros, por exemplo com poetas chineses, imagens do nosso Entroido, ficam completamente comovidos e abraiados. No passado ano fixem em Marselha (França) umha exposiçom, e vim como a máscara dum felo espertava umha espécie de surpresa absoluta. Deste jeito, podo dizer-lhe como poetas amigos meus que vinhérom da França vírom, no que ao fim e ao cabo é apenas umha província, umha singularidade irrepetível, assombrosa, tremendamente inovadora e cheia de promessas e de criatividade. James Sacré, que para mim é um dos grandes poetas que há hoje no mundo rural, estivo toda umha noite sem dormir e como numha espécie de êxtase num corredor dumha casa em Viana do Bolo, a contemplar umha cena cheia de poesia, de engado e de feitiço. Consistia num tipo de jogo que um grupo de gente nova fazia com os bombos, mas que era todo um mundo riquíssimo de gestualidade e de retórica corporal, um conjunto de sons, de gestos. Eram alegorias, umha espécie de poema vivo em carne e osso com ajuda de bombos…à manhá seguinte, quando eu pensava que tinha que desculpar-me diante dele polo ruído que nom o deixou adormecer, Sacré amossava-se agradecidíssimo, porque nunca antes assistira na sua vida a umha cena nocturna tam comovedora, tam absoluta e tam criativa. No caso do Entroido de Laça, um escritor como é Martin Melkonian, também francês, deu-me umha fermosa fórmula : « o peliqueiro é um anjo que pesa ». Aliás sobre o felo de Maceda dixo-me que « finalmente é um general da paz ». Sobre esta máscara também incidiu Sacré, a falar da sua polivalência, polo seu conjunto de simbolismos, de valores e também de riqueza gestual extraordinária. Muitos dos poetas que venhem aqui convidados por mim também salientam do Entroido que nele há umha espécie de comunarismo, de prodigalidade, digamos que de regime de doaçom. No Entroido de Maceda, por exemplo, nos bairros de cada pequena aldeia ponhem fora mesas cheias do melhor que podem oferecer para comer e para baber. E isso é gratuíto, é um mundo de nom mercado. No tocante a isso, o poeta Pierre Le Pillouër, que estivo aqui no passado ano, resumiu em três características essenciais a surpresa que lhe produziu o entroido galego : « nem mercado, nem polícias, nem aplausos ». E com isto estou a entrar no que também salienta Bajtin, entre outros autores, que é a questom do utopismo, é dizer, no Entroido assistimos ao que poderíamos chamar a imagem dum povo reconciliado, a umha espécie de utopia ou de ideia reguladora, se o queremos dizer em linguagem kantiana. A utopia na que vês que é possível, como dizia Uxio Novoneyra, umha outra cousa. É possível umha outra Galiza, é possível um outro mundo. E a essa possibilidade chamou-lhe Bajtin a dimensom utópica da cosmovisom carnavalesca. Semelha essencial essa visom utópica, embora som ciente plenamente de que é um termo a pormos entre aspas, pois precisa ser revisto.
O Entroido também cria laço social…
É um outro elemento a levar em conta. Com isso afundamos na importáncia do Entroido da que falamos ao início. Relança a ledice da mudança, da ideia de renovaçom, e isto sobretodo através do tema da máscara que é a cerna do Entroido. No tocante a isto, eu editei um livro dum psicoanalista francês Jacky Bourillon, que afirma que « a máscara é um veu que diz que a vida existe, mas nom por muito tempo ». É um convite ao goce, mas engade que a máscara « vela e desvela ». Mas o que desvela ? Desvela a ausência de face, a essência de identidade do sujeito. Isto quer dizer que no Entroido vivemos umha experiência crucial, que é a de te fazer consciente da divisom interna da tua própria subjectividade (…)
Em que medida lhe tem influído o conhecimento e a vivência do Entroido ourensano ?
Umha vez que fum capturado por este mundo, sentim a obriga de ser um passador, umha espécie de pequena ponte para o transmitir. O Carnaval ajudou a criar em mim a consciência e o dever de transmiti-lo, de guardar a memória viva pola relaçom que tem a memória com o porvir. Isso influía-me até o extremo de me obrigar a editar sistematicamente livros sobre o Carnaval, que, primeiro, nom vendo, guardando assim o espírito carnavalesco de nom mercado ; e, em segundo lugar, que partilho com as máscaras e que procuro que sejam homenagens a esses Entroidos. Utilizo os livros para saudar as gentes dessas zonas e para animá-las a dizer-lhes que o que fam é extraordinário, e que paga a pena seguirem-no a fazer.
*A versom na íntegra desta entrevista foi publicada em Fevereiro de 2014 n’O Sil.