Por Ricardo Gazzaniga (traduçom do galizalivre) /

Isso é algo privado, nom podes politizar as relaçons pessoais. Nom se devem politizar os incêndios. Nom se deve politizar a educaçom das crianças. Nom se pode politizar o desporto. Nom se pode politizar…. nada. Já está instalado o discurso de que nom se pode politizar nenhuma questom. O objetivo de nom politizares este ou aquel tema é porque assim prevalece a ideologia dominante, reforça-se o estatus quo. Em contra desse discurso, devemos politizar todos os ámbitos das nossas vidas. Neste sentido reproducimos este artigo de Riccardo Gazzaniga publicada no seu blogue sobre este tema (https://riccardogazzaniga.com/luomo-bianco-in-quella-foto/)

As fotografias, às vezes, enganam.

Tomemos esta imagem, por exemplo.

 

Representa o gesto de rebeldia de Tommie Smith e John Carlos o dia de entrega de medalhas dos 200 metros nas Olimpíadas da Cidade do México e que me tivo enganado durante muito tempo.

Sempre a olhei com o foco sobre os dous homens negros descalços, com as cabeças baixas, de punhos erguidos com luvas pretas, enquanto tocava o hino dos Estados Unidos. Um forte gesto simbólico para reivindicar os direitos civis afro-americanos num ano de tragédias, com as mortes de Martin Luther King e de Bob Kennedy.

É umha imagem histórica de dous homens de cor. É por este motivo que nunca prestei atençom naquel homem, branco como eu, imóvel no segundo passo do pódio.

Considerava-o como umha presença casual, umha aparência, umha espécie de intruso. Na verdade, mesmo acreditei que aquele homem –que apenas deve ser um inglês tolo– representava na sua gelada imobilidade a vontade de resistir à mudança que Smith e Carlos invocaram com o seu protesto silencioso.

Mas estava errado. Graças a um velho artigo de Gianni Mura, hoje descobri a verdade: o branco na fotografia é, talvez, o maior herói que emergiu aquela noite de 1968.

Chamava-se Peter Norman, era um australiano que tinha chegado à finaL dos 200 metros depois de ter corrido uns fantásticos 20.22 nas semi-finais. Apenas os dous americanos Tommie “The Jet” Smith e John Carlos o fizeram melhor: 20.14 o primeiro e 20.12 o segundo.
A vitória parecia que tivesse que ser decidida entre eles dous. Norman apenas era um estranho a quem as cousas lhe estavam a sair bem. John Carlos, anos mais tarde, disse que se perguntou o que tinha acontecido com aquel pequeno homem branco de 1,68 metros de altura e que corria tam rápido como ele e Smith, ambos de metros noventa.

Chega a hora da final e Peter Norman faz a corrida da sua vida, de novo melhorando os seus tempos. Remata com 20.06, a sua melhor marca, um recorde australiano ainda invito 47 anos depois.

Mas esse registo nom foi suficiente, porque Tommie Smith era verdadeiramente “The Jet” e respondeu com um recorde mundial. Quebrou o muro dos vinte segundos, o primeiro homem da história, rematando com 19.82 e levando-se o ouro. John Carlos ficou em terceiro lugar por um suspiro, por detrás da surpresa Norman, único branco no meio dos campeons de cor.

Foi , em suma, umha gram corrida.

No entanto, essa corrida nunca seria tam memorável como a entrega das medalhas.

Nom demorou muito depois da corrida porque percebeu que algo grande, sem precedentes, aconteceria ao subir ao pódio.

Smith e Carlos decidiram que queriam mostrar a sua luita pelos direitos humanos ao mundo enteiro e a palavra espalhou-se entre os atletas.

Norman era um homem branco natural da Austrália, um país que tinha duras leis de apartheid, quase tam rígidas como as da África do Sul. Havia também tensom e protestos na Austrália como sequência de pesadas restriçons à imigraçom nom-branca e leis discriminatórias contra os aborígenes, incluindo a adopçom forçada de crianças nativas em favor das famílias brancas.

Os dous americanos tinham perguntado a Norman se ele acreditava nos direitos humanos e ele respondeu que sim. Perguntaram-lhe se acreditava em Deus e ele, que tinha um passado no exército da salvaçom, respondeu sim novemente. “Sabíamos que aquilo que iamos fazer era de longe maior que qualquer competiçom desportiva e ele disse: Estarei com vocês” lembra John Carlos, “Eu esperava ver receio nos olhos de Norman, mas em vez disso vimos amor.”

Smith e Carlos decidiram subir ao pódio usando o emblema do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos, um movimento de atletas que apoiava a luita pola igualdade.

Iriam receber as suas medalhas, descalços, representando a pobreza dos homens negros. eles usariam as famosas luvas pretas de couro, símbolo da causa dos Black Pathers. Mas antes de subirem ao pódio perceberam que apenas tinham um par de luvas pretas. “Calce cada um umha luva” sugeriu o corredor branco e Smith e Carlos aceitaram o conselho.
Mas entom, Norman fez outra cousa. “Acredito naquilo que vocês acreditam. Vocês tambem tem um deles para mim?” perguntou apontando para o emblema do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos no peito dos outros. “Desse modo eu podo mostrar o meu apoio à vossa causa.”
Smith admitiu que ficou atónito e pensou: “Quem é este tipo? Ganhou a sua medalha de prata, que a receba e pronto!”

