Por Jacobe Pintor Vigo /

Após a destruiçom total do território português consequência das políticas submissas à troika, as grandes corporaçons globais, a banca, os especuladores imobiliários, as agências de turismo, passam os seus bulldozers por cima das tímidas leis reformistas que tratam de por freio à degradaçom feroz do direito de habitaçom, leis impulsadas polo governo de coaligaçom progressista e pensadas para as classes médias e a juventude em palavras do próprio primeiro ministro António Costas. O capital toma posse dos bairros populares arrasados nas grandes cidades portuguesas a golpe de despejos, marginalizaçom e acosso policial. Sobre os entulhos dumha longa tradiçom popular constroem-se os parque mediáticos de Lisboa e do Porto, a pressom sobre a renda afoga umha maioria da populaçom em Portugal e cada dia engrossam mais pessoas a lista dos sem-fogar ou em condiçons de infra vivenda. Nas zonas periféricas de Lisboa como a Amadora, integrada por bairros populares ameaçados pola especulaçom urbanística e bairros autoconstruídos em situaçom alegal, os habitantes organizam-se em assembleias para fazer fronte a situaçons de verdadeira emergência e a condiçons de vida indignas para qualquer pessoa. As origens destes bairros remontam-se aos anos cinquenta, levantados por operários provenientes da migraçom campo-cidade, bairros que se irám expandindo com a chegada de populaçom inmigrante, bairros ameaçados por ordens de derribo como no caso do bairro 6 de Maio, urbanizaçons abandonadas a meio fazer e que fôrom ocupadas por populaçom sem recursos económicos como no caso do Bairro Jamaica. Em Setembro deste ano, as assembleias de habitantes junto com associaçons como a Oficina de Etnografia Urbana ou a associaçom Habita! organizárom umha caravana para facilitar o deslocamento de membros destas assembleias de habitantes duns bairros a outros com o fim de pôr em comum as experiências de luita, as necessidades comuns e a elaboraçom de demandas conjuntas, a campanha desenvolve-se baixo o lema Nossa casa, nosso bairro, nossa luta.

A luita de resistência nos bairros marginais em Portugal parece acordar um velho fantasma que parecia conjurado pola narrativa oficial sobre a revoluçom de abril de 74 e que sepultou, baixo a sombra da história militar e política, a história dos esquecidos. Lentamente mas sem pausa, desde os anos sessenta do passado século, a situaçom de extrema necessidade de habitaçom digna, impulsou à populaçom empobrecida das grandes cidades de Portugal, sobretudo do Porto, Lisboa e Setúbal, para auto organizar-se em comissons de moradores que, conscientes da inutilidade das demandas ao regime fascista, decidírom tomar a iniciativa para criar, elas mesmas, as condiçons de habitaçom necessárias. Estas comisson fôrom integrando-se em federaçons mais amplas como o caso da Associaçom de Inquilinos de Lisboa, contribuindo para a criaçom de comissons por toda a parte, e preparando assim o terreno para o movimento popular mais poderoso da Europa. A revoluçom dos cravos fixo emergir o movimento subterrâneo que provocou o processo revolucionário, que durou mais dum ano e cujo alcance e profundidade nom tem comparaçom na Europa Ocidental de pós-guerra. A luita dos moradores encheu de conteúdo a retórica revolucionária da “Junta de Salvação Nacional” erigida como governo provisório do estado, transformando a transiçom do regime fascista num auténtico processo revolucionário. O PREC foi finalmente liquidado polo golpe militar de novembro de 75 com a cumplicidade do Partico Comunista Português, preocupado com a deriva anarquizante do povo, e o restabelecimento da ordem em Portugal. José Hipólito Santos, que documentou no seu ensaio Sem Mestres, nem chefes, o povo tomou a rua, este processo de empoderamento popular, oferece alguns dados que refletem as dimensons da iniciativa popular: nas primeiras semanas de maio de 74 fôrom ocupadas mais de 2000 casas entre Setúbal, Lisboa e o Porto, obrigando à Junta de Salvação a legalizaçom destas ocupaçons em 14 de Maio, mas proibindo-as no futuro e ainda endurecendo as condenas de prisom. A medida porém, nom resultou dissuasória, contabilizando-se, no percurso do PREC, entre 15000 e 20000 vivendas ocupadas. A implantaçom das comissons na rede urbana permitiu estas cifras demolidoras de apropriaçom popular, as comissons encargavam-se da localizaçom das casas, da informaçom sobre a disposiçom para a acolhida da vizinhança, da proteçom das famílias ocupantes… Este trabalho de campo foi realizado maioritariamente por mulheres, sendo o seu envolvimento nesta singular insurreçom popular determinante, escurecido depois por umha historiografia que só se reconhece nas grandes figuras militares e políticas, masculinas todas elas.

