Por Jorge Valadas /

Verão após Verão, o ciclo permanente de incêndios gigantescos apresenta uma fotografia em tamanho natural do estado de crise económica e social em que se encontra mergulhada a sociedade portuguesa. Esta situação é reveladora da lógica económica imposta pela integração no espaço europeu. A destruição das antigas formas de agricultura, a urbanização acelerada, o abandono do interior, a monocultura do turismo, tudo isto faz parte da desestruturação da sociedade. A desertificação do interior, cuja vida social se encontra exaurida, e a urbanização do litoral, levam algumas pessoas a dizer que “O país está a deslizar para o mar”- É a nada extremista Ordem dos Arquitetos a declarar que “o território se encontra à mercê das pressões do mercado imobiliário”. À velocidade a que tudo isto anda, em breve Portugal há-de exportar fogo e importar água potável, tal como já importa sumos de laranja da Califórnia ao mesmo tempo que arranca as laranjeiras do Algarve para construir horrorosas ”aldeias” turísticas. Neste país, onde há “tanta gente sem casa e tanta casa sem gente”, poder-se-á também, em breve exportar casas vazias. Agora que a grande maioria da população habita nos grandes centros urbanos do litoral, a atividade agrícola encontra-se moribunda e a conservação dos bosques e florestas foi abandonada, de tal modo que, “para uma área igual de floresta, há sete vezes mais incêndios em Portugal do que na Espanha e vinte vezes mais do que em Itália”.

Panpilhosa da Serra, no distrito de Coimbra, foi em 2005 um dos concelhos que mais sofreu com incêndios, tendo ardido dois tércios da sua área. A evolução demográfica deste concelho ilustra perfeitamente o que dizemos. Dos 30000 habitantes ali recenseados em 1930, não restam hoje mais do que 5000 pessoas, metade das quais são reformados, das 42 escolas primárias que tinha em 1974, só 7 funcionam ainda. A desertificação favorece ao fogo –e os fogos aceleram a desertificação.
O valor comercial da maior parte dos campos é hoje muito baixo ou calculado como terreno de construção, e isso não só nas zonas onde o turismo se tornou numa atividade invasora, gangrenando a vida social, mas a bem dizer por toda a parte. Umha amiga, de viagem por Portugal, exprimiu o desalento e o espanto que dela se apoderaram ao ver a quantidade de letreiros anunciando “vende-se”, expostos em velhas casas, nos muros de quintais e no meio de pomares. Como se o presente não passasse duma venda ao desbarato do passado. Entretanto, um outro letreiro poderá hoje acrescentar-se a esses : “TERRENO PARA INCENDIAR”.

A situação é agravada pela incúria, o esbanjamento, a incompetência e o gangsterismo dos políticos, pela apetência de lucros dos gangas que operam numa economia a saque, pela desdenhosa indiferença das classes abastadas e pelo resignado individualismo das classes populares. Deste modo, à ausência duma política florestal vem juntar-se a falta de meios. Os corpos de bombeiros locais, generosos voluntários que amiúde pagam tributo ao fogo com a própria vida, sentem cruelmente a falta de equipamentos e meios de intervenção. Em Silves, onde e 2003 o fogo devastou Monchique, uma das mais belas florestas do Sul, os bombeiros da cidade dispunham de 20 capacetes para 40 voluntários e os moradores tiveram de se mobilizar para os alimentar na luta contra as chamas. Mas a poucas dezenas de quilómetros de Silves, novinho em folha e refulgente, o novo estádio de futebol de Faro preparava-se para abrir as portas ao público. Opções políticas…

Desde o início deste século, desaparecem em fumo, por ano, em média, 140.000 hectares de floresta. Perante a repetida catástrofe, os políticos continuam a discursar sobre o que vão fazer, sem darem explicações sobre o que não fizeram, hesitando entre o discurso fatalista, a mendicidade em Bruxelas e as ameaças repressivas. Como se sabe a repressão é a reforma do nosso tempo, e a classe política portuguesa, com toda a banalidade alinha pela tendência geral de autoritarismo democrático. Deste modo, mais do que a prevenção, prefere acentuar o controlo policial do espaços rurais abandonados, militarizar a luta contra o fogo, incitar à delação dos “comportamentos de risco”. E doravante, o fogo banaliza-se. Todos os Verões, os leitores da imprensa diária passaram a ter ao seu dispor um mapa nacional onde se assinala o grau de probabilidade dos incêndios, região por região, como um mapa meteorológico. O resultado da ação humana adquire assim a forma de probabilidade científica.

