Por Andrew Kopkind (traduçom do galizalivre) /

Na segunda feira dia 15 deste mês de Janeiro comemorou-se o aniversário do nascimento de M. Luther King, declarado dia de festa nacional nos EEUU, o dia 4 de abril farám 50 anos do seu assassinato, antecipando o alude de informaçom do género “vidas de homens exemplares” que ameaça com sepultar qualquer questionamento da narrativa hegemónica da história, Galiza livre recupera um artigo do jornalista norte-americano Andrew Kopkind. Escrito ao calor das revoltas negras do Verao do 67 que incendiarom cidades inteiras como Detroit, Newark ou ghetos como Watts, o texto coloca o pensamento de Luther King no contexto da repressom brutal da polícia e a Guarda Nacional, da guerra do Vietnam, do Black Power e do nascimento do partido dos Panteras Negras. O artigo de Kopkind mantém toda a vigência na atualidade pois nele explora os limites dos movimentos em defesa dos direitos civis como estratégia para a libertaçom nacional e social.

Martin Luther King tivo, outrora, o dom de falar às pessoas, o poder de as modificar evocando passos da revoluçom. Mas o dever de um revolucionário é levar a cabo a revoluçom ( é, polo menos, o que dizem aqueles que já as efetuaram), e King ainda nom realizou nenhuma. Como ele próprio admite, atualmente, a situaçom nos Estados Unidos –para brancos e negros- é pior do que na época em que ele, hai onze anos, deu inicio à boicotagem de autocarros, em Montgomery. No Verao passado, em Chicago, foi escarnecido durante um comício em que participava grande multidom, e só mais tarde, na cama, sem conseguir dormir, compreendeu porquê:

Hai onze anos que eu e outros como eu acenamos com fulgurantes promessas de progresso. Ouviram longas prédicas sobre o meu sonho. Tanto lhes falei do dia nom muito longínquo em que seriam livres todos aqui e agora! Incitei-nos a ter confiança na América e na sociedade dos brancos. As esperanças deles nom podiam ser maiores. Agora escarnecêrom-me porque sentem que somos incapazes de concretizar as nossas promessas. Fum escarnecido porque os incitamos a confiar em pessoas que, já vezes sem conta, tinham demostrado ser indignas de confiança. Mostraram-se hostis porque veem que o sonho, que tam espontaneamente tinham abraçado está a tornar-se em pesadelo”.

King nom é mais responsável que nós –nom é menos verdade que somos todos igualmente responsáveis. Foi ultrapassado polo tempo em que vive, surpreendido polos acontecimentos para que talvez indiretamente contribuiu, mas que nom podia vaticinar. Muito provavelmente, nom voltará a recuperar o comando.

Tanto a filosofia como as técnicas que lhe som peculiares resultam de um mundo diferente de relaçons que nom som possíveis, de expectativas que já nom som válidas. King estava convencido de que a economia política dos EEUU tinha possibilidades de favorecer a integraçom total do negros pobres na sociedade, em evoluçom permanente, recorrendo apenas a medidas drásticas e impositivas de fraca intensidade. Os liberais brancos constituiriam a margem débil do calço, o Partido Democrata seria o agente de transformaçom eficaz, um exército de negros em marcha o aguilhom das consciências. O truco reside na escolha das táticas mais operantes, na apresentaçom dos programas mais praticáveis e na exibiçom das expressons mais idealistas.

É verdade que resultou durante algum tempo. O feudalismo sulista começou a desintegrar-se (era já insuportável), os votantes foram registados e foram lavradas atas de direitos civis. Mas por detrás das primeiras medidas defensivas da segregaçom erguiam-se muros mais desumanos. Umha sociedade imbuída de racismo nom ia facilmente rejeitar os princípios através dos quais confere direitos.

Ao contrário do feudalismo anacrónico dos confins do Sul, o sistema nacional do capitalismo industrial e tecnológico era praticamente invulnerável. Tinha armas melhores: um programa anti-indigência, um deputado do tipo Uncle Tom, disponibilidade de empregos e enormes reservas de tolerância. Quando estas armas falhassem, como, aliás, aconteceu, havia exércitos de polícias e de soldados preparados para os recursos de última instância.