Nos bairros de lata e nas barracas, a estratégia diferia da ocupaçom. A integraçom familiar e cultural de distintas geraçons ocupantes ou os laços de procedência da populaçom que levanta os assentamentos, condicionárom a estratégia de resistência. A sua demanda exigia nom deslocaçom dos habitantes, legalizaçom dos assentamentos, melhoria das infraestruturas, (esgotos, água, caminhos, eletricidade).

A magnitude do movimento obrigou o governo português para implementar o célebre programa SAAL, que pretendia a melhora habitacional de Portugal através de medidas técnicas para aliviar a situaçom revolucionária que o próprio movimento criara. A força dos moradores possibilitou a apropriaçom do programa SAAL polas próprias comissons imponhendo os seus interesses sobre as estratégias de contençom do governo. Assim se no SAAL inaugural as condiçons para financiar a autoconstruçom contemplavam cada família constrói a sua própria casa as comissons impunham todos os habitantes do bairro participam coletivamente na construçom de cada casa, se o SAAL contemplava o pagamento dos custes da obra em troca do trabalho dos moradores, os moradores exigiam uns rendimentos polo seu trabalho esgrimindo o direito básico à vivenda. O libro coletivo Movimento popular e prática urbanística em Portugal assi o reflite: O SAAL, estava transformado pelo movimento popular, num programa seu, podendo ser definido como uma intervenção de carácter prioritário subordinado à concretização do direito à cidade sob controlo dos moradores organizados, assentando em sete princípios fundamentais: controlo sobre a localização dos núcleos habitacionais, controlo sobre o trabalho de apoio técnico, gestão da obra, controlo sobre o processo de financiamento e gestão social das casas e dos bairros.

Para as comissons de moradores nom se tratava simplesmente de melhorar as condiçons de vida, o seu programa comtemplava umha trasformaçom radical da sociedade e dos modos de vida outorgando-lhe aos próprios moradores a gestom e o direito sobre o espaço.

Esta massa informe de lumpem (na linguagem da direçom do PCP da altura), que se auto-organizou nas associaçons de moradores, nom se deixava disciplinar facilmente polo aparato de partido e polos sindicatos. Mas o golpe de estado de Novembro de 75 que exterminou de raiz a tendência revolucionária na direçom das forças armadas, a infiltraçom de militantes do PS e do PCP nas comissons com o objetivo estratégico de enquadrar o movimento, e o surgimento dum quadro jurídico e político clássico de democracia formal, contribuírom para o progressivo debilitamento das comissons.

Quatro décadas depois, o estalido da crise do capital e a intervençom da Troika deixou ao descoberto em Portugal, após décadas de “criaçom de riqueza e bem-estar”, os barracons e os bairros sem esgoto, sem luz, sem água, enquanto um terço do país arde literalmente. No ensaio de Hipólito Santos sobre o desenvolvimento do movimento popular dos moradores, o autor introduze um breve percurso pola produçom teórica revolucionária sobre a questom da habitaçom e as classes populares. Desde as comunas e os falanstérios projetados polo socialismo utópico, até a Questom do alojamento de Engels, passando pola literatura realista de Dickens e Zola, as condiçons de habitaçom aparecem sempre como fundamentais para a prática política de emancipaçom. No entanto, nos últimos quarenta anos apenas se tem traduzido, nos programas políticos da esquerda, em vagos apelos ao direito dumha vivenda digna, mas as assembleias de habitantes que vam surgindo nos subúrbios de Lisboa ou do Porto já o sabem: ninguém o fará por nós.