Alguns fanáticos da “mão” invisível” não perderam a oportunidade de cozinhar uma “teoria” original sobre as questões do sobreaquecimento e da seca que atingem vastas regiões do Sul da Europa. Para começar, se há incêndios, é por haver muitas árvores. Ele mental! Além disso, é justamente por haver muita floresta que a seca se instala, porque as árvores consomem muita água. Lançando-se assim esses originais em guerra contra a reflorestação, ação “romântica” ultrapassadíssima, que data do século VII… No entanto, os estudos sistemáticos que têm sido feitos sobre a relação entre floresta e pluviosidade provam o impacto hidrográfico da floresta. Com efeito, o acréscimo de pluviosidade nas florestas, relativamente à vizinhas regiões não arborizadas, é da ordem de mais 10% a 20%. Mas isso que interessa, não é verdade? O que é preciso é laisser faire, deixar arder, deixar o deserto ganhar terreno, contanto que a produção de lucro não seja entravada.

De resto, segundo estes talibãs do mercado, Portugal deixará em breve de ter problemas de seca. Desde o início do presente século, os incêndios estão a reduzir incessantemente o coberto florestal do país, variando os números entre uma redução de 10 a 20%; estando Portugal, por conseguinte, em vias de se tornar um caso exemplar de crise ecológica na Europa e das suas trágicas consequências humanas e sociais.
Os problemas do sobreaquecimento climático, a seca e o seu corolário – as inundações e os incêndios – atingem todo o Sul da Europa, da Roménia e Grécia a Portugal. Adquirem dimensão dramática na Península Ibérica, muito em particular nas vertentes do sul mediterrânico e da parte ocidental atlântica. A península está a passar por uma das maiores secas desde o início do século XX, registando-se aqui a mais grave diminuição de pluviosidade e os mais baixos níveis nas reservas de água – e encontrando-se hoje uma terça parte do território português ameaçada de desertificação. Um geógrafo andaluz, inquirido por um jornalista, mostrou-se mesmo alarmado: O clima africano está a chegar ao nosso País. Corremos os risco de perder rapidamente mais da metade das nossas espécies vegetais e o conjunto de animais a elas associados. O próprio turismo será afectado, porque o Verão está a tornar-se insuportável e tememos a eclosão de doenças tropicais”.

Acaso deveremos concluir que após a integração na União Europeia a proteção do país pela Virgem deixou de ser eficaz? Em todo o caso, a abençoada intervenção do totem Fátima, que conseguiu salvar o país do anarquismo e do projeto comunista, parece agora impotente perante as forças da natureza e do fogo. A não ser –outra interpretação bíblica a considerar- que estas paragens tenham sido imersas no fogo do inferno por vingança divina devendo o fim do ciclo histórico deste velho estado-nação situado no extremo sudeste da Eurolândia ter o seu remate no Armagedão aterrador, de chamas e avanço do deserto.
Mas se não aceitarmos as explicações sobrenaturais, temos mesmo de procurar no áspero chão as razões dos males terrenos. Como é óbvio as causas profundas desta crise não as podemos encontrar no interior deste pequeno país, mas sim globalmente, na desenfreada corrida à maximização do lucro pelo capitalismo, na destruição maciça e exponencial dos recursos naturais e dos contextos de vida. Em contrapartida, as formas concretas e particulares como esta crise se manifesta, as suas consequências específicas junto das populações, são tributárias das circunstâncias e caraterísticas de cada sociedade. Em Portugal, tal com em outras paragens, as altas esferas e os mídia insistem facilmente na origem criminosa dos incêndios. É a árvore que esconde a floresta em fogo. Como sublinhou Ernesto Sequeira, da Liga Portuguesa para a Proteção da Natureza, isso é o mesmo que desmobilizar e desresponsabilizar a população. Ressalvando o facto de a desorganização das comunidades rurais da antiga estrutura económica já ter feito desaparecer as formas de apoio mútuo, solidariedade e responsabilidade coletiva, substituídas pela individualização moderna do cidadão consumidor de mercadorias, o “criminoso”, de facto, não está forçosamente onde se espera encontrá-lo. A prova-lo estão os recentes estudos feitos na vizinha Espanha, mostrando que as raras “comarcas com bosques comunitários utilizados pelos habitantes, nunca ocorrem incêndios”. De notar também que a tentativa de esconder, com cenários paranoicos, as responsabilidades oficiais e a lógica capitalista de destruição da “natureza” é mais ou menos bem aceite consoante o grau de resignação das sociedades. Assim, os gigantescos incêndios no Peloponeso grego, no Verão de 2007, provocaram grandes manifestações antigovernamentais. Ao passo que em Portugal os incêndios e as suas causas continuam a ser aceites com fatalidade individualista e no silêncio sepulcral dos “brandos costumes”.

