Agustín López Tobajas (traduçom do galizalivre)/
[“Só o povo salva o povo”, berra-se nas manifestaçons contra os incêndios, salientando que é a gente, e nom umha instituiçons alheias, quem planta cara aos lumes, como noutro tempo à maré negra do Prestige. Porém, o discurso crítico fica ancorado a umhas rotinárias petiçons de “demissons” e a umha denúncia da “incompetência”, que obscurecem as causas profundas da plaga de incêndios e sementam a sensaçom frustrante de sem-sentido.
Volcamos aqui à nossa língua, para contribuir a um verdadeiro discurso crítico, um escrito interessante de Agustín López Tobajas, no que se fai ficapé nas causas estruturais deste mal, e especificamente na maneira como som afrontados os incêndios por parte do Estado.]
De aspirar-se a que umha catástrofre como o incêndio que arrasou umha parte importante do vale do Tiétar o passado 28 de Julho [Nota do Tradutor: de 2009] no se repita, impom-se, antes de mais, umha reflexom sobre os diversos aspectos do acontecido. Deixaremos de lado aqui qual poda ter sido a origem do lume e todo o relativo ao que parece o seu provável carácter intencionado. Também nom se ocupa este escrito das circunstáncias “ambientais” relativas à prevençom dos incêndios, como o tema “pinheiros frente a bosque autóctone”, “limpeza do monte”, etc., e também nom se falará aqui, por exemplo, dos critérios que se devam seguir para a recuperaçom das zonas afectadas, temas que exigiriam otras tantas reflexons independentes.
A perspetiva deste escrito limita-se estritamente à forma como se atuou no processo da extinçom e a algumhas das medidas que se tomárom para apagar -ou, melhor dito, para nom apagar- um lume que atravessou livremente e em repetidas ocasions caminhos, estradas e corta-lumes, um dia em que nom fazia demasiado vento, no que resultou um exercício de incompetência dificilmente superável. Também nom se pretende buscar responsabilidades pessoais (independentemente de que pudessem existir e de que seja pertinente fazê-lo) senom em afondar nas motivaçons subjazentes das decisons adoptadas.
Entre estas decisons hai duas, com mui distinta incidência sobre o desenvolvimento global do lume mas de idêntica natureza e, de algum modo, indissociáveis, que parecem particularmente significativas: a proibiçom de aceder ao incêndio aos numerosos voluntários que se ofereciam a colaborar e a evaquaçom forçosa dos residentes na zona. Ainda que a segunda delas -é dizer, a evaquaçom- poda ter umha releváncia mui escassa ou nula no que diz respeito ao desenvolvimento global do incêndio, nom deixa de ser qualitativamente importante polo que significa e por afetar vitalmente a um número nada desprezível de pessoas.
Com efeito, a evaquaçom forçosa é, por cima de todo, umha injerência inadmissível na liberdade individual, própria de um Estado totalitário, e umha negaçom flagrante do legítimo direito de toda pessoa a defender o que é seu e, mais em particular, a sua casa e a sua terra. Analogamente, a interdiçom aos voluntários de participar nas labores de extinçom -circunstáncia que si foi decisiva para a propagaçom do lume- é além de um ridículo ato de arrogáncia e de paternalismo por parte dos organismos oficialmente encarregados da extinçom, umha atitude identicamente atentatória contra a coletividade, entanto que interdiçom a todo um povo de defender a terra que legitimamente lhe pertence e à que ele pertence. O ato é tanto mais patético quanto que entre o voluntariado se contavam pessoas com sobeja experiência neste tipo de acontecimentos e com um conhecimento concreto do terreio, absolutamente essencial na extinçom de um incêndio, conhecimento de que demonstrárom carecer por completo no só as brigadas chegadas de outras comarcas mais ou menos próximas (o que é, naturalmente, compreensível) mas também todo o pessoal “oficialmente” encarregado da extinçom, em particular os que se encontravam ao comando das operaçons.
Ora bem, estas duas medidas, além das pessoas concretas que as pudessem ditar, estám sustentadas em atitudes sociais hoje em dia generalizadas, que é preciso pôr de manifesto, tanto mais quanto que, provavelmente, sejam inconscientemente apoiadas, em maior ou menor medida, de forma tácita ou expressa, nom apenas por quem podam aprovar a gestom da extinçom mas também por muitos dos que a criticam.
Basicamente, parece haver quatro razons de fundo -ou, ao menos, relativamente de fundo -detrás das duas medidas mencionadas.