Smith respostou que nom, também porque nom queria deixar de usá-lo. Aconteceu que com eles estava, Paul Hoffman também activista do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos. El tinha ouvido todo aquilo, pensou que “se um branco queria um desses emblemas, por Deus, claro que lho daria!” Hoffman nom hesitou “Dei-lhe o único que tinha, o meu”.

Os três saírom para o campo e subirom ao pódio: o resto é história, preservada polo poder daquela fotografia. “Eu nom podia ver o que estava a acontecer atrás de mim” conta Norman, “mas sabia que eles tinham levado avante o planejado quando umha voz na multidom cantou o hino americano, mas depois parou. O estádio ficou em silêncio”.
O chefe da delegaçom americana jurou que seus atletas iriam pagar enquanto vivessem por um gesto que nom tinha nada a ver com o desporto. Smith e Carlos foram imediatamente excluidos da equipa americana e expulsos da vila olímpica, enquanto que Hoffman foi acusado de conspiraçom.

De volta na casa, os dous velocistas enfrentaram pesadas consequências e ameaças de morte.

Mas o tempo acabou por dar-lhes a razom e tornaram-se campeons na luta pelos direitos humanos. Fôrom reabilitados, colaborando com a equipa americana de atletismo, e tendo sido erigida umha estátua deles na universidade San Jose. Peter Norman nom está nesta estátua. Esse lugar vazio do pódio parece o epitáfio dum herói a quem ninguém nunca reparou. Um atleta esquecido, apagado em primeiro lugar do seu país natal, a Austrália.

Quatro anos mais tarde, nas Olimpíadas de 1972 em Munique, Norman nom foi chamado para a equipa de velocistas australianos, apesar de se ter qualificado treze vezes para os 200 metros e cinco vezes para os 100 metros.

Decepcionado, deixou o atletismo de competiçom, continuando a correr a nível amateur.

Na sua branca Austrália, que se resistia à mudança, foi tratado como um pária, a sua família foi proscrita e incapaz de encontrar trabalho.

Trabalhou como professor de ginástica, continuando com as luitas como sindicalista e trabalhando ocasionalmente como carniceiro. Devido a umha ferida, contraiu gangrena que o levou a problemas de depressom e alcoolismo.

Como disse John Carlos “Se nós fomos espancados, Peter enfrentou um país inteiro e sofreu sozinho”. Durante anos, Norman só teve umha oportunidade de se salvar: foi convidado a condenar o gesto dos seus colegas atletas John Carlos e Tommie Smith em troca dum perdom do sistema que o tinha condenado ao ostracismo. Um perdom que lhe teria permitido atopar um emprego estável no Comité Olímpico Australiano e fazer parte da organizaçom dos Jogos Olímpicos de Sydney 2000. Mas Norman nunca condenou a escolha dos dous americanos.

El foi o maior velocista australiano e detenta o recorde dos 200 metros, contudo nem sequer foi convidado para as Olimpíadas de Sydney. Foi o Comité Olímpico americano, quando a notícia foi descoberta, que lhe pediu que se juntasse ao seu próprio grupo e convida-lo para a festa de aniversário de Michael Johnson para quem, Peter Norman era um exemplo e um herói.

Norman morreu repentinamente dum ataque cardíaco em 2006 sem que o seu país algumha vez o tivesse reabilitado. No seu funeral, Tommie Smith e John Carlos, amigos de Norman desde 1968, carregaram o seu caixom sobre os ombros saudando-o como um herói.

“Peter era um soldado solitário. Escolheu conscientemente ser um anho sacrificado em nome dos direitos humanos. Nom há mais ninguém senom ele que a Austrália devia honrar, reconhecer e apreciar” disse John Carlos.

“El pagou o preço com a sua escolha” explicou Tommie Smith. “Nom foi apenas um gesto para nos ajudar, foi a sua própria luita. Era um homem branco, um homem branco australiano entre dous homens de cor, levantando-se no momento da vitória, todos em nome do mesmo.”
Só em 2012, o Parlamento australiano aprovou umha declaraçom tardia para pedir desculpas a Peter Norman e reabilita-lo com estas palavras:
“Este Parlamento reconhece os extraordinários êxitos atléticos de Peter Norman que ganhou a medalha de prata em 200 metros nas Olimpíadas da Cidade do México cum tempo de 20.06 segundos, ainda hoje, recorde australiano.

Reconhece a coragem de Peter Norman, ao ostentar no pódio um emblema do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos, em solidariedade com Tommie Smith e John Carlos, que fizeram a saudaçom do “poder negro”.

Pede desculpas a Peter Norman polo erro que cometeu por nom o mandar às Olimpíadas de Munique de 1972, apesar de repetidamente se ter qualificado e reconhece o poderoso papel desempenhado por Peter Norman na busca da igualdade racial.”

Contudo, as palavras que melhor nos lembram a Peter Norman som aquelas coas que el mesmo descreve os motivos do seu gesto, no documentário “Saúde” escrito e filmado polo seu sobrinho Matt.
“Nom podo ver por que razom um negro nom podia beber a mesma auga dumha fonte, apanhar o mesmo autocarro ou ir à mesma escola que um branco. Era umha injustiça social contra a qual nada podia fazer a partir de onde estava, mas que detestava. Foi dito que ter partilhado a minha medalha de prata co que aconteceu aquela noite, manchou a minha actuaçom. Pelo contrário. Tenho de confessar que fiquei muito orgulhoso por fazer parte disso.”

* Riccardo Gazzaniga publicou este texto no seu blogue.