Em Portugal, falar de “políticas da água” é também um eufemismo para abordar o aumento do valor mercantil de um género cada vez mais raro. As grandes manobras de privatização mundial do fornecimento de água e o interesse manifestado pelos grandes grupos capitalistas são coisas que não enganam – tal como não enganam as violentas revoltas sociais contra esta privatização em países como a Bolívia. Os afrontamentos entre Estados com vista ao domínio das reservas de água tornaram-se um factor geopolítico de grande importância, sendo o caso de Israel o mais conhecido. Na Península Ibérica, o controlo a montante, pela Espanha, dos três grandes rios, Douro, Tejo e Guadiana, está a fazer ressurgir velhos contenciosos. Será a próxima guerra peninsular uma guerra pelo domínio do ouro azul?

Quem diz “política de Estado” diz respeito pelos interesses capitalistas. Em Portugal, o parâmetro que guia esta política não é a irrigação intensiva da agricultura industrial, como em França e em Espanha, mas antes a indústria do turismo. Embora cada novo governo sublinhe com agrado a inércia do anterior, o certo é que todos eles se encontram prisioneiros das mesmas forças económicas e da sua lógica destruidora e anti-igualitária. Dizer que a água é uma mercadoria rara e que tende a encarecer, é reconhecer também que ela se encontra desigualmente distribuída segundo as classes sociais. Muito antes de se falar de privatização, o acesso público à água já era seletivo. No Verão de 2005, 80% do país sofreu com a seca, as reservas hídricas baixaram 40% e o caudal dos grandes rios atingiu então níveis mínimos. Mas as autoridades fizeram o necessário para que a água não faltasse nas estações balneares, ao mesmo tempo que mais de vinte mil habitantes das aldeias pobres do Centro e do Sul tiveram de ser abastecidos por camiões cisternas, por carecerem dela. Também neste caso a presente e desvairada modernização vai tendo inesperadas consequências. Sem fazermos uma apologia dum passado mítico, temos de reconhecer que o desaparecimento dos sistemas milenares que constituíam a lógica do abastecimento de água em função do clima, substituídos por irracionais e capitalistas utilizações da água, estão a ter consequências nas sociedades do Sul da Europa, de clima quente, onde a lógica do consumo moderno incita a uma utilização da água que não corresponde aos meios disponíveis. É aquilo que o etnólogo Cláudio Torres estigmatizou com a seguinte fórmula: “O símbolo da modernidade é o autoclismo”.
Tal como os seus manos inimigos da direita, os socialistas portugueses submetem o interesse geral da sociedade às leis do lucro e aos interesses da propriedade privada – chamando a isso “modernização da sociedade”. Uns quantos efeitos de anúncio e pseudomedidas ocupam a ribalta do palco mediático. Caso das campanhas de propaganda contra o desperdício de água no domicílio, quando toda a gente sabe que isso corresponde a uma ínfima parte do consumo total. Em novembro de 2005, precisamente quando as autoridades andavam a aconselhar as crianças a lavar os dentes fechando a torneira e as câmaras municipais suspendiam a rega dos jardins públicos, teve início em Vilamoura, no Algarve, o campeonato mundial de golfe. A competição decorreu num novo terreno de 90 hectares, juncado de cascatas e lagos…

Em Portugal, tanto ou mais do que noutras paragens europeias, a via política, das câmaras municipais ao parlamento, está corrompida pelos interesses dos lóbis do cimento, o chamado imposto do betão, e do branqueamento de dinheiro sujo, nomeadamente no futebol e no sector imobiliário. De resto, a utilização dos recursos hídricos pela indústria turística continua a ser assunto tabu. A proliferação dos terrenos de golfe – cujo consumo médio de água equivale ao de uma cidade de 13000 habitantes-, as realizações desportivas faraónicas (sete novos estádios de futebol construídos para o campeonato europeu de 2004), a monocultura turística e o incremento contínuo de cidades turísticas fantasmas, são exemplos flagrantes do poder da “economia mafiosa”.

*Artigo de Jorge Valadas extraído do livro do mesmo autor: ‘A memória e o fogo’ editado pola editora lisboeta Letra Livre