1) A ilusom tecnológica. É dizer, a difundida crença de que a tecnologia o resolve todo e de que, neste caso concreto, a extinçom do lume podia encomendar-se basicamente a avions e helicópteros. Sem dúvida a imagem de um grupo de paisanos com sachos e angaços deveu parecer aos nossos tecnologizados políticos vergonhosa e “terceiromundista” (a pior ofensa que no ámbito político se pode fazer a qualquer instituiçom do nosso mundo tam orgulhosamente “moderno e democrático”); porém, qualquer pessoa com umha mínima experiência em incêndios florestais sabe que a realizaçom de corta-lumes, por exemplo, é umha tarefa absolutamente essencial, e que só umha massa humana considerável tem a mobilidade e a capacidade suficiente para fazer um corta-lumes de umha longitude considerável em poucos minutos, tarefa de todo ponto irrealizável por uns poucos bombeiros por mui qualificados que se suponham e por muita tecnologia de que disponham.
2) A especializaçom das funçons sociais. Vivemos numha sociedade que decidiu -é dizer, na que a imensa maioria dos seus cidadaos decidiu ou, no mínimo, consente- que todas as funçons coletivas que numha sociedade normal deveria assumir pessoalmente cada pessoa, já for de forma individual ou grupal, sejam assumidas agora por pessoal especializado ao serviço do Estado ou de grandes empresas. Todas as atividades essenciais da vida através das quais o indivíduo se mantém numha relaçom direta e real com o mundo -com o cosmos, propriamente falando: construir e cuidar a casa em que vive, conseguir ou cultivar os produtos com que se alimenta, confeccionar a roupa com que se viste, cortar a lenha com que se aquenta, etc.- e que podem contribuir decisivamente a dar sentido à existência, tenhem agora um carácter estritamente funcional e som assumidas por macroentidades de carácter anónimo e despersonalizado. O cidadao trabalha (supondo que poda fazê-lo) numha atividade habitualmente impessoal, alheia por completo à sua vocaçom existencial, cobra um dinheiro e paga, de umha maneira ou outra, para que outros se encarreguem das atividades que normalmente deveriam ocupar a sua vida e através das quais se poderia realizar como ser humano. Em definitiva, paga para que outros vivam a sua vida por ele, funçom para a que habitualmente se atopa demasiado atarefado e sem suficiente tempo disponível.
Deste modo chega a contemplar-se como algo completamente normal a especializaçom despersonalizante de todas as tarefas básicas, umha de cujas conseqüências é, por exemplo, que apagar o lume que ameaça a sua terra -terra que, de nom ter sido reduzida à mera condiçom de “meio ambiente” polo cientifismo ecologista, deveria ter para ele um valor sagrado- nom seja um assunto vital no que se encontra existencialmente envolvido de forma natural e inevitável, senom um problema técnico de que devem ocupar-se exclusivamente os especialistas designados pola burocracia estatal.
3) A obsessom paranoica pola segurança. Nunca ao longo da história, até a apariçom da sociedade industrial, se chegara a pôr em perigo de forma global, como agora, a existência de vida no planeta. É provavelmente esta nova situaçom a que, através de umha rede de mecanismos intermédios, acaba gerando nos indivíduos, a modo de compensaçom defensiva, a obsessom paranoica pola segurança, que atualmente compartilham a imensa maioria dos habitantes do chamado primeiro mundo. Parece que dentro de pouco vai ser obrigado assegurar até a caneta que leve um no peto, circular polas ruas com máscara sanitária permanente -haja ou nom haja gripe- e esterilizar a baixela antes de cada comida.
Na medida em que as múltiples ameaças que a atual forma de vida implica som indiscutivelmente reais, essa obsessom poderia ter a sua justificaçom e a sua eficácia se tivesse sido endereçada de umha maneira nom neurótica e sempre que polo caminho nom se tivesse perdido o essencial. Com efeito, esquece-se que o grande risco, a grande ameaça que o moderno sistema industrialista projeta sobre os que vivemos nele nom é tanto de ordem física (com toda a importáncia que isto poda ter), quanto prioritariamente anímica: o que, por cima de todo, nestes momentos está em perigo de morte iminente nom é tanto o corpo como a alma, a alma dos indivíduos e a alma das coletividades, que perecem indefetivelmente num sistema uniformizante que obriga a umha mera existência redutoramente física e quantitativa, alienada e despersonaliza. Assim se promovem ridículas normativas que vigiam até o último detalhe os cantos de um brinquedo de plástico, enquanto se asfixia o planeta sob milhons de toneladas de lixo inútil, subprodutos do fabrico do lixo “útil” entre o que diariamente nos movemos, e enquanto os novos “cidadaos responsáveis”, mui preocupados polo uso da máscara sanitária à hora de pintar umha porta com titanlux, envenenam satisfeitos as suas inteligências com a imundícia intelectual que devoram quotidianamente através de todos os canais mediáticos da “sociedade da informaçom”.