King deve ter compreendido, por primeira vez, a sua posiçom precária, quando assistia, em silêncio, à reuniom política dos democratas da libertaçom do Mississipi, realizada, há três anos, em Atlantic City. O Partido Democrata Nacional, em que depositara a sua esperança, negou a petiçom daqueles no sentido de terem representantes; o partido nom tinha a mínima intençom de contribuir para o desequilíbrio do poder entre os negros e os brancos do Mississipi.

Mesmo que esta liçom nom fosse bem explícita, King pode verificar, seis meses depois, como o partido da paz se entregava à guerra mais bárbara e imperialista deste século. Na melhor das hipóteses, devia ter compreendido que as petiçons institucionais que induziram à guerra – a política e a economia do anti-comunismo- eram paralelas às que mantinham as classes inferiores no seu lugar – a política e a economia do racismo. Polo menos começou a aperceber-se de que a destruiçom social no Vietname era, de certo modo, incompatível com o avanço social nacional.

Quando tudo corria bem, King dispunha ainda do apoio dos liberais brancos e dos negros adeptos da marcha. Mas, depois, todo começou a correr mal e, progressivamente, todo se tornou cada vez pior. Aparentemente, os brancos liberais tinham compreendido mal, ou entom, as informaçons que lhes concederom eram deficientes. Defensores voluntários quando o objectivo do movimento visava a intergraçom e o embourgeoisement dos negros pobres, quando o objectivo passou a ser a libertaçom, quando o lema poder passou a substituir liberdade e as consequências desta substituiçom se traduziam em convulsons na sociedade que desesperadamente queriam preservar, os liberais bateram em retirada deixando de participar nas marchas, primeiro, e subtraindo os seus cheques, depois. Ao mesmo tempo, e por razons idénticas, a base negra de apoio a King começou a esboroar-se. Sem agentes ao serviço da tansformaçom, que compreendessem as suas exigências, nom havia possibilidade de concretizar as suas intençons. Nom é que M. Luther King tivesse escolhido as táticas erradas, ou aliciado os aliados impróprios. Tinha muito simples e desastrosamente chegado a conclusons erradas sobre o mundo – é impraticável qualquer tipo de aliança e nom hai programa de acçom imaginável que poda ser bem sucedido-, para usar as suas próprias palavras.

Completamente derrotado, King retirou-se para se dedicar à elaboraçom dum livro, reaparecendo, apenas hai uns meses, para condenar a guerra em que se afogara o movimento que dirigia. Como sempre, as suas alocuçons caracterizaram-se pelo ritmo fluente e comovente, mas também, como sempre, nunca chegaram a focar bem os aspetos fulcrais do problema, pois, à semelhança da formulaçom do conflito racial, o seu conceito de guerra é desprovido de qualquer perspectiva histórica e da compreensom dos processos da sociedade. Parece crer que o progresso é inevitável por ser compelido por umha força moral abstracta. A realidade é encarada como umha série de episódios: “todo o movimento revolucionário tem o seu auge de atividade harmoniosa e as suas depressons de debate e confusom internos”. A vida é feita apenas de pequenos nadas que se sucedem um após outros.

Nom é fácil conciliar a moralidade de King com o seu sentido histórico – ou com a ausência deste. Hoje em dia, os comentadores convencionais comprazem-se em falar da nobreza de King e da pureza do seu humanismo, para, logo a seguir, suspirarem que o mundo nom está à altura dele. Mas será mais acertado afirmar que é King quem nom está preparado para o mundo que o rodeia. A sua moralidade deriva do ponto em que ele se encontra, e nom do ponto em que se encontram os seus sequazes. A populaçom negra dos EEUU está nos limites da derrota das armas, nas mais longínquas margens do poder. A invocaçom ao amor, ao integracionismo e a nom violência proclamada por King encarna talvez o que ele se apraz rotular de tradiçom judaico-cristá, mas na presente geraçom dos EEUU essas som, basicamente, as reinvindicaçons do chefe, do pregador, do editor e do político. Dar a outra face foi sempre um lema de carácter pessoal, e nunca umha regra susceptível de ser generalizada; os indivíduos podem suicidar-se, mas os povos nom. A moralidade tal como a política, estabelece-se à ponta de baioneta.