Esta maníaca e generalizada obsessom pola segurança física -que se diria estranhamente combinada com um subliminal complexo de culpa que busca o suicídio coletivo-, e o pánico perante a possibilidade de assumir conscientemente certos riscos específicos, explícitos mas naturais, necessários e relativamente menores, está provavelmente, de forma decisiva, detrás dessa negativa a permitir o acesso dos voluntários à área do incêndio.
4) O clima de instabilidade gerado entre a classe política polas responsabilidades supostamente derivadas de qualquer catástrofe. Com efeito, a justa e necessária procura de responsabiliades converte-se sistematicamente em oportunista petiçom de demissom de algum ministro e vários cargos políticos por parte da oposiçom -seja esta a que for- cada vez que à natureza se lhe ocorre a intolerável ideia de assolar com um terremoto ou umha inundaçom um país democrático, deixando trás de si a conseguinte estela de vítimas humanas. À margem de que, dada a catadura do nosso estamento político, toda demissom é boa, é este um mecanismo que o sistema sociopolítico vigente conseguiu interiorizar habilmente e com pleno sucesso nos cidadaos, para os convencer de que, quando algo nom funciona, a culpa é sempre de algum indivíduo irresponsável ou incompetente, mas jamais do próprio sistema; menos ainda, umha fatalidade irremediável, inseparável da precária condiçom humana, possibilidade que a arrogante consciência do homo technologicus nem se quer se digna contemplar.
Em definitiva, pode-se criticar as pessoas mas nom pôr em questom a ordem estabelecida. Deste modo, a crítica dos funcionamentos (atitude agora própria de todo cidadao bem-pensante e progressista) reprime e ab-roga o direito a recusar a estrutura (atitude própria de indesejáveis elementos anti-sociais). Está institucionalizada umha crítica macia, pola que todo o mundo considera um dever protestar, reivindicar, acusar e pedir demissons a torto e a direito, mas que jamais questiona a “ordem” global, une-se o apego ao cargo; e naturalmente qualquer político o pensará duas vezes antes de permitir umha atuaçom que, por mui justa e necessária que for, caso de sair mal, poderia custar-lhe o posto.
Este mecanismo acompanha-se, por outra parte, de um argumento supostamente “humanista”, mas na verdade radicalmente demagógico, em virtude do qual se proclama de maneira cínica e pomposamente teatral que é preferível que se queimem milhares e milhares de hectares de bosque a que umha pessoa corra o risco de perder a vida, como se ambas as magnitudes fossem comparáveis e como se nom houvesse causas que justifiquem a assunçom de um risco que cada qual, de resto, é livre de assumir ou recusar. Esta sobrevaloraçom ostentosa e descontextualizada da vida humana nom passa de ser umha expressom particular do super-hinflado ego ecoletivo do homem contemporáneo.
Em definitiva, é o modelo social largamente aceitado pola maioria da populaçom e defendido com idêntico ênfase por todas as forças políticas, de direitas e de esquerdas, o que se encontra de forma direta e relativamente imediata detrás da ineficácia para apagar o incêndio do vale do Tiétar. Procure-se, pois, se há lugar, aos irresponsáveis imediatos de tanta incompetência, mas nom se caia na ingenuidade de pensar que umha mera substituiçom de pessoas ou partidos resolverá nengum problema.
Na consciência de que as análises teóricas nom excluem a proposta de medidas concretas (mágoa que, à inversa, quem com mentalidade supostamente pragmática e eficiente dim ocupar-se “criticamente” do urgente jamais tenham tempo para se ocuparem do essencial), fai-se daqui um duplo chamado à populaçom para que em futuras ocasions, é dizer, de cara a futuros incêndios que sem dúvida se produzirám, se adoptem duas medidas específicas com respeito aos temas aqui considerados, independentemente, claro é, das que se podam adoptar em relaçom a outros aspetos:
1. Resistir-se individualmente de forma inflexível (que a resistência seja mais ou menos passiva ou ativa ficaria à decisom e coragem de cada qual) a qualquer intento de evaquaçom forçosa e indiscriminada de quem nom queira marchar, de modo que, no mínimo, as “forças da ordem” tenham que levar literalmente a rastras aos interessados.
2. Ignorar coletivamente, desde o primeiro momento, de forma tam resolta e contundente como for necessário, todo intento por parte dos burocratas de turno (sejam municipais, autonómicos ou estatais, “progressistas” ou “conservadores”) de impedir ou dificultar a legítima e imprescindível acçom dos voluntários nas tarefas de extinçom, é dizer, dar a resposta que merece à totalitária pretensom de conculcar o legítimo direito dos homens e mulheres deste povo a defender o que é seu.